quarta-feira, 3 de agosto de 2011

“UMA APRAZÍVEL NAÇÃO” - PORTUGAL VISTO PELO CIENTISTA ALEMÃO HEINRICH FRIEDRICH LINK - 1


Novo texto do ensaista Eugénio Lisboa, este dividido em várias partes dada a sua extensão (na imagem H. F. Link):

Nos séculos XVIII, XIX e XX, Portugal foi visitado por gente estrangeira dos mais variados formatos e orientações. E existem, felizmente , relatos abundantes – e nem sempre edificantes - de como estes visitantes nos viram ou julgaram que somos.

As observações destes transeuntes são sempre úteis por nos darem uma perspectiva diferente, que pode conter um lado justo, ainda que para nós inesperado, e um lado menos justo quando não mesmo ofensivo. A verdade é que o viajante num país de usos e costumes muito diferentes dos do seu próprio país tem muitas vezes tendência a só ver o argueiro no olho do vizinho. Por isso, a escritora Mary Ellen Kelly notava, com mais do que alguma pertinência, que “os nativos que batem tambores para afastarem os espíritos malignos são alvo da galhofa dos americanos espertos que passam a vida a buzinar para se desenrascarem dos engarrafamentos de tráfego.” Na realidade, o efeito é o mesmo: os espíritos não se afastam, até porque não existem, e o tráfego não se resolve, até porque existe prodigiosamente. Por outro lado, nem sempre o visitante possui nem a argúcia nem a cultura nem a sensibilidade que lhe permitam tirar substancial partido das longas viagens que faz. Acumula milhas, colecciona cidades, países, vales, montanhas, museus, mas, no fundo, observa pouco e aprende menos. Por isso notava alguém que “um turista é um cavalheiro que guia durante milhares de milhas só para se poder fazer fotografar encostado ao seu automóvel.” Viajar não chega para uma pessoa se cultivar. Tudo depende de como se viaja ou, por outras palavras, do bom uso que se dê ao viajar. Tudo depende em suma, do que já trazemos dentro de nós. Era por estas e outras que o conhecido filósofo americano Henry David Thoreau avisava: “Não vale a pena dar a volta ao mundo só para se contar o número de gatos que existem no Zanzibar.” A geografia – ou a mudança de uma para outra -, só por si, não torna produtiva a viagem. Há muito que se sabe isto ou que o sabem, pelo menos, os que não vivem à superfície das coisas. Horácio, nas suas Epítolas, cunhou-o em imperecível medalha, quando disse: “Os que se precipitam através dos mares, mudam de clima, mas não mudam de alma.” Um soldado inglês que, em 1917, andava pelo Médio Oriente, achou maneira de escrever aos seus, na distante pátria amada, nos seguintes termos: “Querida gente, eis-me em Belém, onde nasceu Jesus Cristo. Quem me dera estar em Wigan, onde nasci eu.” O nosso soldado mudara de céu e de clima, mas a alma ficara intacta, isto é, pequena e mal alimentada. Como dizia Thomas Fuller, “se um burro vai de viagem, não regressa a casa transformado em cavalo.” Às vezes, quando observamos bem o comportamento de certos viajantes, até suspeitamos de que certas pessoas só viajam para terem o prazer de poderem regressar a casa. Nem sempre se viaja com o apetite bem orientado ou, pior ainda, nem sempre se viaja com apetite. Viaja-se porque o vizinho viaja e fica mal não fazer o mesmo. Que, de faltas de apetite, está o mundo cheio! Se muitos aspirantes a turistas fossem sinceros, subscreveriam com gosto e aplauso um célebre “cartoon” do New Yorker, que dizia assim: “Henry quer que eu faça uma viagem à volta do mundo, mas eu, francamente, preferiria ir a outro lado qualquer.”

Tudo o que acima digo quer apenas servir de aviso para o cuidado que deve ter-se com os tão populares relatos de viagem. Não chega, repito, ter viajado muito e ter visto muito para se produzir um relato inteligente, justo e, se possível, profundo. De relatos incrivelmente grotescos e injustos, porque o relator é o que é e a mais não é obrigado, estão as prateleiras das bibliotecas cheias. Dou-vos só um exemplo, mas é um que vai fazer doer. Em 1780, o capitão do 99.º Regimento de Infantaria inglês, Richard Croker, passando por Lisboa, escrevia para um conterrâneo, em Londres, oferecendo-lhe as suas observações originais sobre os portugueses. Elas iam nestes termos carinhosos: “Os homens portugueses são, sem dúvida, a raça mais feia da Europa. Bem podem eles considerar a denominação de «ombre blanco» - homem branco – como uma distinção. Os portugueses descendem de uma mistura de Judeus, Mouros, Negros e Franceses, [e], pela sua aparência e qualidade, parecem ter reservado para si as piores partes de cada um destes povos.” E acrescentava, como quem deita mais sal numa ferida já assanhada: “Tal como os judeus são mesquinhos, enganadores, cruéis e vingativos. Tal como os povos de cor, são servis, pouco dóceis e falsos e parecem-se com os franceses na vaidade, artifício e gabarolice.” (1) Não há como os nossos mais antigos aliados para terem, sobre nós, estas opiniões mimosas. No entanto, e por uma questão de “fair-play”, não quero deixar de mencionar que, embora Richard Croker pensasse o pior possível dos homens portugueses, tinha, em compensação, uma opinião bem mais lisonjeira da mulher portuguesa. Numa outra carta para a pátria, dizia isto: “As mulheres portuguesas são agradáveis, elegantes no vestir, com lindos olhos e dentes e belo cabelo muito abundante: nos seus penteados misturam fitas e flores com muito bom gosto e isto mesmo mulheres de classes baixas, pois não nos foi dado ver outras. Em resumo, tem que se admitir que há mulheres mais bonitas e melhores mulas em Portugal do que na Andaluzia.”(2)

Mas o viajante que hoje nos traz aqui não pertence a esta categoria antipática a que não raro pertencem representantes acreditados da nossa mais velha aliada. O homem que atravessou a fronteira de Elvas em 11 de Fevereiro de 1798, Heinrich Friedrich Link, alemão, que se lhe vê no nome e na cara, era, para começar, um cientista, isto é, um homem habituado a observar, sem preconceitos e sem se colocar em pedestais por si próprio erigidos. Aquilo que dele vou apresentar-vos, consta do precioso livro Notas de uma Viagem a Portugal e através de França e Espanha, que Fernando Clara traduziu para a Biblioteca Nacional, acrescentando-lhe uma útil e bem informada introdução e juntando-lhe algumas esclarecedoras notas. (3) O que eu fiz foi apenas ler com não pouco gozo o livro todo, dele seleccionando, para vosso não menor gozo – espero eu –algumas capitosas passagens. O livro, como disse, não é nunca antipático, embora nem sempre seja elogioso.

“O autor do relato de viagem”, elucida-nos Fernando Clara – e transcrevo-o simplesmente, de preferência a construir paráfrases – “[o autor], que aqui pela primeira vez se apresenta em tradução portuguesa, nasceu a 2 de Fevereiro de 1767 em Poggenhagen Hildersheim, na casa adjacente à igreja de Santa Ana, onde o seu pai era capelão. Educado juntamente com a sua numerosa família (quatro irmãs e três irmãos mais novos) na fé luterana, Link faz os seus estudo liceais naquela cidade e em 1786, quatro anos depois do falecimento do seu pai, entra na Universidade de Göttingen para estudar Medicina e Ciências Naturais. Em 1790 recebe o título de doutor em Medicina e permanece naquela Universidade durante dois anos mais como docente. Em 1792 é chamado para a Universidade de Rostock na qualidade de professor de Zoologia, Botânica e Química, onde ficará até 1811. Em 1793 casa com a filha mais velha do professor e cirurgião Josephi e em 1797 obtém do duque-reinante de Mecklenburg uma licença de dois anos para acompanhar o conde de Hoffmansegg a Portugal numa viagem que tinha por objectivo o estudo sistemático da flora portuguesa. Regressado a Rostock em 1799, retoma a actividade docente e começa a trabalhar na Flore Portugaise (cujos dois volumes, publicados a expensas do conde de Hoffmansegg, surgirão em fascículos entre 1809 e 1840). Link produz ainda uma série de estudos e artigos sobre Portugal, entre os quais se encontra o presente relato de viagem.”

Fecho aqui a citação, que tem a informação biográfica suficiente, embora a vida de Link se prolongue até ao dia 1 de Janeiro de 1851, data em que viria a falecer, em Berlim, depois de uma vida cheia de obras e títulos de grande prestígio (director do Jardim Botânico de Berlim, director do Jardim da Universidade [Berlim] e do Herbário Imperial, reitor da Universidade de Berlim, membro da Academia de Ciências de Berlim, etc. etc.) Como se pode ver, um senhor ligeiramente mais qualificado do que o capitão de Infantaria Richard Croker que nos mimoseou com os qualificativos que já tive a honra de servir-vos. Não é só agora que o relato do cientista alemão chega até nós – a tradução de Fernando Clara é de 2005 – embora só agora ele nos chegue em português. Mas, como nota o tradutor, na longa e muito bem informada introdução ao seu trabalho, quer em traduções francesas ou inglesas, desde Oliveira Martins, as observações de Link têm sido compulsadas, lidas e meditadas por um leque alargado de criadores e intelectuais lusos: Maria Amália Vaz de Carvalho, Teófilo Braga, Júlio Dantas, Vitorino Nemésio, Agustina Bessa-Luís leram-no e citaram-no. Oliveira Martins, num elogio não mitigado, considera o relato de Link indispensável para um bom conhecimento do século XVIII português. Outros poderão criticar-lhe algumas imprecisões, ou vistas desfocadas, ou alguma dose de simpático paternalismo ou mesmo erros de facto, pura e simplesmente. Mas haverá sempre que ter em conta não haver relatos da natureza deste que não sofram de maior ou menor número de imperfeições. E, se a simpatia com que o autor nos olha não é garante de estrita objectividade, não raro a antipatia e mesmo a hostilidade do viajante distorcem mais o retrato do que o faz a empatia. O protocolo que preside a livros como este induz sempre uma certa dose de impressionismo e, portanto, algum teor de sondagem à vol d’oiseau. Mas, ao contrário de muitos outros viajantes, Link procura ser imparcial e defende a imagem dos portugueses contra distorções e parcialidades. Nas suas próprias palavras, que aqui cito com gosto: “Quando regressei [de Portugal], li todos os relatos de viagens em Portugal que consegui obter. Descobri que nenhum entre todos aqueles viajantes tinha visto tanto do país como nós, encontrei ainda, na maior parte deles, uma profunda ignorância da língua e uma série de notícias falsas, daquelas que só se aplicam aos habitantes da capital, mas que erradamente se haviam generalizado a todo o país. Sobre os portugueses, preguiçosos, beatos e rapaces, encontrei apenas queixas, vi com indignação que ninguém tinha descrito os encantadores vales do Minho, onde a cultura portuguesa rivaliza com a inglesa, vi ainda que ninguém louvava a tolerância das gentes do povo, da qual conheci vários exemplos (não me refiro aos padres, que se assemelham em todo o lado onde quer que um governo os apoie), vi também que ninguém elogiava a segurança num país onde, nas minhas excursões botânicas por regiões desconhecidas e cansado pelo calor, pude despreocupadamente adormecer à beira do caminho. Peguei na pena em defesa dos meus portugueses, queria descrever imparcialmente o carácter dos seus habitantes, o seu modo de vida, a sua agricultura, que em virtude das minhas ocupações eu tão bem conhecia e, sem dar por isso, uma apologia transformou-se num relato de viagem.” Note-se o carinho com que se refere aos “meus portugueses”, mas note-se, sobretudo, a pertinência com que fustiga, na maior parte dos viajantes que a nós se referem, “a profunda ignorância da língua” – mazela que desde logo impede um contacto, em profundidade, com as pessoas e com a sua específica cultura. Era o filósofo americano Ralph Waldo Emerson quem notava, precisamente a este respeito: “Ninguém devia viajar até ter aprendido a língua do país que visita. Caso contrário, fará de si próprio, deliberadamente, um perfeito bébé – desamparado e ridículo.” E note-se, por fim, o que tem validade ainda nos dias de hoje – o cuidado com que distingue “os habitantes da capital”, que lhe não merecem grande carinho, dos habitantes de “todo o país”, tão diferentes dos alfacinhas: cuidado que não tiveram, sublinha Link, os relatores de viagens, cujos depoimentos teve o escrupuloso cuidado de compulsar.

No dia 11 de Fevereiro de 1798, atravessa pois, a fronteira perto de Elvas. E logo, antes de a atravessar, vê o nosso país com evidente apreço: “Deste lado”, nota ele, “Portugal parece extraordinário. Em vez dos vastos descampados, das aldeias afastadas, encontra-se uma terra povoada por casas isoladas e dispersas, cujo aspecto parece indicar uma cultura e uma civilização superiores. À medida que nos aproximamos de Elvas vemos os primeiros laranjais abertos ao longo do caminho, apesar de em Badajoz se ver já uma grande quantidade desses frutos. O traje, mesmo do português vulgar, é melhor: um gibão castanho escuro ou preto e um chapéu são mais frequentes do que os casacos e barretes castanhos dos espanhóis. As mulheres são mais amáveis e comunicativas do que as castelhanas e parecidas com as biscaínhas, trazem geralmente o cabelo solto, apenas ligeiramente apanhado por uma fita ou por um lenço. A cortesia, a maneira de ser fácil, alegre e amável do povo mais humilde fazem com que de imediato se simpatize mais com a nação portuguesa do que com a espanhola. E esta opinião”, sublinha Link e peço, para isto a vossa atenção, “não se altera enquanto neste país se ficar entre as classes mais baixas, experimentando-se porém uma opinião totalmente oposta assim que se conhecem as classes mais altas.” Resumindo, Portugal é encantador, desde que se excluam Lisboa e as classes mais altas – já nessa altura, parece, o nosso problema estava onde supostas são estar as nossas elites... Ainda assim, não deixa de ser consolador vermo-nos deste modo acarinhados, sobretudo quando comparamos depoimentos como este com, por exemplo, o produzido pela neta do grade poeta inglês William Wordsworth, que Fernando Pessoa traduziu como quem recria poesia inglesa em idioma português. De facto, Dorothy Wordsworth, segunda filha do bardo dos Lagos, que foi casada com Edward Quillinan – nascido no Porto e um dos vários tradutores de Os Lusíadas- veio para Portugal com o marido, aqui vindo a falecer em 1847. É dela um Journal of a few months residence in Portugal and glimpses of the South of Spain, do qual se podem extrair várias e saborosas passagens, entre elas, esta, referente a animais domésticos em Portugal: “A propósito,” diz a filha do poeta e mulher do tradutor de poetas, “[a propósito], embora o nosso porco mascote fosse um porco muito bonito – um chinês estranho – os porcos desta região são geralmente terrivelmente feios. São uns animais enormes com grandes orelhas compridas, lombos imensos, erguendo-se no centro como um arco, costados ocos e cobertos de uma espécie de pelos curtos e macios, mas tão ralos, que se vê distintamente a pele preta por baixo. Apesar disso, os aldeões consideram estas criaturas como animais domésticos – que respondem aos nomes que lhes põem e vêm quando os chamam, como os cães, e gostam muito que lhes falem e [os] acariciem.” E acrescentava: “Quase todas as casas têm um cão, e são uma boa maçada estes rafeiros. Na Foz e nos arredores do Porto, vêm ladrar às pernas dos nossos cavalos, saindo de todas as portas, até que se tem uma matilha completa atrás de nós antes de chegar ao fim da rua e, se nos deixarem aí, podemos ter a certeza de encontrar outro bando à nossa espera na próxima rua.” Dorothy terminava o seu relato vingativo, desta maneira: “Há um ano ou dois os magistrados, para reduzir este incómodo, ofereceram um tanto pela cabeça de cada cão que fosse encontrado a vaguear na rua sem dono que se reponsabilizasse por ele. Apareceram inúmeras cabeças de cães para a recompensa na esquadra da polícia e o negócio da decapitação dos cães prosperou durante alguns dias, até que se descobriu que nem uma só cabeça, nem um só pelo de qualquer dos rafeiros contra os quais o edital canino tinha saído tinha sofrido, mas sim todos os cães dos fidalgos que tinham podido ser apanhados e todos os cães de luxo das senhoras...” (4)

Mas deixemos, de vez, os nossos mais antigos aliados e regressemos às notações do alemão. Atravessada a fronteira, surpreende-o, desde logo, o “leve sibilar soprado” da língua portuguesa: “Mal atravessámos o Caia”, diz ele, “chegou-me aos ouvidos o som pouco familiar da língua portuguesa. A maior parte das palavras de ambas as línguas são semelhantes, a pronúncia é extraordinariamente diferente. Ali os sons sonoros, profundos e guturais, aqui um leve sibilar soprado dos lábios, ali longas e graciosas palavras sonantes, aqui um curto palavrear entrecortado. Em Badajoz nunca se ouve falar português, em Elvas nunca se ouve falar espanhol. Quem já tiver o ouvido habituado à pronúncia diferente e souber uma das línguas, compreende facilmente a outra, ainda que não a tenha aprendido.”

Eugénio Lisboa

Continua

2 comentários:

Anónimo disse...

Como não havia de ser "aprazível" viver num país em permanente e desaforado regabofe, hoje sobretudo?! JCN

Cláudia da Silva Tomazi disse...
Este comentário foi removido pelo autor.

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