terça-feira, 30 de agosto de 2011

Xarope para almas sensíveis que não entendem o que se passou em Londres, Manchester, etc.


Texto de LE BRIS, Marc — Et vos enfants ne sauront pas lire... ni compter; la faillite obstinée de l'école française. Paris: Stock, 2009. pp.184-8, traduzido
por António Mouzinho (para ler com aspirina e um copo de água à mão e um exemplar dos «Dois anos de férias», de Júlio Verne, por perto)

«[...] Um romance conta como crianças puseram a funcionar uma povoação inteira após o desaparecimento dos adultos. É um romance para crianças: «As crianças de Timpelbach», de Henry Winterfeld [na versão franco-belga; «Timpetill — a cidade sem pais», no original alemão]. Esta ficção agrada bastante aos miúdos de dez-doze anos. A escola possui vinte cinco volumes, para permitir a utilização na leitura de seguida — em voz alta! [...]

[...], para apimentar a história, paramos de vez em quando a leitura para discutir o que fariam, o que gostariam de fazer, se... «Imaginem que os vossos pais a sério tinham desaparecido uma manhã da nossa terra, daqui, sem mais nem menos... Nenhum adulto à vista, nem mesmo a mamã ou o papá para preparar o pequeno almoço, nem carros, nem padeiro, nem professor, ninguém...»

Propus esta discussão três vezes, a turmas diferentes. A primeira vez por acaso, as seguintes para verificar. Das três vezes, passou-se exactamente a mesma coisa.
Eles apoderam-se da ideia. Sozinhos na terra... não se lembram logo do padeiro. A sua vez só chega quando começam a reflectir, a afinar a sua eficácia. A primeira acção geral é quebrar as loiças da casa — não invento nada, fui o primeiro a surpreender-me. Porquê? Porque fazem o que quiserem, podem fazer asneiras. Partem jarras. Penso que é o primeiro disparate que lhes vem à cabeça, que quebrar recipientes deve ser um dos fantasmas habituais... Não sei, não entendo porquê partir loiça. Depois, a seguir às jarras, organizam-se: os vidros e, logo a seguir, as montras. Incluindo, rapidamente, a montra do padeiro, cujo conteúdo interessa. São sobretudo os rapazes que propõem. E a excitação colectiva sobe. Querem todos falar, esticam os corpinhos, poisam um joelho na cadeira, para se fazerem maiores, levantam a mão, esticando o braço para o tecto para falar antes dos outros, ou falando sem levantar a mão… Depois das montras, as vidraças da Câmara, os vitrais da igreja, os vidros da escola, a seguir o carro do presidente da Câmara, que é bem bonito, o meu, os computadores da escola! Todos os símbolos são atacados — da autoridade, a princípio; de seguida, sem parar, de riqueza, porque, no nosso mundo moderno, essas coisas confundem-se. Os computadores da escola, de que gostam tanto, escavacam-nos.

As meninas — não faço sexismo, não tento vergar-me a uma problemática pré-definida, politicamente correcta —, essas, são mais calmas, contentam-se com rir das incongruências dos rapazes, chamam a atenção para o facto de ter sido o gordo guloso que se lembrou da montra do padeiro… Rapidamente, logo que conseguem falar, propõem procurar os pais desaparecidos, preocupam-se com o que vão comer ao almoço, acham estúpido partir os computadores porque mais vale guardá-los para fazer jogos. E pensar que são os rapazes que gostam tanto disso.

De todas as vezes há mesmo um ou outro que resolve os seus problemas de segundo filho, que se propõe matar o mano mais novo ou mais velho, atando-o ao poste de tortura, atirando-o pela janela, ou com a espingarda do papá… Chamo-os à realidade, ao realismo, mas eles mantêm a história. Fico de rastos.

Esse assassinato é fictício. A história de partida é um romance, eles sabem que é uma ficção. Aí, podem matar o mano. É ficção, mas as pulsões estão lá, são brutais, são violentas, imponderadas, poderosas, terríveis. É impressionante, muito animal. Tento tranquilizar-me: eles exprimem-se num quadro imaginário, como em sonhos. Freud explicaria facilmente a questão.

Mas depois lembro-me do Maio de 68, quando o meu liceu [os três anos finais: o complementar, na educação francesa] se pôs a eleger uma comissão de greve e que educadamente, colectivamente mas a frio, conscientes dessa força novinha em folha da massa que se organiza e da importância do precedente, recusámos obedecer ao vice-reitor [«censeur», no original] que nos intimava a voltar às aulas. O irmão mais novo de um externo foi dizer aos amigos do 3.º ciclo do básico [«collège», no original] que o liceu estava em revolução. A época era de agitação. Os colegas deduziram… não, eles não deduziram nada. Partiram tudo. Começaram pelos interruptores, depois os vidros e as portas, não obedecendo a ninguém, entregues às suas pulsões infantis que são tudo menos franzinas, correndo em grupos ululantes duma turma para outra, mudando de direcção como os estorninhos no Outono, seguindo o último comando sedutor gritado por este ou aquele... A directora do ciclo só conseguiu salvar o estabelecimento ao ir buscar representantes da dita comissão de greve do complementar que alcançaram, como única autoridade reconhecida, a reposição da ordem. A comissão de greve não pedia que se partissem interruptores.
Aqui está o que crianças de onze anos querem fazer, se foram autónomas… Isto não corresponde, de forma alguma, às teorias que eu tinha. É o que querem fazer, virtualmente, ficticiamente, escondidos sob o véu do imaginário. Mas talvez, se fossem entregues a si próprios, numa verdadeira autonomia infantil, na minha escola, durante uma hora em Maio de 68, ou nos nossos dias, perante um automóvel qualquer a arder — talvez passassem aos actos.

Estou persuadido de que crianças modernas de dez anos, entregues vinte e quatro horas a si mesmas, sem adultos, em grupo, estão em perigo: à noite haverá um ferido, no dia seguinte um morto. É isto a autonomia da criança. A autonomia da criança é uma mentira. Esta mentira é um crime.»

Marc Le Bris

3 comentários:

Dis aliter visum disse...

Conheço uma história similar com adultos.
Certo advogado que acumula a advocacia, ilegalmente parece-me, com a docência nos cursos das Novas Oportunidades, para se fazer valer e assim obter grandes reduções de horário, disse à directora que podia fazer o que lhe apetecesse a certa docente com quem ela embirrava porque, mesmo que a outra fosse para tribunal, enquanto não viesse a sentença era inocente. E como o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa está asfixiado com processos, isso levaria muitos anos e, entretanto, a outra desaparecia.
E não é que a directora resolveu mesmo seguir a sugestão e cometer toda a espécie de arbitrariedades, inclusive marcar faltas injustificadas?

Eliminem as regras de educação, retirem os limites éticos, dêem autonomia às instituições sem avaliar o trabalho produzido, ou façam desaparecer o temor da justiça e vão ver a animalidade a brotar à superfície do indivíduo e a destruir a coesão social.

ND disse...

então e o o xarope que permite adultos olhar para outros adultos ao mesmo nível?
http://news.sky.com/home/business/article/16046645

Aqualung disse...

Lord of the Flies...

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