No De Rerum Natura tem-se dado largo destaque à ideia de que a escola deve proporcionar aos alunos, desde idades muito precoces, textos e livros clássicos, tanto da literatura nacional como universal. Ideia que tem, de resto, larga confirmação empírica no quadro teórico cognitivista, estando confirmadas vantagens decorrentes da sua prática, nomeadamente, na extensão do vocabulário e no aperfeiçoamento das estruturas frásicas, bem como nas linhas de raciocínio que proporciona. Além, claro, de ter justificação em termos de manutenção e ampliação cultural, de acesso a sentimentos, pensamentos e comportamentos diversificados, do debate e condução axiológica e, não menos importante, da fruição estética a que dá acessso.
Assim, é estranho constatar que aqueles que mais responsabilidades têm na difusão e desenvolvimento desta ideia – professores, pedagogos, investigadores, construtores de currículos e manuais, literatos de nome firmado... – a declinem de um modo que, as mais das vezes, me parece ligeiro e pessoal, pouco informado sob o ponto de vista do conhecimento sério disponível.
Dou um exemplo que me chegou recentemente às mãos. Trata-se de um licenciado e doutorado em Humanidades, docente ligado a um departamento de Letras duma universidade portuguesa com responsabilidade na formação de educadores e professores, orientador de dissertações académicas na área da educação, com responsabilidade na organização de encontros sobre literatura para a infância. E, não menos importante, escritor.
Um texto, já antigo, da sua autoria começava da seguinte maneira: "A literatura não é para toda a gente, e muito menos para crianças e adolescentes (falamos de literatura no seu pleno sentido, independentemente das suas manifestações especiais). A literatura exige maturidade, sensibilidade e competência cultural e linguística. É contraproducente impor o seu estudo no ensino básico e secundário nas escolas portuguesas."
E, mais adiante: "Como dizia Eugénio de Andrade, «a poesia é subversiva». E como tal não deveria ser ensinada às crianças e aos adolescentes. Nem eles a podem entender, nem ela foi escrita para ser dissecada, desvirtuada por professores que, na sua maioria, ou se ficam pela rama na análise, ou a destroem (...) Camões, Bocage, Pessoa não precisam de ser tratados nas nossas escolas para não caírem no esquecimento. Estão acima de tudo isso. Causa mais estragos à sua memória e estéticas o ensino, pois afunda-os na vulgaridade e no «já passou de moda»."
Quase a terminar: "À aprendizagem da literatura no ensino básico e secundário, preferimos o ensino da mesma nos cursos de letras das universidades. Como dizíamos no início, a literatura não é para todos; é apenas para alguns. Se já é difícil para os especialistas, tanto escritores como críticos e teóricos compreenderem a totalidade de um texto literário criado por si próprios ou por outrem, quanto mais para crianças e adolescentes que mal sabem ler o português!"
Curiosa, tentei perceber se a tese da pessoa em causa se mantinha. E contatei que sim numa entrevista, não datada mas que se me afigura posterior ao texto em causa. Dela retirei o seguinte extracto:
- "Quais são as suas referências literárias? São tantas... Eça, Camilo, Vergílio Ferreira e Saramago. Zola, Flaubert, Shakespeare... A Bíblia, Homero e Virgílio...
- De que lado se situa na polémica sobre «Os Lusíadas»? Eu sou muito realista. Acabava com Os Lusíadas e com o Pessoa e outras obras no secundário. No secundário não há maturidade para a cultura erudita. É como dar pérolas a porcos. Na universidade é que devem aparecer.
E aqueles que não forem para a universidade? Há uma grande parte da população que não vai contactar com obras como essa ou outras que se consideram de qualidade, importantes.
Por que é que o pacato povo português tem de saber quem é o Camões e o que são Os Lusíadas? Já dizia o Fernando Pessoa: «a cultura não é para todos», a cultura erudita. Não podemos obrigar toda a gente a gostar de música clássica.
- E o que é que se lhes vai dar então? É que as obras de qualidade são difíceis. Os miúdos vêem-se à nora para ler aquilo. Aquilo não os entusiasma. Muitas vezes estraga-se o incentivo à leitura. Os miúdos devem começar a ler coisas simples. O gozo pela leitura vai crescendo. A partir de determinada altura vamos tendo necessidade de ler coisas mais importantes. Darmos aos miúdos de 14, 15 anos uma obra como Os Lusíadas é desmotivá-los.
Camões e essas obras complicadas são cultura erudita, não são cultura popular. É por isso que a literatura popular tem muito êxito, a música pimba tem êxito, o escritor pimba tem êxito, as novelas pimba têm êxito... O povo gosta de coisas simples, que entenda. Depois, se ele entender essas coisas simples, pode partir para coisas mais complicadas. Isto é a minha visão das coisas. E na escola devia ser assim.
- Mas há uma parte (pequena, é certo) do público estudantil que já tem, naturalmente, o gosto pela leitura aos quinze anos. Esses são excepções.
- Mas assim ainda vão ser mais excepções... Se não forem confrontados com essas obras e não tiverem pais com boas referências, acabamos por perder essa pequena percentagem de excepções. E por outro lado, não se cairá numa estupidificação do ensino secundário, que fará com que os alunos cheguem à universidade sem conhecimentos mínimos? Mas é que neste momento isso está a acontecer. Mesmo com os programas que há. Eles chegam à universidade e não vêem nada. À excepção de um caso ou outro.
- Então é uma desistência? Eu acho que a questão é muito complicada. As escolas públicas são más. Os bons alunos nos EUA, na Inglaterra, na França, na Espanha não vão para as escolas normais. Aqueles alunos que sobressaem da média vão, desde cedo, para escolas especiais e são acompanhados duma forma diferente. A "cambada", digamos assim, vai para a escola normal. Esses são a força de trabalho. A "elite" (e a "elite" não significa os filhos dos ricos; a selecção, por exemplo nos EUA, é pelo mérito próprio) vai para escolas especiais. Aqui em Portugal misturam tudo. Neste momento até os deficientes andam nas escolas normais. É uma tentativa de integrar o deficiente. Mas isso é negativo porque o deficiente não consegue aprender da mesma forma que aprende o outro. Em Portugal é muito difícil um bom aluno alcançar aquilo que deseja. Porque tem de estar à espera dos outros, perde muito tempo. E se estivesse numa escola especial...
- É por isso que o nosso país não tem a mesma massa cinzenta que outros têm em termos científicos, por exemplo? Em Portugal começamos tudo muito tarde, muito lento... Porque a sociedade é lenta. Quando vou ao estrangeiro e depois volto, chego aqui e vejo tudo muito lento, muito pacato. A tentativa de democratizar o ensino pode ser perniciosa, negativa.
- Voltemos a «Os Lusíadas». Ajudará substituir «Os Lusíadas» pelo «Memorial do Convento»? O Memorial do Convento não é também uma obra difícil? E se, para acabar com as obras difíceis, as substituem por obras más? Pois... Mas uma coisa é literatura da escola e outra coisa é a literatura que a gente lê. O miúdo tem que descobri-la, não é o professor. Tem de haver já uma certa sensibilidade na pessoa. Agora esta conversa dava pano para mangas..."
Fica ao critério do leitor retirar as suas próprias ilações do que acima leu.
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11 comentários:
Cheguei ao fim...
a poesia é subversiva....é ?
e a subversão existe ou só insiste?
toda a canção do meu bailado mente
toda essa dança de canção inquieta
serviu de farsa, máscara de gente
ao pêso inútil, morto do poeta
E como tal não deveria ser ensinada às crianças e aos adolescentes....só a partir dos 40 pra cima
Nem eles a podem entender, nem ela foi escrita para ser dissecada, desvirtuada por professores que, na sua maioria, ou se ficam pela rama na análise, ou a destroem (...) Camões, Bocage, Pessoa (os restantes são sub-poetas..
não precisam de ser tratados nas nossas escolas para não caírem no esquecimento. Estão acima de tudo...ópinhões
a parte do desvirtuada...é significativo duma linha de pensamento que põe as palavras num pedestal
o resto é muito artificial
eu que conheço todo o mundo e ninguém
e falo do que não sei mas falocraticamente falo
Será que esse senhor, também se opõe a que se ensine matemática e ciências na escola pré-universidade? É que toda a gente diz que também são muito difíceis...
Certamente que na opinião dele, só se devia ensinar a ler e escrever, praticar desporto e fazer trabalhos manuais...
Excepto para as elites, onde ele certamente se inclui...
Como diria o Zé Povinho, "Há muito doutor, muito burro"
"No secundário não há maturidade para a cultura erudita. É como dar pérolas a porcos"
É isso que são os alunos do secundário'
Porcos?
"Os miúdos devem começar a ler coisas simples"
Quais? Os textos das revistas cor de rosa? Ou apenas jornais desportivos? Ou o bréu-bréu parlapié dos programas televisivos?
"O miúdo tem que descobri-la, não é o professor"
Pois. Deixem-nos apenas com os jogos de computador e não os chateiem que eles assim até aprendem mais sobre português e literatura portuguesa do que esse professor é capaz de ensinar.
Não conheço a peça mas, pelo que escreve, não passa de mais um pintalegrete a armar-se ao pingarelho. Assim vai a nossa universidade.
Sendo sincero, quando novo(há 10 anos atrás) só aprendi a dar valor a literatura a que ele se refere como sendo "erudita" por inspiração de um professor de literatura que amava o que fazia e transmitia essa empolgação aos alunos.
A tragédia é que eram poucos os que realmente liam os livros, a maioria recorria a resumos da internet ou aos livros didáticos que continham os resumos da obra.E eu era um deles.
Até o dia em que me deparei com As Memórias Póstumas de Brás Cubas, um clássico da literatura brasileira. Porém, como todo muitos, julgava o livro pela capa, ou, em outras palavras, pela idade.
Esses livros antigos são dificeis e complicados, pensava comigo. Mas baseado em que eu dizia isso?
Para responder a essa pergunta, resolvi abrir o livro e ler um pouco. Não era tão complexo quanto pensava, mas não menos fascinante. Aquele objeto, conseguiu prender a atenção de um jovem indisciplinado de 15 anos de idade durante o dia inteiro.
Algum tempo depois resolvi falar com meu professor de literatura sobre as minhas "descobertas" no campo das letras.
Ele respondeu, não contendo a felicidade:
- Por mais que eu saiba que a maioria dos alunos não lêem nada, eu não posso nunca, em hipótese alguma NEGAR o conhecimento das obras clássicas, mesmo que seja em vão, se pelo menos um aluno se entusiasmar como você, minha missão foi cumprida.
Se trata de uma realidade brasileira é claro, visto que é o país em que vivo, mas penso eu que, pensar em termos de "pérolas" e de "porcos", ou em "eruditos" e não "eruditos" é lançar o ensino no fundo do poço.
Foi através destes ditos clássicos, que me apaixonei por História e Geografia, assim como foi lendo Lusíadas que redescobri as histórias de Portugal que me eram contadas nos livros didáticos. Mas como disse, se trata de uma experiência pessoal e não da opinião de um especialista.
Em parte percebo a argumentação do autor, já a solução é outra conversa.
Lembro-me bem das aulas de português no liceu, por volta do 10º e 11º anos. Pediam-nos para interpretar poemas românticos e outras coisas para as quais não tínhamos experiência de vida, e por isso não as podíamos entender.
Não tem nada a ver com ser complicado ou simples, e por isso a comparação com a matemática não faz qualquer sentido.
Concordo que alguma literatura é ensinada demasiado cedo, mas de maneira nehuma que simplesmente se passe tudo para a universidade.
Já os Lusíadas, acho que é óbvio que se deve manter. Não pela forma (essa sim interessa aos universitários que seguirem esse caminho), mas essencialmente pelo conteúdo que de outra forma muitos nunca conhecerão.
Há tempos houve alguém que disse que vivemos numa sociedade que valoriza demasiado a literatura e os escritores. Tão distanciados da realidade da sociedade andavam alguns prémios nobel da literatura, nomeadamente sobre utopias que sempre se revelaram serem apenas isso mesmo e fontes de miséria e sofrimento, que dá que pensar se não será mesmo assim.
Olhando para trás, não tenho dúvidas de que muitas obras que me foram impingidas no liceu, o foram em boa parte por essa cultura de excessiva valorização da literatura e da forma em detrimento da preparação prática e pragmática para a vida. Não tenho memória de nenhuma obra que tenha lido nessa altura que me tenha marcado e possa dizer que me foi útil para a vida. Não por culpa das obras, mas provavelmente porque andávamos demasiados ocupados com questões como a métrica da poesia e afins...
Concordo em absoluto com o anónimo das 20:25 de 31/8.
Dervich
Pois, o povo é pacato, mas de cérebro e de acção. Cristalizou-se na mediocridade vigente, esquecer a história, apagar o passado à força se necessário, é a desconstrução da civilização ocidental, fazendo-a esquecer os grandes homens e feitos daquelas épocas, histórias essas que pecam por defeito no relato dos factos, pois existe uma pantofobia medieval que nem ao diabo lembraria. Para além disso, a questão literária é também importante, pois poesia e erudição fazem parte das tradições humanas há milhares e milhares de anos, até com isso querem acabar.
Hipérbole à parte, no dia em que o povo português passar a desconhecer Camões, o lírico e o épico, o "rectângulo" deixa de ter razáo de existir como nação no contexto europeu e mesmo até universal. É ele que nos salva, dando-nos alguma dimensão. JCN
é preciso ter coragem para ter esta opinião, era exactamente o que eu diria quando andava no secundário, detestava as aulas de português a começar pelas redações que era obrigada a fazer, a poesia chata e cheia de segundos sentidos incompreensiveis, as cantigas de amor/amigo/etc que era preciso um dicionário para as perceber, etc etc. continuo "burra" em poesia mas se n tivesse sido obrigada a ler na escola ainda estaria mais "burra".
Concordo com o anónimo das 20:25 de 31/8.
Mesmo assumida, a "burrice" não deixa de ser "burrice"! JCN
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