segunda-feira, 8 de agosto de 2011
UMA APRAZÍVEL NAÇÃO 3
Terceira e última crónica da crónica do ensaista Eugénio Lisboa a propósito de uma visita de um cientista estrangeiro, no final do século XVIII, a Portugal (na figura, Lisboa, vista do Tejo):
Sobre a língua portuguesa, o cientista tece comentários lisonjeiros mas bem direccionados, visto que, como de costume, separa bem as águas: de um lado o povo, pelo qual tem afecto por outro, as “classes altas” que abomina. Diz assim: “Em geral a língua portuguesa, mesmo na boca do vulgar homem do povo, tem muito de bem educado e elegante. Ali não se ouve nenhum impropério, nenhuma expressão indecente, nada que se possa assemelhar ao inglês damn, ao francês f...e bougrement, ao espanhol carajo e caramba, a classe mais baixa menciona, de facto, por vezes o diabo e usa às vezes uma palavra que é igualmente habitual em todas as outras línguas. Todos os portugueses” garante Link, “são conversadores natos e, não raro, enfadonhos.” A seguir dá livre curso à sua sanha contra a nobreza lusa: “Diz-se que os nobres escondem por detrás de uma torrente de palavras delicadas e polidas uma natureza e uma alma falsas.” E sublinha, com acinte saboroso: “Não tenho nada a dizer em defesa das classes mais altas, ficam muito atrás dos espanhóis, tanto quanto o povo vulgar excede os seus vizinhos.” Depois, esclarece, numa impressionante passagem que parece escrita um pouco mais do que um pouco – para os dias de hoje: “Em todas as disposições falta de conhecimentos e de gosto, causada talvez pela total falta de obras de arte nesta terra, um governo que nunca soube ou teve oportunidade de arriscar atitude ou sentimentos nobres, a constante e opressiva proximidade da nação inglesa, que com razão se sente superior, a total decadência da literatura, estas são creio eu, as principais razões pelas quais o nobre português ocupa o último degrau de entre a nobreza europeia.” Substitua-se “nobreza” por “elites” e/ou “classes altas” e este panorama não estará muito desactualizado, principalmente quando nos lembramos de que no ano da graça de 2006, quase a virar para 2007, houve um governo que encolheu até aos miseráveis 0,4% do PIB a dotação para o Ministério da Cultura – lá fora já há muito se ultrapassou o 1% e, em países como a Argentina de Borges, era costume a Cultura exigir os 5%: mais de dez vezes o que a nós nos cabe em sorte.
Falando dos homens e das mulheres, Link de algum modo corrobora – sobretudo para os homens – o soturno diagnóstico feito por outros viajantes. Ouçamo-lo: “Em Portugal o sexo masculino não é bonito, raramente se vêem pessoas de estatura alta, mas mais corpos volumosos, gordos, baixos e atarracados. Os seus rostos são do mesmo modo raramente regulares, um nariz arqueado para cima e lábios salientes são tão vulgares que se poderia ser levado a pensar terem os portugueses misturado um pouco de sangue negro. Extraordinariamente impressionante”, observa Link, “é a diferença entre espanhóis e portugueses: aqui [em Portugal] desmesuradamente gordos, ali [Espanha] corpos franzinos, aqui narizes arrebitados, ali narizes aduncos, apenas se assemelham na cor morena e nos olhos negros.” A fealdade do macho luso deve ter de tal modo impressionado o alemão, que este se rende – supõe-se que com alguma relutância - a achá-la pior do que a dos nossos vizinhos, a quem raramente concede pontos, neste tipo de comparação. Mas as mulheres lusitanas têm, obviamente, componentes redentoras: “Sobre o sexo feminino,” diz Link, “o autor do Novíssimo Panorama de Lisboa, em francês, e o seu editor alemão, o Magister Tilesius de Leipzig, têm opiniões algo diversas – aquele elogia, este censura. Em termos gerais, o sexo feminino tem os mesmos defeitos do masculino: uma estatura demasiado baixa e uma tendência para uma figura forte e rude. Tem porém muita fisionomia, uma natureza viva e amável, olhos muito belos, cabelo invulgarmente comprido e forte, dentes muito brancos, um peito opulento e cheio e pés extraordinariamente bonitos, fazem no entanto, penso eu, uma atraente combinação e escondem outras irregularidades. Conhecedores elogiaram-me ainda confidencialmente muitas outras coisas que eu não posso repetir publicamente.”
Falando das prostitutas de Lisboa, a que chama, com pudor, “mulheres da rua”, considera-as bastante discretas: “apesar de elas dizerem”, nota ele, “que a porta está aberta, que se pode entrar, a verdade é que não são de modo nenhum tão impertinentes e descaradas como as mulheres em Londres ou em Paris no Palais Royal. A descrição das mesmas no Novíssimo Panorama de Lisboa é verdadeira em alguns aspectos, no todo é exagerada.” Aqui fica, para que conste , uma visão suave sobre a profissão mais velha do mundo, na Lisboa do final do século XVIII. Deixando, com alívio, este tema penoso, Link volta de novo “às senhoras de condição” e observa: “Aquela suave graça que adorna a beleza nórdica quase não se encontra em Portugal e ficar-lhe-iam porventura tão mal os olhos ardentes como a atmosfera ardente que ela mal consegue criar. Mas também se vêem belezas sublimes em Lisboa, quando o fino porte nórdico, o branco nórdico da sua pele, se juntam às vantagens de um clima meridional, produzindo o que de mais belo a natureza pode mostrar.”
Mas este longo, minucioso e saboroso capítulo sobre a fauna lisboeta de setecentos vai terminar, hélas!, com um tema necessário mas doloroso para o alemão tão bem disposto a simpatizar connosco mas, ainda assim, cientista que não está habituado a iludir os factos: refiro-me ao tema da higiene: “De um tema tão encantador [o da beleza das mulheres lusas]”, diz ele, “tenho de passar, através de uma ligação possivelmente demasiado natural, à falta de asseio dos portugueses. Assim que se deixa a Inglaterra e se pisa o solo de França, a falta de asseio torna-se progressivamente maior à medida que se avança em direcção ao sul. Os aposentos tornam-se cada vez mais sujos, as latrinas ou não existem ou são execráveis, uma horda de bichos de toda a espécie perturba o sono do viajante. Alguma coisa se tentou mudar nas novas estalagens alemãs e inglesas em Lisboa e aí a cidade de Lisboa tem vantagem em relação a Madrid.”
Por fim, enchendo-se de coragem, o cientista viajante mergulha no assunto embaraçoso, como quem se atira à água fria: “É preciso”, diz ele, como quem suspira, “[é preciso] falar dos piolhos em Portugal, falou-se demasiado sobre este assunto, contou-se que os piolhos serviriam aos soldados em jogos de azar em vez das cartas, que seriam habitualmente esmagados entre os dentes e outras coisas do mesmo género. Nunca vi nada disto. Mas a verdade é que a gente nobre não se envergonha de matar ou mandar matar em público estes bichinhos. Conta-se que a esposa de um ministro faz isso, não raro, quando joga às cartas na presença de muita gente. Isso, com efeito, não vi. Mas quando estávamos nas Caldas no Gerês, onde se encontram banhos quentes, vi a irmã do bispo e do Governador do Porto, uma jovem e atraente viúva da antiga nobreza, pela tarde, em frente da porta, deitar a cabeça no regaço da sua criada para que esta lhe catasse os piolhos. Sei de fonte segura que as jovens donzelas, quando se visitam se catam mutuamente os piolhos como passatempo.”
É quase doloroso ter que passar por cima de tanta observação interessante: os entretenimentos em Lisboa, os arredores da capital, etc. etc. Mas não posso furtar-me a transcrever aqui o que o autor diz da religião em Portugal, que excede, em finura e perspicácia, quase tudo quanto os estrangeiros costumam dizer de nós, nesse aspecto. Em 17 anos que vivi em Inglaterra, como conselheiro cultural, na embaixada em Londres, confesso que me saturei de ouvir o cliché constantemente repetido: “Portugal é um país profundamente católico!” Eu reagia: que não era bem assim, que a religião, em Portugal, era, quase sempre, de superfície, pouco vivida em profundidade, frequentemente decorativa, para inglês ver. Que não havia, entre nós, grandes místicos, como em Espanha. Que quase ninguém lera a Bíblia, que o Novo Testamento não era conhecido da maioria dos chamados católicos, muito menos comentado no que até tem de subversivo... Não adiantava: olhavam para mim com ar desconfiado, quase escandalizado. Acho que me catalogavam de comunista e se admiravam de a embaixada dar emprego a gente como eu. Ao que as coisas chegaram... Ouçamos então Link, a este respeito:
“Como estou a falar de diversões”, diz ele – e reparem que é a propósito de “diversões” que ele vai falar de “religião” – "[como estou a falar de diversões] não posso esquecer a religião, que na Península ocupa entre estas um lugar de destaque. Vai-se à missa porque não se tem outro passeio, gosta-se das cerimónias religiosas porque se procura passar o tempo, seguem-se as procissões como quem vai à ópera. Em todos os relatos de viagens em Portugal se fala das histórias amorosas a que a missa dá azo e, como é habitual, também aqui se exagera. Como as jovens raparigas quase não saem de casa a não ser para ir à missa, é de esperar que aí o amor não perca a oportunidade única de mostrar o seu poder, e é natural que especialmente a donzela para sempre ame os locais onde pela primeira vez experimentou as emoções do amor e devoção. No campo, o motivo de um passeio à noite é muitas vezes uma imagem de Nossa Senhora, uma pessoa ajoelha e reza levanta-se e ri-se e namora-se como antes. Em geral os portugueses observam com muito rigor o lado exterior da religião, talvez mais do que os espanhóis. Quem come carne na Quaresma tem mesmo de ser muito instruído. Ouvi com prazer uma vez que a questão foi lançada: seria maior pecado comer carne na Quaresma ou infringir o sexto Mandamento? A conclusão em termos gerais foi que o último pecado seria uma ninharia em relação ao primeiro. Não obstante, a nação e mesmo o povo mais vulgar não é tão fanático como em Espanha. Podia contar uma série de coisas a este respeito, mas contento-me apenas com algumas. Assisti em Setúbal a uma procissão onde dois capitães de navios, um inglês e um dinamarquês, ao passar o Espírito Santo não tiraram o chapéu. Ninguém se preocupou com o caso, apenas um marinheiro português perguntou: quem são aqueles ali com os chapéus na cabeça? São ingleses, fideputas, replicou o outro, e com o palavrão a coisa ficou resolvida. Quando o príncipe de Waldeck foi sepultado, ouvi dizer a um homem do povo: era um herege, mas um muito bom homem.
Em seguida misturei-me com a multidão e não ouvi senão louvores e elogios ao amável Príncipe que foi precisamente levado para o cemitério protestante, soube mesmo que ele declinou o habitual convite para se tornar católico que lhe foi feito à hora da morte e verifiquei, para meu grande espanto, que esse acto obteve de um modo geral a aprovação de todos, na medida em que cada, pessoa deveria viver e morrer na sua fé.
O português considera qualquer estrangeiro um herege e é atencioso e prestável para com ele, chega mesmo a admirar-se quando vê estrangeiros católicos.”
Julgo tratar-se de uma avaliação justa e que dá à superficialidade com que os portugueses, em geral, vivem o seu catolicismo o corolário satisfatório de uma tolerância que convive mal com qualquer hipótese de fundamentalismo. Bem está o que bem acaba.
Tenho que fechar esta excursão e faço-o com tristeza e relutância. Muito haveria ainda que transcrever sobre instituições públicas, terras entre Lisboa e Coimbra e, sobretudo, desta cidade à beira do Mondego, de que diz que “as ruas são extremamente estreitas, pequenas, sinuosas e angulosas, mal pavimentadas, muito imundas e muitas vezes tão íngremes que só com esforço se conseguem subir.” Nota ainda que “nenhuma outra grande cidade em Portugal tem estalagens tão más como Coimbra” e que “nelas um forasteiro recebe aposentos miseráveis, más camas e comidas cuja apresentação requer o apetite de um botânico.” Observa ainda, de passagem – e os lisboetas que se limpem a mais este guardanapo – que “quanto mais se anda em direcção ao norte em Portugal, tanto melhor, mais bondoso e trabalhador é o povo. Pilhagens e roubos são aqui já muito raros.”Afirma que “o mais importante em Coimbra é a Universidade” e nota que, com Pombal, “o regulamento da mesma sofreu uma grande mudança, sem dúvida muito proveitosa.” Mas acrescenta, para ser objectivo, que “os regulamentos não são tudo” e que “onde falta um espírito vivo e activo as ciências não prosperam, elas exigem gastos, estímulo e uma avaliação correcta dos verdadeiros méritos, recursos com os quais (mesmo com uma constituição medíocre) mais se realiza do que com o melhor regulamento do mundo.” Diz ter encontrado, entre os professores da sua especialidade, “homens lúcidos e activos”, dos quais destaca Dom Félix de Avelar Brotero, de quem afirma: “Seria injusto para com este homem se não o colocasse categoricamente ao lado dos melhores botânicos que conheço.”
No entanto, nota isto que tem ainda hoje, infelizmente, validade no universo ainda relativamente fechado da Universidade Portuguesa: “Mas ele [Brotero] estudou oito anos em Paris, não foi educado na Universidade de Coimbra, por isso os seus colegas troçam dele, e o desgosto e a hipocondria juntos tolhem este homem de resto muito activo.”
Mas tenho que terminar, até porque o viajante alemão diz muito pouco de Aveiro para além de afirmar que “não há outra cidade em Portugal que tenha em seu redor uma planície tão extensa e tão grandes pântanos de água doce como Aveiro.” É pouco mas não ofende.
Minhas senhoras e meus senhores: o grande Montaigne, homem de excelente companhia e de franco falar – a minha inevitável escolha para uma ilha deserta – dizia: “Eu respondo normalmente àqueles que me perguntam sobre as razões das minhas viagens: sei muito bem de que fujo mas não o que procuro.” Henrich Friedrich Link não pertencia a esta paróquia de viajantes: viajou, não para fugir da Alemanha mas sim para investigar a flora portuguesa. Tinha um objectivo muito claro. De caminho, investigou outras coisas, entre elas, o bicho lusitano. Disso nos deixou um relato vivo e aprazível, cumprindo na íntegra o caderno de encargos que a si próprio impôs, nestes termos: “Na descrição procurei evitar, tanto quanto possível, tudo o que fosse enfadonho, ainda que deste modo me possa tornar suspeito de ser menos exacto. Não possuo o talento de muitos escritores para, através de um estilo difuso, enfadonho e obscuro, expor observações que foram feitas de uma forma ligeira, como se de coisas pesadas e importantes se tratasse. Prefiro”, conclui ele, “verter de uma forma fácil o que exigiu longo tempo de observação.” Enfadonho, Link, nunca o é. Se, transcrevendo-o com abundância, me tornei eu próprio enfadonho, a culpa não pertence, por certo, à certeira vivacidade e olho lesto do esforçado cientista e viajante alemão.
Eugénio Lisboa
REFERÊNCIAS
(1) Richard Croker, “Viagens através de Várias Províncias de Espanha e Portugal”, carta XXV, in Portugal Visto pelos Ingleses, org. Maria Laura Bettencourt Pires, Instituto Nacional de Investigação Científica, Lisboa, 1981, p. 112.
(2) Idem, p. 110
(3) Notas de uma Viagem a Portugal e através de França e Espanha, tradução, introdução e notas de Fernando Clara, Biblioteca Nacional, Lisboa, 2005.
(4) in Portugal Visto pelos Ingleses, pp.40-41
(5) in Portugal Visto pelos Ingleses, p. 26
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1 comentário:
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