terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Em defesa da ciência, a união dos cientistas

Meu artigo no n.º 51, que acaba de sair, da revista do SNESUP:


A ciência não é apenas o conhecimento do mundo, é também o método através do qual se adquire esse conhecimento. E a ciência é ainda o conjunto de valores que preside à aplicação desse método. No exercício da ciência, o conhecimento novo emerge por aplicação de um método bem conhecido, no quadro de um sistema de valores consensual. A comunidade científica deve velar para que o método seja bem aplicado e para que os valores comuns sejam respeitados. A chamada “avaliação por pares” serve para apurar a validade dos resultados da ciência. Mas serve também para assegurar o melhor desenvolvimento da ciência, por exemplo atribuindo bolsas de doutoramento ou pós-doutoramento aos melhores candidatos e apoiando as unidades de investigação de acordo com a sua comprovada produtividade científica. Para que a ciência possa florescer, é preciso que a sociedade apoie os cientistas e as suas instituições, sendo a cultura científica o cimento que permite ligar os cidadãos aos cientistas e à investigação.

Nos últimos 20 ou 30 anos a ciência ganhou uma escala nunca vista em Portugal. Graças a um forte impulso no investimento, muitos jovens talentosos vieram para a ciência, com o apoio de bolsas, e estabeleceu-se um sistema de avaliação internacional dos centros de investigação, baseado em visitas aos centros. A cultura científica foi-se difundindo. No entanto, aprendemos todos nos últimos anos, decerto com mágoa, que o desenvolvimento da ciência em direcção aos padrões europeus que se vinha a verificar não era um dado adquirido. As bolsas diminuíram inesperadamente e a avaliação de unidades passou incompreensivelmente a ser mal feita. O inimaginável aconteceu: o apoio à cultura científica foi interrompido. Tudo isto se passou devido à interrupção na aposta na ciência que vinha a ser feita por vários governos. Apesar de ter havido alguma reacção na comunidade científica contra esse novo estado de coisas, causado por políticas obscurantistas que visaram a contracção da ciência (o primeiro ministro e o ministro da Economia apontaram o dedo à falta de utilidade da ciência que era feita), o certo é que essa comunidade, relativamente recente, não teve a força suficiente para enfrentar o poder político quando este começou a maltratar a ciência. Os cientistas nacionais não conseguiram ainda organizar-se em defesa da ciência, designadamente juntando representantes de várias disciplinas em torno de objectivos comuns. A ciência tem que consolidar o seu sistema de gestão, de modo a assegurar a sua estabilidade ao longo dos vários ciclos políticos, colocando-a ao abrigo de flutuações extremas e arbitrariedades da tutela. É certo que, sendo a ciência financiada publicamente, têm de existir políticas públicas de ciência, mas essas políticas têm de ser propostas, decididas e aplicadas em colaboração com os cientistas e não contra eles. Os cientistas têm de ser parceiros e não adversários.

A comunidade científica portuguesa foi desconsiderada no ano de 2014. O ano começou com os jovens cientistas a virem para a rua em justo protesto contra a diminuição drástica das bolsas de investigação e o ano acabou com uma avaliação catastrófica das unidades de investigação, que motivou muitos protestos, apoiados pelos reitores das universidades e presidentes dos politécnicos, que denunciaram de um modo muito claro uma avaliação que em rigor não merece esse nome.

Em primeiro lugar, deixou de ser reconhecida pela FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia a enorme relevância da formação de recursos humanos no progresso da ciência. Cortando abruptamente o número de bolsas, não existindo a necessária renovação do corpo docente nas escolas superiores e rareando as oportunidades de emprego científico no mundo empresarial, aos jovens altamente qualificados, a quem os cidadãos nacionais com os seus impostos pagaram as qualificações, não lhes resta outra perspectiva que a de abandonarem o país. Muitos o têm vindo a fazer, na esperança de melhorarem a sua situação pessoal, mas deixando o país indiscutivelmente mais pobre. Em segundo lugar, e na mesma linha de encolhimento do esforço em prol da ciência, a FCT encomendou à European Science Foundation um corte de 50 por cento das unidades de investigação, destruindo de uma penada um sistema que tinha levado anos a ser construído. Foi uma operação, disfarçada com o nome de “processo de avaliação”, que mais não pretendia do que concentrar nuns poucos, escolhidos de um modo pouco transparente, o que antes estava distribuído numa rede plural e diversificada. Não se olhou a meios para cumprir objectivos pré-estabelecidos à revelia da comunidade científica, pelo que os protestos choveram, não só dos institutos e laboratórios directa ou indirectamente atingidos, mas também, das escolas superiores, das sociedades científicas, dos sindicatos e das associações de investigadores, dos partidos políticos e dos órgãos de comunicação social. O mais espantoso é que, apontadas de um modo muito claro na praça pública as numerosas irregularidades (ilegalidade do processo de quota de pré-eliminação de metade, atropelo pela FCT às normas fixadas por ela própria e a deficiente habilitação de muitos “avaliadores”), em vez de ter havido a necessária humildade para analisar os defeitos apontados, num diálogo com a comunidade científica, como seria de esperar, todos os protestos foram ignorados. A ciência que era acarinhada como um bem comum de alguma forma ficou refém de um pequeno grupo circunstancialmente no poder. E o que estes fizeram foi a política do “quero, posso e mando”, ao completo arrepio do que são os valores da comunidade científica, que não teve até agora a capacidade necessária para se afirmar. A opinião pública, alertada pelos media, percebeu que os gestores de ciência, de nomeação governamental, tinham perdido a confiança dos seus antigos colegas, mas, num quadro político em que os sintomas de desagregação se multiplicam, aceita isso como um facto normal.

Até quando? Pois estou em crer que a ciência, fundada num sólido sistema de valores (onde as manigâncias da pequena política não deviam, por isso, ter lugar), saberá resistir. Não estando entre nós ainda madura, a ciência já cresceu suficientemente para resistir a sérias provações como aquelas a que tem vindo a ser sujeita. A comunidade científica acabará por tomar consciência do grande papel que lhe cabe na sociedade, de modo a que o seu destino não fique nas mãos de grupos restritos. A cultura científica continuará a fazer o seu caminho, unindo pessoas e instituições. A seu favor tem o facto de ser cada vez mais claro que os assuntos da ciência interessam não só aos cientistas mas também aos cidadãos em geral. O exercício livre e responsável da ciência pelos cientistas, liberto de interferências da politiquice, mas sempre em diálogo com a sociedade, é a condição de um futuro melhor para todos.

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