Publiquei o artigo que se segue (com ligeiras variantes) no número 24 da revista académica Capa e Batina em Abril de 1969. Muita coisa mudou, mas os problemas nele aflorados, embora deslocados, talvez não sejam hoje tão diferentes dos de então. Terá interesse pensar no que mudou e no que permanece.
Tem andado na ordem do dia o problema da língua portuguesa. Em esferas oficias e não oficiais discursa-se e disputa-se sobre a questão, preceituando o ataque frontal ao estrangeirismo, pedindo a reposição do latim nos liceus, proclamando a necessidade do purismo linguístico, e outras coisas igualmente respeitáveis. É de crer, porém, que o problema da língua portuguesa seja mais vasto e mais fundo.
É mais vasto e mais fundo porque a questão da língua é de cultura e de vitalidade da cultura das massas; é de vitalidade cultural. Há necessidade de defender extrinsecamente uma língua quando ela não é suficientemente viva e dinâmica, quando ela não se defende por si através da desdobradora multivalência das suas formas, da procura e desenvolvimento de virtualidades novas que se vivifiquem e ao mesmo tempo a lancem num caminho de futuro e de tradição. Sem um sentido de futuro toda a tradição é morta e indigna, porque inútil. Uma língua defense-se a si própria crescendo e maturando-se.
Tal como tudo, uma língua que precisa que a defendam é porque não tem defesas próprias; e uma língua só tem defesas próprias quando cria raízes, isto é, tem consciência de si, se desenvolve e está viva. E a vitalidade de uma língua é um problema de consciência cultural, de individualidade cultural (...)
Antes mesmo deste problema andar na ordem do dia, há já algum tempo portanto, apareceu n’ A Capital um notável artigo de António José Saraiva em que, grande parte do problema, era visto e exposto com toda a clareza: «O Português vegeta exuberantemente, multiplica-se com uma sofreguidão animal, mas não se define e não se consciencializa, não assume a sua personalidade cultural».
A medida de uma consciência cultural dá-se ao nível da sua realização e da sua vivência. Só se assume aquilo de que se é consciente. Só se pode defender uma língua depois de a amarmos. E só se pode amar aquilo que existe verdadeira e vitalmente, que é original, dinâmico. E uma língua só é original e dinâmica quando cria os seus dinamismos e é lidada e tratada a nível de património.
Enquanto a escola continuar sendo uma mera campanha de alfabetização (fase que, felizmente, parece estar a ser ultrapassada) e o ensino dos liceus e das escolas técnicas continuar a estar vedado a uma grande parte, senão à maioria da população juvenil, e para a parte a que não está vedado, o ensino do português continuar a revestir o aspecto gramatical e árido, ou falsamente moralista que tem sido tradicional, o problema não pode mudar muito de feição. Nada há a fazer por uma língua se ela não é amada por toda uma população e não apenas por uma elite.
Não se pode conhecer nem amar, a um nível de nação, aquilo que só é ensinado a uma parte, e nem a esta da melhor maneira. Eis pois porque é preciso remodelar o ensino do português e estendê-lo a toda a população. Remodela-lo para o tornar vivo, dirigido no sentido de criar amor à língua, de criar o gosto pela leitura, através do texto, da declamação, da audição de poesia gravada ou lida, do exercício da dicção, de um verdadeiro estudo de sintaxe aplicada. E estendê-lo, para o tornar mais vivo, a toda a população através do livro barato e dos bons autores, das sessões públicas de divulgação a tentar conquistar as fábricas, os meios rurais e pequeno-burgueses.
Fazer isso, o que me parece ser o que há a fazer de imediato, é lançar as bases para a solução de todo o complexo problema que está por baixo e que é muito mais vasto. Com a tendência para o ensino gramatical e seco (...) como é o do nosso ensino médio (...) desapareceu quase completamente o verdadeiro gosto pela leitura. Sendo reduzido o geral gosto pela leitura, diminui imediatamente o comércio do livro, torna-se um produto sem sentido nem utilidade para grande parte da população. A leitura torna-se um gosto de elites, ou objecto de luxo para prateleira enfeitar.
Desgraçadamente os dois aspectos ligam-se, e isto porque, se o público é reduzido, as edições tornam-se pequenas, o que faz com que o livro fique caro para poder pagar a tipografia e os direitos de autor e o mais. Há imediatamente necessidade de justificar o preço com uma tendência para o luxo inútil das edições. Deste modo, uma pequena parte do público que lê livros, e que é a massa estudantil, acaba por pagar aquilo que lê por um preço feito para uma burguesia que, com certeza, não lê, ou lê pouco. Pagando caro o que não pode, compra menos, o que ainda agrava mais a questão. E deste modo a classe dos livreiros explora (ou vê-se forçada a explorar) uma massa que sente pesar sobre a sua bolsa a cultura como um grave prejuízo.
Tudo isto pela ausência de um público vasto a proporcionar grandes edições de bolso efectivamente acessíveis. É aqui que fundamentalmente é preciso actuar, a criação de uma vasta camada efectivamente apreciadora e consumidora de bons autores, com uma cultura linguística e estética de base. Ora, isto tem grandes implicações culturais, mas também, e não menos importantes, económicas. Até onde se poderá actuar com resultados?
Com um público restrito e edições pequenas, a classe dos escritores torna-se uma classe de deserdados em que só uns pouco conseguem um certo público e uma certa aceitação. Daqui até à psicologia do autor consagrado e do nome feito, como tal tantas vezes ameaçado de cristalização e de morte prematura, é um passo. Quer dizer, o ciclo natural do surgimento e da revelação de autores novos fica estrangulado, quer dizer ainda, a língua, também por este lado, não fica nas condições mais perfeitas para o seu desenvolvimento através de novas criações, novas formas, novas tentativa de conjugação e de superação, que são no fundo as condições de vitalidade e da defesa própria de uma língua.
Com o enfraquecimento da promoção de autores aumenta a descrença nas possibilidades literárias dos autores nacionais, realmente enfraquecido pelas condições exteriores, e abre-se a porta ao inculto parolismo de considerar a nossa literatura como somenos e de aceitar quantos autores estrangeiros apareçam. E eis por que a nossa actividade editorial está abarrotando de traduções, muitas de má qualidade e de autores muitas vezes secundários. E assim, como António José Saraiva dizia no citado artigo Mátria e Pátria, «em Lisboa traduz-se; em Coimbra conserva-se; o Porto consegue a custo manter a sua posição de capital do Portugal galego».
Isto é terrivelmente verdadeiro. Que é feito, em Coimbra, da actividade editorial de há vinte e tal anos? Nesta terra actualmente só quase se editam sebentas e manuais de Direito, para além, obviamente, de Miguel Torga. Nesta terra onde se revelaram autores como José Régio, Branquinho da Fonseca, Edmundo de Bettencourt, Vergílio Ferreira, Carlos de Oliveira, Fernando Namora, e tantos outros nomes, e movimentos como a Presença e o Neo-Realismo, já não tem escritores? Será que toda a gente se esqueceu disto? Sem literatura não há língua viva; sem público dificilmente há boa literatura. Para haver público é preciso haver cultura e consciência da unidade e vitalidade dessa cultura.
João Boavida
sexta-feira, 3 de dezembro de 2010
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4 comentários:
Sim, o problema é realmente muito vasto e profundo.
E um aspecto particular dele é o modo como a língua está a ser ensinada no ensino básico e secundário.
Não amamos a nossa língua. Desprezamo-la até e tratamo-la pior do que julgamos. A maioria das crianças e jovens fala mal e escreve pior, ou não escreve. E aquela minoria que frequenta boas escolas privadas de inglês, mas ainda tem em casa, no seu ambiente cultural e na escola, quem ensine a, ou dê o exemplo de, bem falar e bem escrever português chega a sorrir quando, nas aulas, algum professor se vê obrigado a usar algum termo ou expressão em inglês com pronúncia (mais) aportuguesada..., atitude que não tem se o que se escreve e pronuncia mal for... em português! Certa vez houve quem lembrasse a esses meninos aquela passagem de Eça, na Correspondência de Fradique Mendes, mais ou menos assim: "devemos falar orgulhosamente mal todas as línguas, com excepção da nossa". E os meninos compreenderam...
Assim o compreendessem os nossos proeminentes políticos, com excepção do Dr Soares. Quem se não lembra do descontraído: "mon ami Mitrã"?
RESTAURACIONISMO
Chegou a hora
de olhando para trás
e vermos o estado
degradado
e desgraçado
a que chegou nossa cultura,
fazermos o que for capaz
em prol do nosso velho patrimonio
em todos os sentidos,
incluindo, que demónio!
os vários campos da literatura,
tão deprimidos!
Deitando mãos à obra,
há que salvar o que sobra
e dar-lhe um belo aspecto
em todos os domínioos,
haja ou não patrocínios
para o projecto.
É a hora
não de sonhar
ou de se andar a apregoar
um caricato Quinto-Império,
mas de levar a sério,
de forma decidida e competente,
a intenção
ou preocupação
de se recuperar
o que deitámos fora
ou simplesmente
deixãmos estragar
impunemente:
jóias, louças, carruagens, móveis,
pinturas, esculturas, automóveis,
prédios de estolo,
romances de Aquilino e de Camilo!
Hora é de, às tantas,
voltarmos a dizer
e proclamar
aos quatro ventos, da montanha ao mar:
Viva o Dantas!
JCN
Corrijo a gralha "estolo" por "estilo" JCN
A pena tamem é lógica: ex-clua-mo.
Isso, adeus.
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