segunda-feira, 29 de agosto de 2011

HOMEM SEM FIM – Metáfora do pescador


Nova crónica da escritora Cristina Carvalho:

Como um pescador sentado na praia ao lado da sua cana amarela espetada na areia. Como esse pescador experimenta uma imensa alegria ao observar de soslaio, meio adormecido, que a cana vibra, que a cana treme, que a cana oscila. Como essa visão se torna realidade. Como o grande peixe lhe escapou, o enganou, o iludiu por momentos e de como o pescador, num salto, olhos arregalados e mãos areadas pega na cana, levanta-a, sente-lhe o peso e a inclinação, rejubila, arfa, transpira, empurra-a, iça-a, ergue-a, ajuda-a, levanta-a, está quase, quase na vertical, a linha transparente muito esticada quase, quase, quase parte e guincha, a cana guincha, a cana dobra, a cana verga, parece mesmo, parece mas não parece, o mar é fundo, o mar é doido, é mentiroso, é ladrão. E ele, o pescador, de pé, pés bem vincados em traço profundo na areia, a crer no que não quer, a querer no que não crê, ora, ora, hora a hora, apenas vê ilusão, vê peixe que não existe, o peixe espreita-o e não pica, não vem, não se revela. Ainda não.

Volta a espetar a cana na areia, aponta-a, ajeita-lhe o melhor dos melhores iscos, atira-a, arremessa-a, a linha escorrega num delírio de água, a água a benzer, a água a encher, a marulhar as mais doces palavras da vida.

Agora o dia quase que finda, o dia quase que morre. O homem sem fim. Deitado na areia, junto da fímbria do mar e o traço profundo num horizonte traçado separa águas e céus. Separa vidas e mortes. Separa esperanças inúteis das vis certezas.

É vontade, é abandono, é um querer, revoltear, volta e meia acreditar. Mas nada, nada se passa.

É vontade num só grito, adoecer de infinito e abocanhar a tristeza, arredondar a beleza, são milagres por cumprir, promessas para julgar.

Estica a linha e puxa a linha. O homem sem fim. Sentado ao lado da sua cana de pesca, imagina o que mais ninguém no mundo poderá imaginar: a sua sorte. Tanta sorte, tenta a sorte! Ralha a pesca, ralha o peixe, finge que vem e não vem. No final deste dia tão comprido, o homem sem fim sentado na praia espera pelo grande peixe. Não interessa quem lá vem. Não interessa quem lá vai. Aconchegando as ideias já a noite vai cerrada, já nada mais acontece. O manto do mar é negro, o profundo azul esmorece. A linha de transparências que termina em aflição desliza agora inexoravelmente para fora da boca do mar. Arrastada lentamente, trazida por mão tremente, desenhando ligeiros contornos ali, ali mesmo na superfície tingida que é água de calmaria. O homem finda e já sem sombra e já sem nada, enrola com precisão mais um dia desta vida, tristeza de coração.

E assim tudo se passa. Termina sem começar.

Vale para a pesca e vale pra tudo. O desejo é aflição, o desejo mata e mói e os recados que se perdem deixam um sulco que fere, que grita e rompe tal como a linha da cana que vai solta e vem vazia.

O que é, é. O que não é, nunca poderá ser.

CRISTINA CARVALHO

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