Há cerca de vinte anos James Randi publicou a primeira versão do livro «Faith Healers» em que desmascarava uma série de curandeiros da fé, charlatães sem escrúpulos que se aproveitam da ingenuidade e superstição de muitos. Entre eles encontrava-se um dentista pela fé, que fazia uns biscates como alquimista, de seu nome reverendo Steve Jones.
Alguns crentes não acreditaram num céptico profissional e vinte anos depois continuam as sessões de «curas» milagrosas do reverendo que se especializou na vertente fada dos dentes alquimista e que continua uma receita de sucesso de algumas igrejas ditas carismáticas. O ex-libris desta receita milagrosa, que aparentemente se iniciou na Argentina, é a transmutação de amálgamas (ligas de mercúrio) de prata em ... prata ou ouro decoradas com crucifixos sortidos. Na realidade, as cruzes e brilho dourado de amálgamas enegrecidas são facilmente explicáveis sem necessidade de recorrer a milagres ou a intervenções divinas. A forma cruciforme é normal nas obturações em molares e pré-molares humanos dada a morfologia destes. Apontando uma lanterna para a boca do crédulo que se submeteu a uma intervenção «milagrosa», a luz é reflectida pela prata das obturações, com reflexão do que parece uma cruz de ouro se a lanterna utilizada emitir no amarelo!
Os crentes engolem sem quaisquer espinhas a fraude porque, como relembra o reverendo Jones, «Curar dentes é hilariante mas transformar água em vinho é hilariante e cuspir em terra e pô-la nos olhos de um homem é hilariante», numa alusão a relatos de dois dos milagres que abundam na Bíblia. De facto, numa religião assente em «milagres» sortidos, as vozes cépticas não são bem-vindas e muitas vezes as explicações racionais de fenómenos naturais são vistas como ataques à religião. Como aconteceu há 501 anos na Igreja de S. Domingos em Lisboa quando um cristão-novo se atreveu a explicar racionalmente outra simples reflexão de luz * ...
O charlatão insiste não ser ele o operador das «curas», afirmando que apenas é um intermediário do Deus que disse ser tudo possível. Por isso não «cobra» dinheiro pelas «curas», apenas faz circular envelopes para donativos que os seus assistentes recolhem no intervalo das vendas de CDs e das demais bugigangas que acompanham qualquer bom vendedor de banha da cobra.
Não sei porquê, talvez porque toda a história me fez lembrar a «Vida de Brian» e o single «Always Look on the Bright Side of Life», a parte em que Jones diz «Já vi algumas coisas que fariam a ciência perceber que há um criador. Especialmente quando se vê dentes crescer em câmara lenta e endireitarem-se» recordou-me o sketch «Conrad Poohs and His Dancing Teeth» do Monty Python's Flying Circus...
*«Contam os testemunhos que tudo terá começado na Baixa, no dia 19 de Abril de 1506, um domingo, na Igreja de São Domingos, quando alguém gritou ter visto o rosto do Cristo crucificado iluminar-se inexplicavelmente no altar. Em redor, gente que rezava pelo fim da seca prolongada que grassava pelo país clamou que era milagre. Entre eles, um judeu convertido à força terá tentado explicar que a luz que emanava do crucifixo era apenas um reflexo de um raio de sol que entrava por uma fresta. Terão sido as suas últimas palavras. Arrastado para a rua, o marrano e um irmão seu foram espancados até à morte. Os seus corpos mutilados foram arrastados para o Rossio e queimados em frente dos Estaus – onde décadas depois foi instalada a Inquisição. Eles eram apenas os primeiros de entre mais de 4 mil mortos – anussim, judeus portugueses, homens, mulheres e crianças, assassinados em três dias sangrentos.
Incitada por frades dominicanos, a multidão que entretanto se aglomerara decide partir em direcção da Judiaria, gritando 'morte aos judeus' e 'morram os hereges'.» Nuno Guerreiro in Rua da Judiaria.
8 comentários:
Quem acredita que o Sol andou aos pinotes em Fátima, quem acredita em anjos e milhentas coisas impossíveis o que é uma simples trasmutação?
Só não percebo porque é que que engolem que o Deus em que acreditam se divirta a dar uma de alquimista em vez de fazer crescer um dente novo e saudável. Mistérios da fé que me ultrapassam...
Obrigado, Palmira, por me ter relembrado esse triste e vergonhoso episódio de 1506. No "post" anterior, CF, às tantas, escreve: "A falta de sentido de humor é, em geral, uma manifestação de burrice." Concordo. Esse tal Judeu devia ser muito burro. Mais lhe valera, depois de ter percebido que aquilo era apenas um reflexo de luz, ter-se calado e rido, só para si, claro, da estupidez daquela gente. Mas, preferiu tentar explicar! Pergunto: por que motivo esse Judeu burro quis explicar? Teria achado que era seu dever explicar? A que propósito? Se tivesse o mínimo sentido de humor e fosse cauteloso não teria sofrido o que sofreu.
J. Valentim - V N Poiares
Vergonhoso e lamentável! Quando me deparo com estes episódios não me ocorrem outras palavras.
Temos tendência a pensar que "estes episódios tristes e cronologicamente enquadrados", como todos gostaríamos de lhes poder chamar, já só são História.
Discordo em absoluto. Hoje as formas de atingir os objectivos são só mais polidas e com menos sangue. Algum de nós por exemplo terá perfeita noção do papel da igreja na distribuição dos poderes, inclusive, o económico após o 25 de Abril. Eu não.
É politicamente correcto dizer-se que devemos respeitar as crenças dos outros, mas a História da igreja católica não é exemplo de ter por princípio respeitar os outros e as suas opiniões. A Constituição pode até permitir que o nacional-socialismo se disfarce de nacional porreirismo mas tal não nos impedirá de o associarmos aos hitleres, mussolinis e que tais que se atravessaram na nossa História.
Podemos disfarçarmo-nos de políticos, de comentadores de bola, ou jornalistas e discursar o mais acertadamente possível sobre justiça ou justiça social e desenvolvimento económico e gracejarmos que ali estamos entre duas missas, mas podemos ter a certeza que o nosso interlocutor lhe dá o valor que dá.
O Sr. José Policarpo, pessoa que instintivamente me parece bastante simpática, quando vem fazer uma declaração ao país, no qual eu, os meus filhos e companheira me incluo, não é culpado de serem estes episódios o que me trás à memória. Mas contribui.
Procuro respeitar o mais possível as pessoas. As ideias não! As ideias não são seres, pelo menos para mim!
Artur Figueiredo
O meu blog é melhor que o teu!
Eu também acho que este judeu só podia ser muito estúpido. Sei lá, estava mesmo a pedi-las com tanta falta de sentido de humor! Sei lá, ele, o Giordano Bruno, o Galileu, o Dalton, Darwin e todos aqueles estúpidos sem sentido de humor que em vez de se rirem da estupidez dos cristãos tiveram a mania que a verdade e a procura da verdade é que é importante!
Sei lá, se eles tivessem tido o mínimo sentido de humor e tivessem sido cautelosos não teriam sofrido o que sofreram. Claro que continuávamos com as verdades absolutas intemporais dos cristãos mas refutá-las só pode ser falta de humor (ou ataques à verdadeira fé).
Se os estúpidos que se atreveram a tentar explicar as coisas em vez de aceitarem as verdades cristãs tivessem tido um mínimo sentido de humor os cristãos nunca se tinham visto obrigados a churrascos de hereges (por culpa exclusiva dos hereges, toda a gente sabe que o cristianismo é uma religião de amor).
Se este pessoal estúpido e sem sentido de humor tivesse pensado nas consequências hoje os cristãos de serviço ao DRN não estavam calados que nem RATZos...
Sei lá, é verdade que hoje não existiria internet, computadores, electricidade... e a Palmira já tinha servido de combustível para uma orgia de fé há muitos anos...
Oh, Joana, parece-me encontrar algum azedume no seu comentário. Estarei certo? Se calhar, estarei errado! Mas, só se zanga com o humor aquele que não o tem. Talvez eu não tenha sido suficientemente explicito no humor que tentei usar. Mas, o humor, por vezes, só é humor se usarmos um pouco de ambiguidade. Claro, que se as coisas forem vistas como a Joana as vê, daclaro que concordo totalmente consigo. Mas, quer melhor demonstração de humor que a invenção da alheira? Quantos judeus foram presos, torturados ou mortos por causa da alheira? Foi ou não uma invenção deliciosa? Pode não ser tão importante como a Internet mas,grelhada, com uma batatatinha cozida, uns grelitos e um fiozinho de azeite por cima até faz esquecer as pobres pessoas que nasceram e vivem sem sentir o que é o humor. Que, claro, começa pela capacidade de nos rirmos em primeiro lugar de nós próprios. E de tudo o resto.
Um abraço do
J. Valentim
Já não sei como é que se diz, em latim, o «Facilmente cremos quando queremos»...
Acho que também deviam problematizar o modo como, no século XXI, a classe médica e a indústria farmacêutica se aproveitam da ignorância e da necessidade das pessoas.
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