quinta-feira, 9 de abril de 2009

Mas afinal qual é o problema do trabalho voluntário?

Alguns leitores ficam surpreendidos e até incomodados com os argumentos que apresento contra o trabalho voluntário de que depende a Wikipédia ou o Projecto Gutenberg. Com palavras amáveis e comedidas, Rita Farinha e Ricardo F. Diogo, associados a este último, chamaram-me a atenção para alguns factos. Primeiro, que há erros em todos os livros, gratuitos ou não, digitais ou não. Segundo, que o trabalho feito por amor é muito importante. Concordo com as duas ideias, mas o problema começa quando se pensa que trabalhar por amor implica não ser pago, continua com a ideia aristocrática de que o trabalho cultural não deve ser pago e termina no problema das mentiras envolvidas em toda esta mentalidade associada a coisas como a Wikipédia e o Projecto Gutenberg.

O trabalho voluntário é sem dúvida importante em muitos casos — pensemos nas pessoas que trabalham voluntariamente em organizações que combatem a fome e a doença junto de pessoas que vivem em pobreza absoluta. Mas quando o trabalho voluntário consiste em oferecer gratuitamente algo que as pessoas poderiam pagar se realmente gostassem do que dizem gostar, o trabalho voluntário passa do louvável para o execrável porque aprofunda uma mentira social. A mentira social é que as pessoas “adoram” a cultura, os livros e o conhecimento — desde que não tenham de abrir a carteira. Quando chega a hora de abrir a carteira, têm dinheiro para carros e roupas de luxo, ligações ultra-rápidas à Internet, computadores de último modelo, televisões de plasma, e pacotes de TV por cabo — mas não para livros, revistas, jornais, enciclopédias. Têm dinheiro para tudo excepto para o que dizem “adorar”.

À mentira social que o trabalho voluntário aprofunda junta-se um conceito que não sei como se diz em português, apesar de ter procurado em três dicionários: self-righteousness. O voluntário tem um sentimento de falsa superioridade moral por trabalhar de borla, ficando com a sensação agradável de que está a fazer algo que nem todos os infelizes mortais fazem, por serem umas bestas. E os que dão donativos voluntários partilham desse sentimento olímpico. Contudo, tudo isto é uma mentira porque se limita a canibalizar o trabalho alheio, explorando cuidadosamente um sistema económico prévio que permitia financiar os criadores, coisa que este olímpico sistema não permite. Se no passado não tivesse havido um sistema económico que permitia às pessoas escrever livros e aos editores publicá-los, e se as bibliotecas não fossem financiadas pelos impostos das pessoas, não existiram hoje esses livros para poderem ser digitalizados e disponibilizados gratuitamente.

Além das mentiras sociais e das hipocrisias morais associadas ao trabalho voluntário e à cultura gratuita, há o problema da sustentabilidade económica de um mundo feito desta maneira. O que precisamos não é de mais mentiras sociais e de mais hipocrisias morais, mas de criar estruturas economicamente viáveis que permitam produzir, divulgar e publicar livros, revistas e jornais. Precisamos de digitalizar livros e bibliotecas, mas de um modo que seja economicamente viável e que dê o seu a seu dono: criando um corpo de profissionais pagos para fazer bem esse trabalho, com formação adequada, e recorrendo a meios adequados — e não uns miúdos que no intervalo dos jogos de computador decidem dar a aparência de bons samaritanos (uma vez mais: desde que não tenham de abrir a carteira). Mal nos libertamos das mentiras sociais e das hipocrisias morais e começamos a pensar em termos realistas nestas questões, vemos que o problema de fundo é, hoje como ontem, o problema do financiamento da cultura, das artes e das ciências. E isto só é um problema porque a generalidade das pessoas que batem no peito dizendo adorar essas coisas, na verdade desprezam-nas, pois se tiverem de as pagar, não estão dispostas a pagá-las. Assim também eu posso dizer que adoro ópera, para me sentir superior, ao mesmo tempo que não contribuo com um centavo que seja para o desgraçado do compositor da ópera poder viver sem andar a trabalhar como taxista.

18 comentários:

nuno vieira matos disse...

Certo certíssimo. Contudo, existe uma potencial brecha em todo este raciocínio. A premissa é de que este trabalho voluntário está fora do sistema económico que tanto louva. Eu, por outro lado, penso que este trabalho voluntário faz parte desse sistema económico e que se trata de uma forma extrema de o mercado procurar, cada vez mais, mais por menos. O problema da sub-qualificação, isto é, do trabalhador com menos renumerado para a mesma função, encontra aqui uma radicalização de posições. Enquanto vê esta tendência como extra-sistema, como paralelismo, eu vejo como uma continuação, um produto deste mesmo sistema.

Contudo, estou de acordo com a crítica feita ao "amante" de cultura e "paladino" do voluntarismo, desde que ... estejamos a falar daqueles com capacidade económica e proximidade suficiente para comprar essa cultura. Ademais, falemos igualmente daqueles que têm a disponibilidade mental para isso. Ora, estas duas condicionantes diminuem, em muito, o potencial amante que deveria ser, igualmente, consumidor de cultura. Mas de novo, volto ao início: é que para mim, tal é produto desse mesmo sistema económico.

Bottomline: Não se pode "proteger" o sistema económico destes perigosos voluntaristas sem se falar em proteger esse mesmo sistema dele próprio.

O Sousa da Ponte - João Melo de Sousa disse...

Boa Páscoa, para todos, e cuidado com as goludices que tão mal fazem à linha...

joão viegas disse...

Caro Desidério,

Vejo que continuas a misturar alegremente, sem a minima preocupação de rigor, "custo", "preço" e "valor". Isto alias sem teres o cuidado elementar de separar o problema da produção do problema da distribuição.

Se o teu raciocinio tivesse algum sentido, como poderias explicar que o mundo tenha sobrevivido até à aparição das trocas monetarias ? E que antes, de acordo com a tua teoria, vivia-se necessariamente numa situação de "inviabilidade economica" assente exclusivamente em "mentiras sociais"...

Mas ha mais preocupante ainda : de acordo com o teu raciocinio, criar filhos gratuitamente, dedicando-lhes tempo sem cobrar salario, é uma "mentira social" economicamente insustentavel. Amar gratuitamente é outra mentira social...

Se fosse qualquer outra pessoa, eu comentaria dizendo : meu amigo, se se lembrar bem, no liceu, deve ter feito uma cadeira chamada filosofia. Ora bem, o que se ensina nessa cadeira não serve so para passar o exame.

Contigo, não sei bem o que hei de responder...

Ah ja sei : desculpa a franqueza, mas esse teu texto, não o compro !!!

António Conceição disse...

O problema do trabalho voluntário é o mesmo do sexo grátis. Sai muito mais caro.

Anónimo disse...

"continua com a ideia aristocrática de que o trabalho cultural não deve ser pago"

pergunto-me onde é que sacou essa (isto é, quem o disse, quem o defende e em que contexto).

todo este raciocinio me parece um valente esparguete.

("olhe, mas porque é que se dá ao trabalho de fazer isso se ninguém lhe paga? porque fica feito e eu gosto")

e um contra exemplo absurdo:

"se o cidadão volta a meter a lata que aquele mal educado largou no chão no lixo prendemo-lo porque o seu voluntarismo põe em perigo a nossa sagrada estrutura social e os empregos dos funcionários da camara!"

Ricardo F. Diogo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ricardo F. Diogo disse...

Falar do Projecto Gutenberg implica uma visita a www.gutenberg.org/pt . Visita essa que o Desidério, naturalmente, fez.

Compreendeu (bem) que o projecto assenta no trabalho voluntário. Compreendeu igualmente (bem) que visa distribuir gratuitamente livros em formato digital.

Usa, no entanto, o Projecto Gutenberg como paradigma de um sistema que tem como consequência «canibalizar o trabalho alheio» e explorar «cuidadosamente um sistema económico prévio que permitia financiar os criadores.»

De onde retiro (embora não o possa afirmar com segurança) que o Desidério não compreendeu que os livros disponibilizados pelo Projecto Gutenberg se encontram legalmente no domínio público.

Os autores por nós publicados faleceram, na sua generalidade, há pelo menos 70 ou 100 anos. Dificilmente podem ser canibalizados. Fora o sarcasmo, tal seria contra rerum natura.

O sistema económico a que se refere (que inclui, na minha interpretação, editores, revisores e suas redes de distribuição e publicitação) também não é explorado pelo Projecto Gutenberg. Veja bem porquê:

É nossa missão distribuir gratuitamente livros em formato digital não só a cidadãos particulares, mas também a escolas, bibliotecas e… a editores.

Na verdade, a indústria editorial descarrega diariamente os nossos ficheiros, trata-os e vende-os pelos preços que considera competitivos aos consumidores que os pretendam adquirir.

Tudo isto sem qualquer desconforto do Projecto Gutenberg, note-se. Ao invés, incentivamos esta prática. Consideramos que um livro caído no domínio público pode, e deve, ser utilizado por quem quiser, como quiser: gratuitamente ou a troco de um preço.

Aquilo que o Desidério parece criticar é o facto de o trabalho voluntário criar uma distorção na oferta e procura culturais. Naturalmente, o projecto voluntário oferece um bem cultural a preço zero, enquanto que o editor precisa de se fazer pagar por toda a sua máquina laboral e produtiva.

A preocupação do Desidério parece ser de economia política (ou de filosofia económica).

Ad absurdum, o que o Desidério parece defender é que teria mais valor (cultural) Os Maias vendido a 1.000 do que vendido a 10.

Vai o Desidério desenvolvendo: «A mentira social é que as pessoas “adoram” a cultura, os livros e o conhecimento — desde que não tenham de abrir a carteira.»

Confunde os conceitos e as pessoas. O “amor” dos voluntários na transcrição das obras é algo distinto do “amor” dos cibernautas pela sua leitura.

A dedicação dos voluntários mede-se pela compra de livros antigos, a expensas próprias, muitas vezes em feiras e leilões que decorrem em cidades que distam centenas de quilómetros das suas.

Quanto à dedicação dos consumidores finais à sua carteira, é algo que lhes assiste.

Não vejo por que motivo alguém deverá comprar um livro de um autor falecido há séculos quando este se encontra disponível gratuitamente na Internet. (A não ser que tenha um especial voluntarismo para com os editores. O que seria, lamentavelmente, um paradoxo.)

A «generalidade das pessoas que batem no peito dizendo adorar essas coisas, na verdade desprezam-nas, pois se tiverem de as pagar, não estão dispostas a pagá-las.», postula o Desidério.

Questiono: Em quem pensava quando o afirmou? Na classe média europeia ou norte-americana? Teve em conta os casos de esgotamento das edições? Reflectiu sobre a soma dos preços de todas as obras exigidas ao longo do período de formação académica de um indivíduo? Chegou a equacionar as dificuldades financeiras das bibliotecas e a limitação dos seus acervos? Considerou as partes do mundo em que a aquisição de determinadas obras está censurada?

A grande questão do Desidério: o voluntarismo afecta «o sistema económico que permitia às pessoas escrever livros e aos editores publicá-los».

Um sistema económico que obrigava um cidadão a pagar edições em papel de obras literárias caídas no domínio público é… bom?

A contrario, um sistema económico novo que abre as opções de escolha e a oferta de bens culturais é… mau?

Sublinho a imagem que o Desidério tem dos voluntários do Projecto Gutenberg: «miúdos que no intervalo dos jogos de computador decidem dar a aparência de bons samaritanos.

Informo que um dos maiores contribuintes lusófonos para o Projecto Gutenberg é uma professora aposentada, já ajudou na transcrição de mais de duas mil páginas (só este ano) e não consta que goste de jogos de computador.

Uma última nota para uma “verdade” do Desidério «O voluntário tem um sentimento de falsa superioridade moral»

Não é meu propósito discutir os conceitos de superioridade, moral e verdade (como acima não discuti os de bom e mau).

Verdade é que maioria dos voluntários do Project Gutenberg que conheço se contenta em saber que algures num canto do mundo alguém lerá uma obra comprada e transcrita por si.

Posso apenas confidenciar-lhe o egoísmo da minha missão: imagino muitas vezes um rapaz em Pernambuco lendo uma obra intocada há séculos numa biblioteca portuguesa.

Cortei já fólios de livros com mais de cem anos. Nunca tinham sido abertos. Quando vejo a obra no Projecto Gutenberg sendo descarregada por milhares de cibernautas, sinto ter prestado uma homenagem a quem escreveu.

Como não pretendo fazer deste espaço a minha sala de psicanálise, despeço-me com os meus melhores cumprimentos.

Ricardo F. Diogo

Director de Produção para a Língua Portuguesa do Project Gutenberg em www.gutenberg.org/pt

Susana Afonso disse...

O projecto Wikipédia parece-me um caso a analisar, uma vez que é uma base de dados muito acessível (quase sempre um dos primeiros resultados quando se efectua uma qualquer procura num motor de busca, em qualquer parte do mundo), que com o seu princípio da contribuição voluntária abriu um precedente de falta de rigor grave que ninguém critica precisamente por ser um projecto feito por internautas de "boa vontade" (em português temos o sugestivo ditado que diz que "a cavalo dado não se olha o dente"). Através da Wikipédia, informações erradas, sobre qualquer matéria, rapidamente se tornam verdades. Há estudantes que não dispensam a consulta da Wikipédia como primeiro recurso em trabalhos que implicam alguma pesquisa por informação, e posteriormente professores que verificam a correcção dos dados apresentados nos trabalhos dos seus alunos na mesma Wikipédia. A partir daqui, qualquer informação errada, manipulada, acidental ou propositadamente se torna vinculativa, e a uma escala global, sem que ninguém assuma responsabilidade por tal.

Paulo Duarte disse...

A língua portuguesa é bem mais propícia à produção literária que a língua inglesa, quiçá à maioria das línguas que proliferam pelo mundo. É uma realidade.

António Parente disse...

Subscrevo inteiramente o conteúdo deste post. Concordo com tudo o que foi escrito.

Luís Domingos disse...

Há apenas que acrescentar que o famoso caso dos erros do Magalhães veio exactamente do amor ao cavalo dado: software open-source, adaptado e traduzido por alguém de boa-vontade e adoptado por alguem com fé.

Anónimo disse...

«com o seu princípio da contribuição voluntária abriu um precedente de falta de rigor grave que ninguém critica precisamente por ser um projecto feito por internautas de "boa vontade"»

Existem muitas notícias que são publicadas em jornais que ou não são verdade ou são distorções grosseiras da mesma. Um jornal, enciclopédia ou qualquer outra fonte de informação deve ser questionada e as suas fontes primárias verificadas. Nesse aspecto a wikipédia é de longe superior à enciclopédia clássica ou aos jornais uma vez que as suas fontes são facilmente acessíveis. É verdade que nem sempre o que lá consta está correcto, mas verificar a origem dos seus factos é em geral bastante simples e o mesmo não se pode dizer dos jornais e outras fontes de informação generalista onde a ligação entre os factos e a as referências bibliográficas (quando existem) não estão imediatamente disponíveis.


Há alunos que copiam da wikipédia sem a citarem da mesma maneira que copiavam antigamente por trabalhos feitos em anos anteriores, artigos de jornal, etc. sem a mínima preocupação pela veracidade do conteúdo.

Se há professores que verificam a validade das respostas pelos artigos da wikipédia sem verificarem as suas fontes são maus professores. O defeito não é da wikipédia.


E é preciso também lembrar ao Sr. Desidério que a extração de rendimento económico directo não é condição necessária à produção de publicações de qualidade, como facilmente se pode constatar por exemplo aqui e aqui.

Gilberto Miranda Jr. disse...

Lendo o texto do Desidério fica em mim a tendência a compreender sua argumentação somente partindo do pressuposto que o balizador do valor que damos às coisas só pode ser traduzido pela disposição que temos de pagá-las.

Isso significa que nada que eu não sinta no bolso teria real valor para mim. Se eu digo que gosto do por-do-sol e não pago ninguém para tê-lo, significa que eu estou envolto numa mentira social e que me engano, pois para realmente gostar eu teria que pagar muito bem por aquilo que gosto.

A argumentação do Desidério só faz sentido, em minha opinião, se partirmos do pressuposto de que o capitalismo é de forma cabal a única forma de se enxergar o mundo e a realidade. Balizar o que me importa pelo que estou disposto a pagar é reduzir toda a minha vontade a um aspecto utilitarista que traduz o que importa ao esforço que dispendo para obtê-lo, indexando esse esforço pelo dinheiro.

Indexar meu esforço pelo dinheiro é categorizar o esforço humano encabeçando-o pelo trabalho remunerado, como se ele fosse o mais nobre de todos. Isso é ideologia e não me parece ter sustentação uma afirmação dessa.

Será que as coisas de fato são assim? Será que temos o direito de categorizar e atribuir valor a um esforço na medida em que ele pode ser traduzido em valores monetários? É esse o único valor que nos move para que nos esforcemos?

A impressão que fica é que o próprio Desidério só escreveria e filosofaria se fosse remunerado para isso. E disso eu duvido. Ele quer ser pago, pois lhe parece justo, mas escrever e pensar são atos voluntários que independem do que ele recebe. Ele faz por que gosta e não gosta por que é pago. Ou eu estaria enganado em pensar assim?

Não discordo da idéia de que o trabalho intelectual mereça ser remunerado se inserido num sistema capitalista. Mas reduzi-lo a uma mercadoria é aceitar e promover o sistema capitalista como balizador dos valores que deva mover a vontade humana. Isso me soa estranho demais...

Pensar numa sociedade "Creative Communs" com todos dando o melhor de si, sem dinheiro e podendo obter o que precisa para viver sem ter que fazer o que não gosta para isso, parece-me ser uma idéia interessante que precisaria ser pensada na minúcia de uma realidade possível, embora a primeira vista pareça apenas uma utopia cibernética.

Abraços

Gilberto Miranda Junior
http://miranda-filosofia.blogspot.com

Anónimo disse...

Não consigo deixar de concordar com o Desidério num sentido e ficar completamente abismado com os argumentos que ele dá. Uma coisa é ver onde as pessoas preferem gastar o seu dinheiro conforme as opções que têm. Isso é uma medida directa do valor que dão às coisas e creio que é esse o motivo de fundo da sua tese: existe uma falsidade em que diz que presa muito a cultura mas prefere gastar dinheiro noutro lado ao invés de sustentar aquilo que diz tanto gostar.

Agora onde eu não concordo de forma absoluta é ligar essa forma de pensar a coisas originadas por um processo de voluntariado ou partilha. Movimentos como os "comuns", "código livre" ou similares não são decorrem do raciocinio que o trabalho criativo não tem valor mas sim da restrição imposta pelo exterior à realização desse mesmo trabalho. São essas "prisões" legais que nos rodeiam, que nos impedem de utilizar bens que compramos de formas para além das pressupostas pelos fabricantes, que nos impedem de transformar e apropiar de elementos que já pertencem à nossa cultura de forma criativa, pela distorção imposta pela noção de "utilização justa" e "direito intelectual" que esses movimentos se originaram.

De resto, como muito bem (acho) já foi dito por aqui, existem distinções importantes entre "valor", "preço" e "custo" que não são endereçadas resumindo o Desidério (ou pelo menos assim parecendo) tudo a uma questão de remuneração monetária. Outro erro importante que parece fazer é argumentar (corrija-me se presumo demasiado) que por alguém fazer algo voluntariamente defende que todos o devam fazer ou viver da mesma forma ou assumir os mesmo valores. E isso, é de longe, um erro crasso.

Miguel A. disse...

Caro Desidério Murcho,

Li com interesse a sua crónica. Percebo e partilho, em geral, a sua preocupação com a qualidade e controlo dos conteúdos; no entanto, penso que a sua análise é excessivamente determinista.

Não existe, a meu ver, uma correlação inequívoca entre facto de o trabalho voluntário implicar menos rigor científico e qualidade.

O próprio sistema científico assenta no trabalho voluntário. O que são, afinal, as "peer reviews"? Claro que uma revista científica convidará um cientista, cujo trabalho será, em princípio, reconhecido, para a revisão de um artigo.

Obviamente que no caso de um site como a Wikipedia não existe esta selecção inicial; no entanto, falamos de voluntariado em ambos os casos. O mesmo cientista que revê um artigo para uma revista científica de topo, poderá contribuir para a wikipedia. Penso que o importante é diminuir a variância entre os contributos especializados e os menos especializados.

Portanto, a questão central, a meu ver, prende-se mais com a necessidade de refinar e monitorizar os contributos e o conteúdo, do que propriamente com os aspectos remuneratórios implicados neste processo.

Grato por este seu texto proporcionar uma importante reflexão e discussão.


Miguel A.

Vitor Guerreiro disse...

A questão da exploração foi mal compreendida. Se no passado não houvesse um sistema qualquer, mais ou menos perfeito, nenhum é perfeito, para financiar os autores, tradutores, revisores, etc, hoje essas obras não estariam em domínio público, dado que não caíram do céu.

A questão não é o estatuto ontológico da obra, do trabalho, da interligação de todas as coisas e de outras tretas, a questão é ter um sistema que permita às pessoas viverem da arte, da ciencia, da filosofia, da literatura, da tradução, sem terem para isso de ser ricas ou de apenas o fazer nos intervalos de outro emprego.

É verdade que não tem valor só o que dói no bolso, mas também é verdade que é com o bolso que as pessoas mostram aquilo a que dão valor. É hipócrita gritar ofendido contra esta verdade, porque as mesmas pessoas que gastam dinheiro a torto e a direito em tudo, desde tabaco a jogos de vídeo e a tv's de plasma e a ténis e calças de marca, dvd's.... whatever, sao as mesmas que se armam em proletários ofendidos, que é um "escandalo" um livro custar 20 euros. Mas isso só mostra que eles não estão dispostos a pagar 20 euros por um livro. Não mostra que os autores, revisores e tradutores deviam trabalhar de borla para bestas destas.

Mesmo os livros que estão em domínio público precisam de ter edições cuidadas e isso não vem do céu, dá trabalho fazer. E por que raios uma pessoa que faz esse trabalho profissionalmente deveria faze-lo de borla? Por que raios haverá superioridade moral em fazê-lo de borla?

Orgulho... de quê? De estar a trabalhar de borla para um gajo que compra 2 maços de tabaco por dia mas não está disposto a pagar um euro por uma revista em condições e prefere descarregar 20 000 livros piratas que nunca vai sequer ler, só para se sentir muito esperto porque não os pagou na livraria? Isto é motivo de orgulho?

Não se entende.

João Vasco disse...

Confesso sentir algum incómodo em relação ao tipo de discurso que mostra desdém em relação ao trabalho voluntário.

Fico algo contrariado quando alguns indivíduos assumem que quem faz caridade o faz para "se sentir melhor" e que por isso o seu esforço não é meritório. Que é uma hipocrisia, etc...
Penso "não sei se é essa a razão, muito possivelmente não é. Mas e se for? O que importa é que estão a ajudar outros e nós deveríamos admirar a generosidade do gesto em vez de maldizer".

Acho algo ingrata essa forma de criticar aquilo que é oferecido a troco de nada. Quem não se quer dar ao trabalho de fazer o mesmo, podia ao menos ter a decência de não desdenhar daqueles que dão a outros sem receber nada em troca.


Fiquei algo surpreso quando vi esse tipo de discurso reproduzido nestas linhas:

«O voluntário tem um sentimento de falsa superioridade moral por trabalhar de borla, ficando com a sensação agradável de que está a fazer algo que nem todos os infelizes mortais fazem, por serem umas bestas.»

É assim? Como se sabe?

Alguém é generoso e assume-se que esta generosidade implica considerar que os outros são bestas.

Qual o fundamento desta crítica?


Parece-me também que não colhe a ideia de que o voluntariado põe em causa o "sistema económico". É verdade que se todos estiverem dispostos a limpar o lixo alheio nas suas ruas a câmara irá pagar a menos varredores. Mas isso, em si, não é mau nem bom. Com o dinheiro poupado poderá pagar a malabaristas, ou cobrar menos impostos e fazer as pessoas gastarem noutras coisas que criarão outros empregos.
Se o indivíduo A faz as tarefas domésticas dos seus amigos, estes podem poupar em profissionais domésticos, e assim não estimular o emprego por essa via. Mas depois com o dinheiro poupado estimulam o emprego por outras. Mas em última análise não terei prejudicado ninguém.
Claro que se um deles quer MESMO que as suas limpezas sejam feitas por um profissional, ele que recuse a ajuda oferecida. Não faz sentido é afirmar que o voluntário é um inimigo da limpeza apenas porque está a ajudar os outros.

Independentemente das suas motivações (e parece-me mesquinho assumir que são as piores) ele está, muito provavelmente, a fazer o bem.

João Vasco disse...

«Mas em última análise não terÁ prejudicado ninguém.»

(Não ando a oferecer trabalhos domésticos a ninguém, eh!eh!eh!)

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