terça-feira, 9 de agosto de 2011

QUEM É A CÉUTA?


Já aqui publicámos textos da escritora Cristina Carvalho. Hoje publicamos parte do capítulo “Silêncios e Fraquezas” do seu recente livro “A Casa das Auroras” (Planeta Manuscrito):

"A Céuta é a mãe do Raizito.

Nunca ninguém soube como é que se escrevia o nome desta mulher por isso também nunca ninguém se importou de o dizer correctamente – se é que há uma forma correcta de o pronunciar. Em minha casa dizia-se Céuta mas sem muita certeza, era conforme a situação. Podia ser Celta, Déuta, Péula. No Natal chamava-se Céu. Apenas. Era mais apropriado.

Eu sempre disse Céuta.

Sempre ouvi dizer que esta mulher vivia ali ao pé de nós, no cimo das escadinhas que vão dar à igreja, num vão escuro e húmido duma antiga casa de família hoje desabitada, mas também nunca se soube exactamente onde. Havia gente que dizia que ela não era deste mundo dada a sua aparência física e os seus hábitos.

Saía muito cedo para o campo e trabalhava de manhã à noite como os homens. Da janela do meu quarto eu via-a saltar os degraus das escadinhas a dois e dois com os pés descalços, enormes, pernas curtas e grossas cheias de pelos e andar pela rua abaixo com passadas largas. Parecia um macaco, era o que ela me parecia e isso encantava-me. A ideia de existir uma mulher-macaco um tanto misteriosa e até medonha na mesma rua onde eu morava, que comia nacos de pão barrados com banha e recheados com torresmos e bebia canecas de aguardente ao anoitecer na mercearia da minha madrinha Crisântema, parecia-me inquietante. E era!

Um dia encontrei-a no cimo das escadinhas, agachada no último degrau; por debaixo da sua saia que exalava um cheiro nojento que se podia sentir a metros de distância, corria um fio de urina sinuoso de degrau em degrau e ela, com os olhos a luzir no escuro – era quase noite – perguntou: «Quem está aí?»

Não teve resposta porque eu desatei a correr escada abaixo e só parei à porta de minha casa a deitar os bofes pela boca. À ceia, eu disse: «Encontrei a Céuta a mijar nas escadinhas.» Ninguém comentou. A minha mãe disse: «Não andes de noite na rua. E sabes porquê? Anda um lobisomem atrás da Céuta para a comer. Isso é certo. Houve já quem o visse ao lusco-fusco, enorme, com a boca cheia de figos mas o que ele quer é comer a Céuta e não os figos. Nunca se sabe o que pode acontecer.»

“Eu acho que os figos são muito melhores que a Céuta…”

“Isso é o que tu achas mas não é o que ele… – Deus nos livre e guarde! – acha. E só está à espera de uma boa oportunidade. Dizem que será na próxima lua cheia. Aliás, é o costume, luas cheias, lobisomens, festins, Céutas.”

“Quem será esse lobisomem? O padre?” perguntei eu.

“Talvez” disse a madrinha Crisântema que costumava cear connosco depois de ter arrumado e lavado e encerado o chão da sua mercearia.

O corpo da minha madrinha Crisântema cheirava sempre a chouriços e a cera, cheiros esses que eu ainda hoje adoro. Nunca ia à igreja aos domingos quando toda a gente ia, nunca se vestia bem aos domingos quando toda a gente se vestia bem e nunca fechava a porta da mercearia, à noite.

«Um dia, quando lá chegares de manhã, tens tudo roubado, vais ver!»

Isto era o que toda a gente avisava mas ela nasceu com a rebeldia instalada na alma e até parece que fazia de propósito coisas que ninguém fazia. Por isso, gostava imenso de se abater sobre balcão de pedra mármore e observar a Céuta que ia comendo, com as unhas serrilhadas e negras, com as beiças engorduradas e com os pelos do bigode cravados nos nacos de pão, comendo-se, babando-se e cuspindo-se. Eu gostava de parar por ali nessa altura em que elas, em silêncio, se observavam de esguelha como fazem as aves de rapina lá no alto em seus penhascos. A madrinha Crisântema gostava mesmo da Céuta.

“Quero um rebuçado…”

“Toma e vai andando. Diz à tua mãe que logo lá estarei.”

O que ela queria era observar a outra, à vontade. Isso percebia eu. A outra, hoje, apresentava-se esquisita, dava que observar. Vomitou uma vez em cima do balcão todos os torresmos, um por um e depois, – isto vi eu que me encontrava escondida atrás da porta da rua pois não cheguei a sair – agarrou-se à barriga muito, muito, como se estivesse com uma grande cólica e contorceu-se com dores. Nisto, deu um grande grito cujo terrível som me chegou a picar a cara, como uma agulha, rolou os olhos em todas as direcções, espumou pelos cantos da boca e desmaiou, caindo com muito peso no chão. A Crisântema assustou-se e saíu da loja aos berros: «Acudam! Acudam, que a Céuta está a querer morrer!» Mas nada de especial aconteceu. A Céuta acordou, limpou as beiças à ponta da saia suja, endireitou-se e saíu porta fora um pouco a cambalear, é certo, mas sempre em frente.

O tempo passou, passaram-se vários meses sem que ninguém a tivesse mais visto até que um dia, já perto do Natal, surgiu no cimo das escadinhas muito gorda, muito redonda, com uma grande barriga, uma enorme barriga, prestes a dar à luz.

«Quem te fez o filho?» perguntou-lhe a minha madrinha Crisântema doida por saber como é que aquilo tinha acontecido ao mesmo tempo que imaginava coisas com padres e lobisomens, coisas de noites quentes, coisas de corpos colados, sugados, o padre no cimo das escadas e no cimo da Céuta, a saia repugnante arregaçada, uma caverna de pêlos e sons húmidos e pegajosos e ela que nunca tinha imaginado coisa assim agarrada à esquina do fontanário, a cabeça a refrescar dentro da água, o lobisomem a uivar, o padre a gemer, a Céuta a oscilar, uma confusão dos diabos, Padre, Céuta, Céuta, Padre, Lobis, Homem, Feiti, Ceira, Padra, Lhão, Homem, Lóbis, Lúpus, Pelos, Folga, Zona, Pélvis, Polvos, Tumba e Tumba e Záque, Trás!

«Na Páscoa passada comi um rabo de raia e fiquei assim… Na minha terra diz-se que as mulheres que comem rabos de raia têm filhos. Foi o que me aconteceu. Comi o rabo de raia e nem me lembrei!»

Foi assim que num dia de Natal, há muitos, muitos anos, nasceu o Raizito que ainda hoje é vivo embora já não seja nada novo."

Cristina Carvalho, in “A Casa das Auroras”, publicado em 2011 por Planeta Manuscrito

1 comentário:

Anónimo disse...

Mulher muito bonita e esmerada, era desempoeirada, muito mexida e ágil na lide, além de ser mulher de enorme ânimo e decisão.
Conta-se dela a seguinte história.
A Joana Càlôa ia usualmente levar o peixe branco a uma pensão a Aveiro. Debaixo dos Arcos postava-se, por vezes, um senhor bem vestido, de paletó, chapéu e bengala, a que não faltavam ares de alguma distinção. Sempre que a Joana passava com a sacola do peixe no regaço, o fidalgote não se escusava em dispensar um piropo atrevido à Joana. Que à primeira ouviu, o que pouco a importunou nem lhe deu crèto, pois mulher séria não tem ouvidos. Só que a cena repetiu-se, num escaramento atrevido, e era impossível à Càlôa fazer de conta que não ouvia o peralvilho, quinté parecia augado, e já começava a inquisilar. Por isso à terceira, parou, olhou o fidalgote de alto a baixo, desatou o lenço e foi-se à bolsa de onde tirou a navalha de estripar o porfírio[5]. E mostrando a lâmina afiadinha disse:
-«Crendas ver? Ó malino! Queras ficar com uma boca em baixo igual à de cima, só que ao alto, seu desbocado simprinhas? Queras frescura?... olha aqui vai -e agarrando na alcofa achapou o peixe para cima do mancatrufe, deixando-o a escorrer nhanha.
E a Joana lá foi à Pensão contar o sucedido de, nesse dia, não haver peixe.. Só que passados uns tempos, o patrão da Companha , o Sr. Cruz, grande amigo da família de Joana lhe veio dizer:
-Ah Joana!.., cachopa. Que fizestas tu ao Sr. Dr. Juiz, rapariga? Tu vais presa!...,pois atão não queiras lá ver que o pintiparado era oDr Juiz,raios…
- Ora… ora Ti Cruz: se é juiz que não achaque e falte ao respeito a quem passa.

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