quinta-feira, 26 de abril de 2012

Convidar e obrigar: uma diferença importante

Há uma diferença importante que o pensamento totalitarista, mesmo entre quem não se reconhece como totalitarista, sistematicamente ignora. Falei disso no meu livro Filosofia em Directo, mas vale a pena voltar a sublinhá-la. Há uma grande diferença entre divulgar, estimular, promover e permitir que se conheça algo e obrigar as pessoas que o não querem a preferi-lo. Por exemplo, é meritório divulgar e dar a conhecer a ciência, como felizmente hoje o fazem tantos cientistas, portugueses e estrangeiros, em livros de divulgação e na Internet. Mas há uma grande diferença entre isso e obrigar as pessoas a comprar livros de ciência ou a estudar ciência ou a gostar de ciência. Se depois de termos feito o nosso trabalho de estimular as pessoas a gostar do que consideramos que é de valor, muitas pessoas, até mesmo a maioria, continuam a preferir outras coisas que consideramos frívolas e desprezíveis, é imperativo respeitar as suas escolhas. E é imperativo resistir à tentação de usar o poder do estado para impor aos outros aquilo que eles não valorizam.

Esta diferença deveria ser óbvia, mas não é. Daí que tantas pessoas fiquem convencidas de que, se eu tivesse o poder político, obrigaria toda a gente a estudar filosofia, e a estudar filosofia do modo peculiar que defendo e pratico. Mas eu jamais faria tal coisa. E não o faria porque respeito antes de tudo a própria liberdade e autonomia das pessoas; respeito as suas escolhas. E não caio na falácia de afirmar que quando as escolhas das pessoas não são aquilo que eu preferiria que fossem, não são escolhas genuínas. Parece-me um pouco excessivo, ou pelo menos uma coincidência estranha, que as escolhas dos outros só possam ser genuínas se coincidirem com as minhas.

Muitos intelectuais sofrem da ilusão de que só vale a pena viver a vida se as pessoas as viverem mais ou menos como eles mesmos as vivem. Isto é uma enorme falta de lucidez e de imaginação. Quem pensa deste modo é provinciano; ignora as muitas maneiras diferentes como as pessoas podem ter vidas compensadoras e estimulantes para elas. Além disso, revela falta de observação do mundo à sua volta -- o que, num intelectual, é curioso. Há 100 anos, muitas pessoas havia que não tinham pura e simplesmente acesso à cultura; nessa época, era razoável pensar que só por isso é que não se interessavam pela cultura. Mas hoje isto é falso na Europa, nos EUA e em países com níveis de vida muitíssimo elevados. Nestes países, as pessoas preferem futebol ou Rock'n'Roll ou cinema-espectáculo ou iPhones a ler filosofia ou ciência, e não é por falta de condições económicas que escolhem uma coisa em vez de outra. Na verdade hoje em dia dá-se o oposto: quem se interessa pela cultura precisa de menos dinheiro para viver do que quem se interessa principalmente pelas outras coisas. Contudo, muitos intelectuais continuam a clamar que só porque há uma conspiração capitalista é que as pessoas não são todas iguais a eles mesmos. Deveria ser óbvio que isto é um disparate.

Mas estas ideias não são apenas disparates de intelectuais com preconceitos contra os estilos de vida de que não gostam e que não compreendem. Estas ideias, algo fascistas e totalitaristas, são politicamente muitíssimo perigosas porque revelam uma maneira de pensar profundamente antidemocrática e contrária à liberdade. A maneira correcta de pensar em termos políticos, em termos da sociedade que em que estamos inseridos, é começar por reconhecer o direito inalienável de cada qual a ter as opiniões e gostos e estilos de vida que quiser. Se queremos conceber uma sociedade melhor, o esforço terá de ser no sentido de garantir que as pessoas com os mais diversos estilos de vida não se sintam discriminadas, sintam que têm o direito de viver precisamente como querem -- desde que não prejudiquem directamente e de modo inequívoco outras pessoas. Não demos sequer um passo na tentativa de conceber uma sociedade melhor ou na resolução dos nossos problemas sociais e políticos, quando começamos pelo ponto de partida errado. E esse ponto de partida errado é por onde tantos intelectuais começam: "as pessoas deviam ser todas como eu". A questão é que o não são; e mesmo que até fosse boa ideia que o fossem, o que temos a fazer, para podermos pensar com clareza sobre os nossos problemas políticos e sociais, é começar por reconhecer que as pessoas são muitíssimo diferentes umas das outras e que uma vida que para uma é estimulante e compensadora e fonte de realização, para outra é um enfado medonho. Se para os intelectuais se sentirem bem na sociedade isso implica que muitos milhões de pessoa terão de se sentir mal porque serão obrigadas, contra a sua vontade, a ler com enfado Thomas Mann todos os dias e a morrer de tédio ouvindo operetas, então mais vale que os intelectuais se sintam um bocadinho mal com a nossa sociedade. Se é errado obrigar-me a assistir a um jogo de futebol com 20 mil outras pessoas, o que para mim seria uma tortura mortal, é igualmente errado obrigar um fanático do futebol a ler um livro meu, se ele não o quiser ler.

A boa notícia é que os intelectuais não têm de se sentir mal. Nunca houve tanto dinheiro para a cultura, a ciência e o ensino como hoje em dia. Nunca foi tão fácil, a quem o quiser, tornar-se intelectual ou cientista ou filósofo. Os intelectuais gozam de uma liberdade e de condições de vida que os nossos antepassados não podiam nem sonhar. Não vejo razão para ficar tão aporrinhado com a sociedade contemporânea. Se a generalidade das pessoas prefere futebol e cerveja a filosofia e matemática, têm todo o direito a essa preferência. O que conta é haver muitas pessoas que prezam a filosofia, a matemática e os outros bens culturais.

7 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Em nota breve [que ainda estou à bulha com as

aulas (sobre enzimas e melhoramento de

alimentos...) que vou dar das 13.30 às 18.30]:

Claro e limpo.

Agora, a escola, como a televisão do estado,

por exemplo, não podem servir-se da liberdade

de cada um, para, grotescamente, tornar mais

ignorantes os ignorantes e fazê-los sentir

orgulhosos (felizes?) com isso.

Porque, a ser assim, então eu admitiria que a

escola poderia fechar (já a televisão, se

calhar era uma benção, não por ser obrigado a

vê-la - uma vez que a considero uma janela de

lixo pela casa dentro - mas por ser obrigado a

pagá-la!) ou, em alternativa, exigiria que a

escola deixe de ser obrigatória, uma vez que

não lhe reconheceria o direito de deseducar as

crianças, especialmente as que são filhas das

pessoas mais pobres.

Acontece que entendo que a escola é

necessária. E que deve elevar o conhecimento e

o espírito das crianças. E que só para isso é

necessária. E quero pertencer a uma sociedade

que tem especial cuidado nisso, e com isso.

Haja as dificuldades que houver.

Joaquim Manuel Ildefonso Dias disse...

Professor Desidério Murcho;

Tenho em mãos um pequeno livrinho, muito velhinho chamado “O Sincretismo Infantil (uma experiência pedagógica) por J. Dias Agudo, da Biblioteca Cosmos dirigida pelo Professor Bento de Jesus Caraça.

Este contem um relato sobre a escola italiana de Madame Boschetti-Alberti - para apreciar o espírito de serenidade dessa escola – e mostra a importância de se procurar levar a criança ao domínio de si, habituando-a, de muito cedo, à sua própria educação.

Descreve um caso que no nosso ensino (que tem milhares) é um caso perdido.
No último paragrafo ela diz o seguinte;

«Henri é hoje um rapaz bem educado. Cada vez que o encontro e noto nos seus olhos uma vontade de exprimir por actos a amizade que me dedica, eu penso que ele conserva este reconhecimento por eu lhe ter permitido emendar-se. Se, por uma injustiça, por um acto de má graça ou por excesso de cólera, eu me tivesse afastado, um instante que fosse, da minha serenidade, esta alma não teria nascido para a luz».

Gostaria de conhecer a opinião do Professor Desidério Murcho, acerca desta situação em concreto (actuação desta educadora) teria seria um Convite ou seria Obrigar;

Eu inclino-me a dizer que nem uma coisa nem outra. Fosse o que fosse que ela fez, a verdade é que salvou a VIDA deste rapaz. Notável, assim fossemos nós capaz de “salvar outras vidas” a crianças nossas.


Cordialmente,

Nota: Dada a provável dificuldade que terá em encontrar o livro, disponibilizo-me para lho enviar e com muita satisfação, se o pretender.

Valdemar Barbosa Rodrigues disse...

Perspectiva já bastante antiga, de inspiração marcadamente liberal, com a qual genericamente concordo, e que é interessantíssima de analisar do ponto de vista da "educação" (eu prefiro dizer ensino). Isto porque alguns filósofos contemporâneos, como é o caso de Peter Sloterdijk, têm chamado à atenção para a crescente infantilização, ou domesticação, das sociedades modernas, fruto de todo esse "bem-estar" de que fala neste seu texto. Os economistas referem-se ao problema usando o conceito de "preferência temporal" (do I. time preference) e notando que as crianças, incluindo as já muito crescidinhas, não estão nada dispostas a adiar a satisfação de um apetite ou de um desejo. É o "viva o momento now", a versão moderna do Carpe diem. Ora o "educador", que só por acidente histórico se reduz hoje àquele que "ensina", se é que ainda "ensina" alguma coisa de "substancial"..., tem precisamente o dever moral de ser "totalitário", no exacto sentido que refere no seu texto, ou seja, de contrariar a "pulsão natural" da criança para fazer aquilo que bem lhe apetece dentro da razoabilidade nas normas sociais ou seja, para nada fazer que implique algum esforço ou cause algum sofrimento. Estarei a ver bem? Na universidade , e quer é sempre o mais fácil. Ora Sloterdijk fala de uma sociedade de "crianças", o tal Parque Humano, de seres domesticados e sem autonomia, educados na esteira de um falso "humanismo", incapazes de se auto-controlarem e de pensarem o futuro. Será que essa sociedade é inevitável e está bem como está? Não haverá da parte do governo - o grande pater familias do Estado moderno sob a forma de "sociedade" - o dever moral de "contrariar" as escolhas infantis daqueles que governa? Estarão as sociedades modernas infantilizadas condenadas ao totalitarismo? E havendo limites para tudo não será por vezes melhor um "não" directo do que um "nim" falacioso travestido de "democracia"?

Com quase 15 anos de experiência docente universitária, tenho dúvidas sobre a eficácia de um "ensino suave", "doce" e, necessariamente, permissivo e pouco exigente, dando a oportunidade aos jovens de expressar as suas "potencialidades naturais" e as suas "liberdades de pensamento e criação". Ou seja, a forma de entendimento que expõe no seu texto será ela também válida para a "educação" e a Pedagoia? E, em caso negativo, porquê?

Desidério Murcho disse...

Se eu defendo a liberdade de as pessoas ensinarem como quiserem, por exemplo, isso inclui a liberdade para ensinar de modo exigente, com trabalho e esforço e compromisso. Apenas inclui também a liberdade para ensinar de outros modos. O professor que quiser ensinar de um ou de outro modo deve ter a liberdade para o fazer como quiser. O que me opõe ao pensamento dominante em alguns sectores da sociedade portuguesa que falam sobre o ensino não é os ideais de um ensino exigente e centrado em coisas como filosofia, física, matemática, artes e história -- coisas que penso terem valor intrínseco. Eu partilho esse ideal de ensino; apenas defendo que quem não partilha este ideal de ensino -- e a maior parte dos professores não o partilha -- tem o mesmo direito que eu de praticar o seu tipo de ensino.

O mesmo se aplica à sociedade em que vivemos. Eu preferia viver numa sociedade com mais livrarias e menos sapatarias, com mais concertos de música erudita na televisão e menos futebol. Portanto, eu partilho as preferências de muitos intelectuais, que gostariam de estar numa sociedade diferente. Acontece que se nós temos direito a essas preferências, as outras pessoas que têm preferências opostas também têm o mesmo direito a satisfazerem as suas preferências. E é aqui que discordo sempre muito frontalmente de intelectuais como Sloterdijk, que me parecem sempre fascizantes: querem impor aos outros o ideal de sociedade deles, mas não permitem que esses outros lhes imponham a eles o seu ideal de sociedade. Isto é, na melhor das hipóteses, conceptualmente incoerente. Mas é mais perigoso do que isso: é fascizante, porque elege um facho, uma luz de lucidez e verdade -- que coincide sempre com o próprio intelectual -- que tem o direito de impor aos outros o seu estilo de vida. Isso é intolerável politicamente. Não há diferença política relevante entre intelectuais como Sloterdijk, Rieman ou George Steiner e o pensamento de Salazar ou qualquer outro ditador, e há uma semelhança crucial: a ideia de que eles mesmos têm o direito de impor aos outros o seu modo de ver o mundo, o seu modo de vida, os seus hábitos diários de leitura, entretenimento ou estudo. Do meu ponto de vista, a única sorte é que apesar de haver hoje tantos ditadores como os intelectuais que referi, os mecanismos democráticos e de liberdade estão solidamente implantados e qualquer outra alternativa ditatorial será rejeitada em sufrágio pela generalidade das pessoas.

Joaquim Manuel Ildefonso Dias disse...

Caro Professor Valdemar Barbosa Rodrigues;


O Senhor faz aqui um exercício que não se compreende; isto é, diz que a sua experiência como docente de 15 anos (já vasta) não lhe tira as duvidas sobre a eficácia de um tipo de ensino (que eu duvido se haverá alguém com coragem suficiente para o defender), pois que, pasme-se, logo de seguida, na definição o descredibiliza totalmente, utilizando para isso os termos, de permissivo e pouco exigente. Então como pode o senhor ter duvidas?


Reconhecerá o senhor que aqui reside uma "habilidade" a que usualmente se assiste, de dizer ainda que com hesitações, dúvidas etc. que tipo de ensino é melhor, e depois de seguida incompreensivelmente sentenciar outro.


Ora porque as coisas são o que são, e também no ensino, pode o senhor declarar, objectivamente, a que tipo de Escola é favoravél; por exemplo como a que vou transcrever abaixo, ou outra, que prefere; É este o primeiro passo.


E esse primeiro passo, todo o professor, tem o dever de o assumir perante os pais dos alunos, ainda que o tenham de o fazer em estrita articulação com os currículos escolares.
E não é porque muitos pais tem hoje opinião formada sobre o assunto e sabem qual o caminho que querem para os filhos, é porque esta é, sobretudo, uma boa atitude profissional.


"Os conhecimentos do adulto, catalogados já nos programas, não tem em si, nenhum valor formativo. Só o tem aqueles que, relacionados com os interesses próprios e espontâneos da criança, lhe satisfaçam as suas necessidades internas; numa palavra, os que, elaborados por ela, levam ao crescimento do seu espírito.
Daqui se deduz que a Escola não deve procurar, como fim, acumular conhecimentos no cérebro da criança. Deve procurar, sim, fazer dos estudos, como diz John Dewey, «servos do crescimento, instrumentos de desenvolvimento; fazer, enfim, que eles sejam uma "assimilação orgânica de origem interna" para que, bem orientada, essa assimilação conduza à conquista da personalidade, do carácter, coisas bem superiores ao conteúdo dos programas.
No seu âmbito de acção afigura-se-nos que o Método Global [no ensino da leitura e da escrita] age nesse sentido.” [O Sincretismo Infantil por J. Dias Agudo]


O segundo passo – é a forma de atingir o objectivo, definido que está no primeiro passo. Que terá necessariamente de se ir melhorando constantemente e por tentativas.



Cordialmente,

VR disse...

Estimados Desidério Murcho e Joaquim Manuel Ildefonso Dias,

Obrigado pelos vossos comentários ao meu comentário. Vou tentar ser breve e responder aos dois. Penso que a "liberdade de ensinar" é um assunto problemático, em especial nos níveis de ensino básico e secundário, pois tal liberdade tem implícita a "liberdade de avaliar o resultado daquilo que se ensina", fruto talvez da inevitável interacção entre observador e "coisa" observada proposta pela física quântica (hoje a probabilidade de o aluno ser bom e o professor mau é zero, quando antes da física quântica era de 25%). Há também a questão de saber se a "liberdade de ensinar" se refere apenas aos meios para atingir um mesmo fim ou resultado, ou se inclui também os fins ou resultados do ensino. No ensino das ciências, contudo, julgo que em relação a uns e a outros é bom que não haja grande liberdade. Deve seguir-se o método científico, aprendendo a raciocinar segundo a lógica formal (ou booleana, que devia a meu ver ser preferida à agora dominante teoria das probabilidades), e o resultado desse ensino devia, em minha opinião, ser o de permitir ao aluno, usando os meios referidos, distinguir razoavelmente bem entre um enunciado verdadeiro e um enunciado falso, tendo presente o conhecimento disponível. Na Universidade julgo que a questão é algo diferente, embora, como já disse, seja pouco favorável à total "democratização" dos meios e resultados da formação universitária, conseguida através de expedientes pedagógicos mais ou menos duvidosos. Não considero, meu caro Joaquim Ildefonso, Dewey nenhum expoente da pedagogia, e não concordo que a escola se deva misturar com a vida (incluindo a familiar, o tal "mundo da vida" de de Habermas e outros), como ele propunha. A pergunta sobre o tipo de Escola a que sou favorável é a seguinte: sei que não há escolas ideais ou perfeitas no sentido platónico do termo. Perdoe-me, mas considero-me suficientemente inteligente, porque "velho" e experimentado da vida, para não cair nessa armadilha infantil. Escrevi há algum tempo um Diálogo imaginário sobre a Escola, incluído no meu livro Ortogal - Diálogos na Curvatura do Tempo (que poderá ser descarregado em http://poemaspublicadosvr.blogspot.pt/2010/01/ortogal-2-edicao-revista-e-aumentada.html), que talvez ajude a responder à sua questão, e que passo seguidamente a transcrever no comentário seguinte:

VR disse...

«Da Escola

Fiquei curioso do que disseste, meu Mestre, a propósito da possibilidade de os filhos dos pobres e os filhos dos ricos se encontrarem nas escolas, e de aí poderem criar amizades que, pelo que dizes, podem levar mais tarde a casamentos capazes de diminuir as desigualdades existentes entre as famílias. Mas o que me intriga ― continuou Veandro ― é mais a questão do acesso dos pobres às escolas dos ricos ou, para ser ainda mais genérico, aquilo que a escola representa enquanto instituição meritocrática e, como sugeres, nesse sentido promotora da justiça. Mais concretamente, o que deve ser para ti uma escola?

― Como o nosso liceu, Veandro, a escola deve ser acima de tudo um lugar para o cultivo da amizade resultante do facto de sermos seres curiosos e de naturalmente fazermos perguntas, a nós próprios e aos outros. E de conseguirmos, uns melhor do que outros, descobrir boas respostas para as dúvidas que, trabalhando, constantemente vão surgindo. Parece-me que é aí que reside a verdadeira essência da escola, da qual tudo o mais deriva. Mas há que dizer o seguinte: para que o teu espírito possa sempre funcionar livremente, fazendo as perguntas que quer e pensando sobre o que mais lhe interessa, importa assegurar que as necessidades do corpo estão sempre satisfeitas. E importa ainda que o espírito esteja liberto de qualquer outra necessidade que o prenda, para além dessa de indagar e conhecer. Estes critérios bem aplicados penso que são suficientes para garantir que na escola, como nos mosteiros e conventos, a população é muito pequena quando comparada com a população da cidade. Ora os pobres, cujos corpo e espírito por definição sofrem de grande necessidade, estariam à partida impedidos de aceder à escola, como facilmente se depreende do que disse antes. Daí que julque, principalmente nestes casos, ser fundamental determinar com grande rigor se existe de facto essa obrigatória predisposição do espírito para o conhecimento e a indagação, ou se ela é falsa, provocada apenas pelo desejo de usar a escola para satisfaezer necessidades de ordem inferior. É isso que procuramos fazer aqui no liceu, conscientes da dificuldade do empreendimento. Evitámos fazer aquilo que num convento acharíamos injusto, e até negativo para a religião: por exemplo negar a entrada de uma noviça pelo simples facto de ela ser pobre ou de ter perdido o seu esposo. Dado que estas predisposições naturais, para a fé ou para a filosofia, são variáveis no tempo e podem até ser acrescentadas ou desenvolvidas, o que fazemos com os pobres, após a sua admissão, é observá-los com acrescida atenção e regularidade. Além disso, na nossa escola tais pobres, enquanto mantiverem a sua entrega às coisas do pensamento, ficam completamente libertos da necessidade. Para tal
usamos o dinheiro dos ricos que são admitidos e que pagam generosamente as suas estadias, às vezes sem nunca conseguirem mudar de classe. Tal como tu e Marcos, os poucos que chegam às classes mais altas, sejam eles ricos ou pobres,
passam a gozar na nossa cidade de um estatuto especial que é o de homens livres, que não trarão, como há muito o príncipe obriga aos pobres e escravos, qualquer coleira ao pescoço indicando, pela cor, quem é o seu dono. Sejam pobres ou ricos, a escola assegura-lhes até ao fim dos seus dias um rendimento digno, igual a dez soldos do reino, e a possibilidade de viverem connosco, usufruindo das
nossas bibliotecas e oficinas, e dedicando-se livremente às artes e às coisas do pensamento. Se por acaso algo lhes suceder, se abandonarem os seus hábitos ou a sua dedicação à filosofia, ou se cometerem algum crime grave, o único castigo
que a escola lhes aplica é o de já não poderem acompanhar os seus alunos, e de terem de procurar um abrigo fora da escola para viverem (viver na escola é, como bem sabes, uma opção).»

Mais uma vez muito agradecido pela vossa atenção para os meus comentários, e despeço-me desejo-vos aos dois os maiores sucessos e, acima de tudo, uma vida boa.

Com os melhores cumprimentos,

Valdemar Rodrigues

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