quinta-feira, 18 de agosto de 2011
PS – I LOVE YOU! I MISS YOU SO MUCH!
NOva crónica da escritora Cristina Carvalho:
Ontem - Antigamente, quando havia aqueles colossais guarda-vestidos que ocupavam uma parede inteira dum quarto de dormir, enormes, compactos, maciços, sérios e sisudos, a vida decorria serenamente sobressaltada cheia de segredos escondidos e silenciosos, a coberto de paredes de madeira perfumada. De boa madeira. Esses móveis de ar carrancudo continham, geralmente, do lado esquerdo os fatos do senhor e do lado direito, os vestidos e casacos das senhoras. Nas casas mais abastadas, com mais divisões, havia uma delas destinada a albergar esses colossos e então, um inteirinho era para o senhor e o outro, para a roupinha da senhora.
Dizia eu que os segredos que esses monstros guardavam eram tesouros inimagináveis que punham em risco permanente as vidas regaladas, confortáveis e bem alimentadas dos cavalheiros que lá guardavam as suas indumentárias: as calças, cada par em seu cabide, os fatos completos ou simplesmente as casacas. Por debaixo destas sombras sem corpo arrumava-se os vários pares de sapatos e botins. Chapéus à parte.
Cada casaca tinha pelo menos quatro bolsos, dois por fora e dois por dentro. Quatro bolsos, quatro abrigos, quatro cantos de cotão, muito amor e algodão!
Mas… como eram ardilosos e secretos esses quatro bolsos! Tanto amor e sedução, tanto caso amarrotado em bolinhas de papel escondidas na escuridão mais profunda de qualquer casaco e seus bolsos cosipados.
Chegava então o dia em que a senhora resolvia arrumar o mostrengo e com a ajuda da criadagem limpar tudo muito bem limpo, tirar todos os fatos, desarrumar os sapatos, soltar do alto os chapéus e de repente, ai! ai! ai! soltava-se a bolinha de papel amarrotado, escapulia-se, rolava pelo chão, escondia-se em vão debaixo dum qualquer tapete sob o olhar precavido e sempre atento da dona da casa, também dona dum certo coração. De seguida, ela dobrava o seu corpo delicado e pouco habituado a torturas inesperadas e com os dedinhos em pinça, cuidadosamente, conseguia apanhar a bolinha de papel. Depois, cerrava os cortinados para que nenhum olhar indiscreto do prédio ali da frente a visse, sentava-se na beira da cama, mandava a criadagem sair do quarto e devagar, muito devagar e sem ruído abria a bolinha de papel.
“Amo-te, amo-te mais que a própria vida” – eram estas as primeiras palavras que se podia ler naquele amargo papel e com alguma dificuldade pois a tinta permanente de permanente não tinha nada. “Espero-te logo ao fim da tarde no sítio do costume. Até lá, beijo-te com desespero e amor, ó meu anjo, ó meu amigo!”
Como é que cabem tantas palavras encavalitadas num quadradito daqueles é que não se consegue perceber. Agora a senhora mal consegue respirar. Levanta-se agarrada à colcha, chama a criadagem, dá-lhe uma fúria, atira com os fatos todos para o meio do chão, lança todos os sapatos, um por um pela janela fora, desata aos gritos e sem conseguir conter-se solta uivos duma dor desenganada. Sem saber o que fazer, se continuar a uivar, se secar as lágrimas, se abandonar o lar, ou simplesmente fingir que nada se passa. Apanha a bolinha de papel e torna a amarfanhá-la entre os dedos. Manda colocar os fatos e toda a roupa na colossal caverna de aromática madeira. Hesita entre deitar fora a bola de papel ou tornar a pô-la no mesmo bolso donde caíra.
Toda a vida depende agora dum bolso num certo guarda-vestidos.
Hoje – Um sinal que pica como um alfinete, um ruidozinho equilibrado e certeiro, insistente, teimoso, uma maquiavélica manchita sonora que fica gravada. Um pequeno ecrã esverdeado que se agita e treme e vibra, que chama a atenção nas alturas mais incómodas, um sinal, um sorriso ou uma lágrima impossível de fugir, impossível ignorar.
Caíu mais uma mensagem no telemóvel. O telemóvel esquecido. O perigoso telemóvel. Assustador. Encostado ali ao canto, em cima daquela mesa, onde está o telemóvel? não encontro o telemóvel! que diabo, onde raios o telemóvel…
O som vem de dentro dum roupeiro. Ele trabalha. Ela em dia de folga. Limpezas. Hoje é dia do roupeiro!!
E de repente tudo vibra, o chão estremece, sol escuro já não aquece, alma negra, negra alma, mais os jeans pendurados, é som que vibra abafado e aparece o telemóvel, sem saber-se porque sim nem porque não, ali de repente cai e sendo assim, assim sendo, logo se lhe deita a mão e com as pontas dos dedos, afagando devagar, o ecrã muda de cor e a vida corre num esgar, o medo vai de espreitar e o que se vê afinal? o roupeiro é temporal, os jeans são vendaval, “amor vem, quero-te tanto, amor vem ver que te espero lá no sítio do costume…”
Maldição, ai maldição! Vai-te embora ó meu macaco, não posso ver-te outra vez… Ou como um pequeno objecto consegue estilhaçar toda uma grande vidraça e esmigalhar-se no empedrado do passeio.
Bolsos: inimigos, porventura, duma certa conjugalidade. Nem mentira nem verdade. Mensagens. Mensagens, apenas, como bolas de papel amarrotado, tudo no mesmo sentido, tudo na mesma verdade.
Ainda ontem em papel amarrotado, hoje ainda em pequeno ecrã esfumado.
CRISTINA CARVALHO
Crónica do mês de Agosto 2011
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5 comentários:
http://tempocontado.blogspot.com/2011/08/classe-baixa-baixa.html
"A criadagem? Ó santinha! Eu teria mais cuidado com o vocabulário. Não pelo receio de que lhe apareça por aí algum assanhado que leu Marx, mas pelo que põe a descoberto do seu sentir para com o semelhante." J. Rentes de Carvalho
Boa noite Ricardo e J. Rentes de Carvalho.
Eu agradeço o seu comentário. Sabe, eu quis apenas "dizer" em texto como se apelidava, na altura, na época, as pessoas que trabalhavam nessas casas da média burguesia. Era, de facto, a "criadagem". Não quis dizer nada mais do que isto, como pode imaginar. Acha mesmo, consegue imaginar que eu, trate deste modo os meus semelhantes? Acha que eu, Maria Cristina Nunes da Gama Carvalho, filha de Rómulo Vasco da Gama Carvalho e de Maria Natália Paiva Nunes da Gama Carvalho, tive esse tipo de educação? Acha?
Acha mesmo?
Que estranho...
Não! Não tive.
Mas agradeço a transcrição deste comentário. Julguei que nos entendêssemos. Enganei-me. Ainda consigo enganar-me!!! E será assim até à morte.
´
Com licença.
Cristina Carvalho - 19 de Agosto de 2011
Bom dia! Ontem respondi a este comentário mas alguma coisa correu mal porque não ficou gravado. Também não seria muito importante.
Agradeço, em primeiro lugar, o comentário.
E agora pergunto a este senhor: O senhor acha, acha mesmo que eu, Maria Cristina Nunes da Gama Carvalho, filha de Rómulo Vasco da Gama Carvalho e de Maria Natália Paiva Nunes da Gama Carvalho, (também sei que não me conhece de lado nenhum) trataria como - criadagem - pessoas minhas iguais? Acha mesmo? Não percebeu que escrevi essa palavra porque está inserida num texto datado e com uma determinada intenção?
Estranho...
Penso que estou a falar com uma pessoa que escreve livros, tal como eu. Também escrevo livros. É essa a minha vida. Se assim for, acho injusto que me esteja a tratar por "santinha", acho injusto que tenha sido tão sarcástico comigo,acho injusto que não me tenha entendido, acho injusto o seu primeiro pensamento a meu respeito.
Acho tudo injusto. Acharia mais "normal" se o senhor me conhecesse e se, por algum motivo, me detestasse. Mas não é o caso. Teria sido escusado, pois, ter sido tão desagradável.
De qualquer forma, agradeço o comentário. É uma questão de educação da minha parte. Foi assim que aprendi com quem me educou, com quem ensinou milhares de pessoas neste pequeno país e que, para minha infelicidade, já cá não está.
Com licença.
Cristina Carvalho
Interessante e muito bem escrita, esta crónica da Cristina Carvalho! As situações perfeitamente enquadradas em cada época. Não há dúvida que os homens - e as mulheres - não mudam assim tanto! Só os "suportes", como se diz, é que se alteram. Engraçada, a citação do J. Rentes de Carvalho que já se esqueceu, provavelmente, por estar lá por Amesterdão, da forma como tudo se passava - e passa - em Portugal. ( Não sabia que há palavras “tabu” como “criadagem”). Espero que a Cristina Carvalho não esteja constipada. Se estiver, o "santinha!" será certamente bem vindo. Helena Vasconcelos
Isto anda tudo mal!
1) o Ricardo, se tivesse alguma coisa da sua autoria para dizer, não precisava de fazer queixinhas...
2) A Senhora Cristina usa com alguma leviandade o termo criadagem e e não precisa de ir buscar quem a educou (e ao país) para dizer que sabe que as lágrimas do preto e do branco para se defender! Não é tabu, não senhora, mas revela pouca sensibilidade...
3) Não sou advogada de defesa do Rentes de Carvalho, mas tenho a certeza que ele tem sensibilidade, uma coluna vertical (como há poucas por cá), por isso chamou a atenção para o que leu no seu texto sem ter que preocupar-se se isso a chocaria ou não... é assim que se detectam, mesmo a milhas, modos de estar e de escrever... mas não me pareceu pessoal, acredite! Se tiver oportunidade, não prescinda de ter uma boa discussão com o Rentes de Carvalho, mas sem intermediários! Saudações e continuação de bom trabalho para todos!
Sofia Alexandre!
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