sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Portugal e a Ciência


Excerto do meu livro "Ciência em Portugal" publicado há uns meses pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, e que se encontra com facilidade em muitos supermercados (aqui texto só, sem figuras e referências):

Entre 1974 e 1986, ano em que Portugal entrou na União Europeia, em simultâneo com a Espanha, a nossa situação política passou por várias atribulações, o que em nada ajudou o progresso da ciência e das suas aplicações. Mas, a partir de 1986, com o cenário político estabilizado e com o rumo do país colocado na Europa, começaram a ser claros os sinais de mudança. Os licenciados (que, em Portugal, eram e ainda hoje são correntemente chamados “doutores”) começaram a tornar-se mais comuns e os verdadeiros doutores (isto é, as pessoas habilitadas com o doutoramento) passaram a ganhar maior visibilidade. Antes esse título quase só era reservado às pessoas que iam seguir uma carreira académica na instituição onde se doutoravam, isto é, as pessoas que iam, em princípio, ascender à cátedra. Depois começaram a surgir doutores que, nas suas carreiras profissionais, tinham de mudar de sítio para singrar na carreira académica ou mesmo abraçar uma outra carreira.

Nos anos 80 as universidades passaram também a oferecer mestrados, um grau intermédio entre a licenciatura e o doutoramento (exigindo normalmente dois anos de estudos) que antes era praticamente inexistente. Apareceram também outras formas de ensino de pós-graduação.

Para os leitores menos familiarizados com a estrutura académica, convém lembrar que a obtenção tanto de mestrados como de doutoramentos exige a defesa de uma tese, o que pressupõe um trabalho individual sobre um tema especializado. Mas, ao contrário da tese de mestrado, uma tese de doutoramento deve conter trabalho científico original. A uma pessoa que obtém em provas públicas o grau de doutor reconhece-se, em princípio, a capacidade para realizar trabalho científico independente. Tal como um estudante de mestrado, um estudante de doutoramento, enquanto prepara a sua tese, é supervisionado por um doutor (em certos casos por dois). Depois do doutoramento, que demora em regra três ou quatro anos, é recomendável que o novo doutor realize uma estada de alguns anos num local que deve ser diferente daquele onde alcançou o grau. A esse período chama-se “pós-doutoramento” e ao investigador nessa fase chama-se “investigador de pós-doutoramento” ou, coloquialmente, um post-doc. Concretizado entre nós nos últimos anos o chamado rocesso de Bolonha, ocorrido na sequência da Declaração de Bolonha de 1999 com vista à criação de um “espaço europeu de ensino superior”, a duração da licenciatura (primeiro ciclo) diminuiu, passando o mestrado (segundo ciclo), nalguns casos, a ser incluído na sequência directa e obrigatória do primeiro grau (formando o chamado mestrado integrado), ao passo que, noutros casos, era tão só uma opção de continuação dos estudos. O doutoramento (terceiro ciclo) não foi muito alterado.

O panorama do ensino superior modificou-se em duas décadas, sendo a sua marca maior a sua frequência alargada, que originou obviamente uma maior formação em média da população. Na década de 90 esse crescimento foi particularmente significativo, levando a um crescimento algo descontrolado do ensino superior privado. Assim, em 2001, já havia 631 521 portugueses com mais de 25 anos que tinham o curso superior completo, dos quais a maior parte eram do sexo feminino (366 592). Em 2008 frequentavam o ensino superior 376 917 pessoas, quase cinco vezes mais do que em 1982, e licenciaram-se 64 009 pessoas, a maior parte dos quais mulheres. Hoje existe cerca de um milhão de licenciados, cerca de metade do sexo feminino. O acesso maciço das mulheres ao ensino superior foi uma das maiores mudanças a que o país assistiu após a Revolução de 1974.

O nosso número de doutores é, actualmente, de mais de cinco por cada mil pessoas da população activa, dos quais cerca de metade são mulheres. Com o aumento do número de doutores, o sistema científico e tecnológico nacional pôde crescer notoriamente, absorvendo uma boa parte dos doutores formados. O número de pessoas em actividades de investigação e desenvolvimento era, em 2008, de 8,7 em cada mil activos (número total: 49 114 equivalentes a tempo integral), dos quais 7,2 eram investigadores (número total: 40 563 equivalentes a tempo integral), valores que, relativamente a 1982, eram, respectivamente, cerca de quatro vezes e oito vezes mais. Isto é, passou a haver não só mais pessoas qualificadas a realizar actividades de investigação e desenvolvimento como pessoas com maior qualificação capazes de realizar trabalho científico-tecnológico criativo.

O número de doutores e o número de investigadores em percentagem da população activa são apenas dois dos indicadores que testemunham o nosso efectivo progresso em ciência e tecnologia. Um outro indicador, relacionado com este, é o número de artigos de autores portugueses (ou melhor, autores com endereço em instituições portuguesas) publicados em revistas científicas internacionais. Esse número foi, em 2008, de 6758 artigos, o que corresponde a 636 artigos por milhão de habitantes, um número que é cerca de vinte vezes maior do que o que se registou em 1982 (300 artigos).

É claro que só pode haver pessoas a realizar trabalho de ciência e desenvolvimento se a sua actividade for devidamente financiada. Assim, um outro indicador do estádio de desenvolvimento de um país na área de ciência e tecnologia, que está a montante dos indicadores atrás referidos, é a percentagem do produto interno bruto (PIB) que é investida em actividades de investigação e desenvolvimento. Passámos de uma situação absolutamente lamentável de 0,3 por cento em 1982 (dos quais 0,1 por cento a cargo das empresas) para uma situação que, apesar de estar longe da ideal, é bastante mais decente: a despesa pública e privada em investigação e desenvolvimento atingiu 1,5 por cento do PIB em 2008, com 0,8 por cento das empresas, passando, portanto, a ser cerca de metade do total. Isto é, entre os sectores público e privado, gastou-se em percentagem do PIB nessa área cinco vezes mais do que se gastou em 1982. Tal só foi possível graças a importantes financiamentos concedidos pela União Europeia, no quadro das “ajudas à coesão” que se seguiram à nossa entrada na Europa.

Um facto decisivo para a canalização desses financiamentos para a ciência foi a criação em 1995 do Ministério para a Ciência e Tecnologia – MCT, ao qual se haveria de seguir em 2002 o Ministério para a Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, em 2002. No ano de 1996 foi criada, com base em organismos anteriores, a Fundação para a Ciência e Tecnologia – FCT, a agência de financiamento da investigação científica e tecnológica.

A dotação pública anual para ciência e desenvolvimento, localizada na sua maior parte no MCTES, atingiu, em 2009, um máximo absoluto, orçando em mais de 1700 milhões de euros (com a maior fatia atribuída à FCT), quando, no ano da criação do MCT, era de 440 milhões de euros. Por outro lado, no sector privado, apesar de a percentagem de orçamento de investigação e desenvolvimento a cargo de empresas ter crescido nos últimos tempos muito mais do que o orçamento público (ressalve-se que não é claro nem incontroverso o modo como esse índice é medido), ela está ainda longe da percentagem dispendida nos países europeus com a dimensão do nosso mas mais desenvolvidos.

Em resumo, o país pode orgulhar-se de ter saído, neste domínio, do grupo dos Estados menos evoluídos na Europa para “bater à porta” do grupo dos mais avançados. Por enquanto está apenas “à porta”, mas espera-se não só que entre de casa como que fique...

Portugal passou de uma situação em que a ciência era residual para uma outra em que a ciência passou a ter alguma presença e impacto na sociedade. A ciência encontra-se hoje nos jornais, onde há poucas décadas quase não se encontrava. Está hoje na agenda política quando há pouco tempo não estava. Se os números do crescimento do sistema científico-tecnológico nacional podem causar alguma admiração, esse sentimento é, porém, mitigado quando se atende ao baixíssimo nível de partida. Como veremos, existe ainda um défice a ultrapassar se atentarmos em comparações internacionais, designadamente se cotejarmos a situação actual do nosso país em ciência e tecnologia com a situação, também actual, dos nossos parceiros europeus. A maior parte dos países da Europa que estavam melhor do que nós também entretanto progrediram, permanecendo por isso à nossa frente. Aproximámo-nos dos níveis europeus, mas estamos ainda longe dos lugares de topo.

1 comentário:

Joaquim Gil disse...

E não são referidos os bacharéis? Sendo o grau mais baixo conferido (em tempos) por uma instituição de Ensino Superior, também têm importância como mão de obra especializada e com um carácter eminentemente prático. A convenção de Bolonha acabou com esse grau, passando a maioria das licenciaturas a ter a duração de um bacharelato.
No meu caso, tirei um super-bacharelato (no dizer dos meus professores) que me deu uma visão abrangente do meu ramo de estudos.
Será um bacharel um portador de um grau "de segunda"?

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