quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A SEPARAÇÂO ENTRE LETRAS E CIÊNCIAS


Transcrevo o meu artigo de opinião saído no Público de hoje:

Acabo de ler no PÚBLICO o artigo de opinião da professora catedrática da Faculdade de Letras de Lisboa, Helena Carvalhão Buescu, intitulado “Há que deixar de manipular os resultados e os factos” (31/07/2011), tendo como motivo “o ensino do Português e da literatura no ensino básico e secundário e o resultado dos exames".

Pela modéstia dos meus estudos do ensino secundário no âmbito das Letras e continuação de estudos superiores em fronteiras das Ciências, mas com o arrimo de amador constante e interessado (aquele que ama) das Belas-Letras, atrevo-me a pensar que muitas coisas negativas que ainda hoje se passam no âmbito das humanidades têm raízes seculares nesta análise:

“Podemos situar no segundo terço do século XVIII a generalização em França, na opinião esclarecida duma sensibilidade intelectual que opõe as Letras às Ciências, dando às ciências uma prioridade que o ensino lhes recusa. As Letras correspondem a uma perda de tempo e de inteligência. As Ciências, graças às explicações técnicas, permitem melhorar a condição do Homem na Terra” (“Da história da ciência à história do pensamento”, Georges Gusdorf Editores Livreiros Ld.ª, Lisboa 1988. pp. 30-31).

Mas porque a história não é (sob o risco de estar a dizer um disparate) um fluir de acontecimentos sem retorno, ao contrário das águas do rio que não deixam que a pessoa se banhe duas vezes na mesma água, sendo feita de avanços e retrocessos reproduzo um pedaço de um outro texto:

“O domínio da Matemática pressupõe a formação filológica para que o professor possa não só interpretar, mas também corrigir e melhorar Euclides, Arquimedes, Ptolomeu e todos os outros príncipes e heróis da ciência matemática” (Petri Rami actio secunda pro regia mathematicae professionis cathedra, 1566, em P. RAMI e Talaei Collectaneae”, p. 541).

Regressando ao século XXI, reproduzo, sem, de forma alguma, querer desmerecer a sua acção prestimosa no âmbito do desenvolvimento da investigação científica, uma entrevista do então ministro da Ciência e Tecnologia e Ensino Superior Mariano Gago acerca “da criação de cursos curtos de especialização tecnológica no ensino superior (tendo na altura sido aprovados 70) ", através, segundo ele próprio, “de formações curtas e de acesso fácil” sendo para o acesso a estes cursos abolida a prova de Literatura Portuguesa, “um funil social” (PÚBLICO, 07/11/2005).

Ou seja, desta forma ficou-se a saber que a Literatura Portuguesa, leitura e interpretação de obras literárias dos seus maiores vultos, tem impedido o avanço tecnológico nacional por dificultar a entrada de iletrados no ensino superior, sendo esse obstáculo removido com o aparecimento das Novas Oportunidades e Provas de Acesso ao Ensino Superior para maiores de 23 anos.

Os resultados de uma política em que se chegou a defender os erros de ortografia desde que o professor percebesse o que o aluno queria escrever (numa espécie de advinhação ) estão bem patentes numa geração de uns tantos alunos que lê mecanicamente os textos sem saber interpretá-los. Este divórcio entre Letras e Ciências continua a verificar-se entre o Português e a Matemática sem que os seus responsáveis governamentais se tenham apercebido que para resolver problemas matemáticos há que interpretar devidamente os seus enunciados.

Os maus resultados obtidos nos últimos exames nacionais destas duas disciplinas assim o diagnosticam e o provaram, dando razão a Nuno Crato ao receitar uma terapia conjunta para debelar esta verdadeira gangrena do ensino, através do aumento das respectivas cargas curriculares.

É o primeiro, mas seguro passo, a que outros se seguirão, por maiores que sejam os entraves no caminho de um marcar passo, ou mesmo retrocesso, do sistema educativo nacional.

9 comentários:

São Canhões? Sabem mesmo a manteiga... disse...

os maus "resultados" derivam de muitos outros factores

basta ver que na Sobreda na Daniel Sampaio houve anomalias relativamente à média nacional

e apesar de bons a matemática não era uma turma filológicamente muito desenvolvida

a revisão de 74? retirou o acento das terminadas em mente...

o ensino do português centrou-se mais na análise de textos

do que na escrita

por falar nisso um blogue pessoal para cada aluno como tarefa a desenvolver

além de apelar ao egotismo adolescente
(e não só)
faria mais pela língua escrita
do que duas horas extra de análise gramatical
ou tempos verbais

São Canhões? Sabem mesmo a manteiga... disse...

dantes séculos atrás
havia professores que advogavam e encorajavam a escrita em diários

acho que foi o síndrome Anne Frank

Clubes de leitura com livros dos alunos disse...

resumindo desenvolvimento da leitura e escrita pessoal ( personalização como figura d'estylo

Rantanplan disse...

Sou adepto de Nuno Crato mas ontem, na comissão parlamentar, o sr. ministro disse algo que me meteu medo. "Vamos rever os curricula de certas disciplinas de modo a adaptá-los a um ensino obrigatório de 12 anos". Espero que não seja mais do mesmo feito anteriormente.

Rui Baptista disse...

Prezado "disse":

Eu sei que é sempre perigoso generalizar.

Mas a minha opinião (e as opiniões valem o que valem, como se sabe: ou seja valem pouco sob o ponto de vista da Ciência) é a de que a Língua Pátria é a argamassa da nossa forma de bem nos expressarmos que tanto é útil aos cientistas, como aos apresentadores de televisão e ao próprio homem comum.

Um cientista que diga “supônhamos”, um professor que num papel escreva “Senhor Presidente do Concelho Directivo (como já vi escrito), um aluno que em cada três palavras dê um erro ortográfico, o homem comum que dê pontapés na gramática com a habilidade de um Cristiano Ronaldo a chutar à baliza, tornam-se mais notados no seu dia-a-dia do que um ilustre médico que não saiba extrair uma simples raiz quadrada, um professor de Português que não saiba somar fracções ou um aluno que “não entre” na Matemática.

Ou seja, o ignorante das Ciências defende-se melhor do que o ignorante das Letras. Mas cuidado! Não se pense com isto que estou a fazer o elogio ( ou apenas a descriminar, com “e” ) qualquer destas formas de ignorância. Ambas são reprováveis.

Cordialmente.

Leonel Morgado disse...

Só faltou mencionar no texto algo que me preocupa mais: o olhar torcido que deitam à ciência a generalidade das elites de letras, que não raramente desprezam a matemática e a lógica, que antagonizam o saber científico como "de trolha" face ao saber "ilustre" das letras e da "cultura"... assusta-me isso mais do que os erros de ortografia (mais facilmente corrigíveis).

Rui Baptista disse...

Prezada “Andabata Mandelbrot”:

Quiçá porque a ciência exerce uma espécie de magistratura no domínio da Cultura, a defesa das Letras justifica-se porque ainda em nossa contemporaneidade (1964), em França, os decanos da Faculdade de Medicina e da Faculdade de Ciências da Universidade de Paris “preveniam os interessados e as famílias contra a deplorável perda de tempo e de inteligência (repito, inteligência) que representaria um estágio na classe de filosofia” (Georges Gusdorf).

E coisa digna de registo: são os próprios alunos de Medicina que inquiridos na radiofusão sobre esta posição responderam que lhes “parecia, pelo menos, impensada”.

Este descabido ataque à matriz de todas as ciências é tanto mais insólito quando gigantes da Ciência se distinguiram, outrotanto, no frutuoso deambular pelos caminhos de uma Sabedoria sem fronteiras. Três exemplos, daqueles que me surgem à memória: Ernest Krestchemer, psiquiatra alemão, doutor “honoris causa” em Filosofia pelas Universidades de Wurzburgo e Católica do Chile; Bertrand Russel. matemático inglês, Prémio Nobel da literatura (1950); e Jacques Monod, bioquímico francês, Prémio Nobel da Medicina (1965).

Se reparar, e porque foi no campo do ensino em Portugal que me debrucei sobre esta temática, ninguém teve o arrojo de tirar dos programas escolares do secundário os nomes, v.g., de Arquimedes, de Lavoisier ou de Pasteur.

Porém, durante anos, na disciplina de Português as grandes obras dos maiores da nossa Literatura deixarem de ser de leitura programática sendo substituídas por resumos de escassas páginas ou mesmo por textos sobre o programa televisivo “Big-bother”. Mesmo ainda hoje, Camilo, esse grande escritor do “Amor de Perdição”, e polemista temível de cacete na mão, deixou de constar dos respectivos programas.

Mas não se veja nisto um menor apreço pelo saber científico e pela tecnologia de somos herdeiros para benefício e bem-estar da própria Humanidade, seja no campo da Biologia, da Matemática, etc.

No meu artigo escrito um tanto “ao correr da pena”, como diria Eça, apenas me motivou o desejo de uma espécie de Robin dos Bosques: dar prestígio às Letras. Mas sem o roubar ( ou sequer beliscar) às Ciências. Os meus pés assentes em estudos científicos jamais permitiriam esse roubo que a minha consciência reprovaria sem perdão.

Esta temática merecia que fosse escalpelizada em comentários que a tornassem ainda mais rica. Um desses passos foi por si dado, e que eu agradeço.

Cordiais cumprimentos.

Rui Baptista disse...

No meu comentário a “Andabata Mandelbrot” (4 Agosto; 11:01) um lamentável lapso fez com que tivesse deixado perdido na floresta que o “ etc. ”permite, mas não desculpa, não tendo apresentado, para além dos exemplos da Biologia e da Matemática, o exemplo clássico da Física, falta que sou uma releitura do supracitado comentário fez vir à luz do dia.
Faço votos que o meu amigo Professor Carlos Fiolhais me desculpe a omissão involuntária na sua benevolência de destacado académico desta disciplina universitária. Mas estou esperançado em me poder redimir da minha omissão dando-lhe o destaque que merece na medida da minha, desde já, declarada ignorância.

Assim, o papel da Física moderna assume o seu reinado, de pleno direito por um passado secular, no campo da Medicina (em que muitos dos avanços se ficaram a dever aos meios auxiliares de diagnóstico), da Neurobiologia (com a visualização dos meandros do cérebro através do TEP, tomografia axial computorizada, da Astronomia (cujas conquistas iniciais se ficaram a dever a Galileu pela descoberta do telescópio), da Engenharia (civil, mecânica, electrotécnica e espacial), da Ciência computacional ( no percurso do caminho da era robótica), etc. E neste “et caetra”, cabe um mundo enorme que a minha pequenez científica não consegue abarcar por maior que seja a minha boa vontade de me redimir da minha omissão “física”. A exemplo do advogado de Luís XVI, “venho aqui com a verdade em uma das mãos e a cabeça na outra, pedindo-lhes que ouçam a primeira antes de dispor da segunda”.Outros, melhor do que eu, poderão dar um vontributo valioso numa discussão secular em que se discute o divórcio entre as Letras e a Ciência, uma divisão artificial que tão prejudicial tem sido a ambas nas aprendizagen ecolares do aluno completo, através de uma educação integral.

P.S.: Quanto aos erros de ortografia(mesmo que não assumam aspectos complexos e patológicos de disortografia) preocupam-me numa época em que os correctores de texto dos computadores contribuem para que se tornem numa praga em cartas, documentos ou simples papéis com o rol das compras de supermercado manuscritos.

Rui Baptista disse...

Rectificação ao meu comentário (4 Agosto;17:02):
- 3.ª linha, 1.º §: rectificar "não tendo apresentado" para "por não ter apresentado".
- 5.ª linha, mesmo §, rectificar: "sou" para "só".

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