quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

GUERRAS SANTAS 1

Sobre um tema que tem sido muito debatido neste blogue - ciência e religião - eis, por amabilidade da Gradiva, em pré-publicação um texto de um dos mais conhecidos cientistas e divulgadores de ciência norte-americanos Neil deGrasse Tyson (em baixo, na figura), que ainda não tinha nenhum livro traduzido entre nós antes daquela editora agora publicar "Morte pelo Buraco Negro e Outros Embaraços Cósmicos" (a sair a 22 de Fevereiro). Este é, em duas partes, o Cap. 41 de um grande livro, cuja última parte é toda ela dedicada ao tema de "Deus e a ciência".

"Em quase todas as palestras públicas que dou acerca do universo, tento sempre reservar tempo suficiente no fim para perguntas. A sequência de temas é previsível. Primeiro, as perguntas dizem directamente respeito à palestra. Depois migram para assuntos astrofísicos sexy, como os buracos negros, os quasares e o big bang. Se me sobra tempo suficiente depois de responder a todas estas perguntas, e se a palestra for na América, eventualmente o assunto vai chegar a Deus. Há questões frequentes como, por exemplo «Os cientistas acreditam em Deus?», «Você acredita em Deus?», «Os seus estudos fazem de si mais ou menos religioso?»

Os editores acabaram por descobrir que se pode fazer uma carrada de dinheiro com Deus, sobretudo quando o autor é um cientista e quando o título do livro inclui uma justaposição de temas científicos e religiosos. Vários destes livros foram muito bem-sucedidos, como por exemplo Deus e os Astrónomos, de Robert Jastrow, A Partícula de Deus, de Leon M. Lederman, A Física da Imortalidade: A Cosmologia Moderna, Deus e a Ressurreição dos Mortos, de Frank J. Tipler, e os dois livros de Paul Davies, Deus e a Nova Física e A Mente de Deus. Cada um destes autores é um físico ou astrofísico conceituado e, embora os livros não sejam estritamente religiosos, encorajam o leitor a trazer Deus para conversas acerca de astrofísica. Até o falecido Stephen Jay Gould, um buldogue darwiniano e agnóstico devoto, se juntou ao desfile de títulos com o seu livro Rock of Ages: Science and Religion in the Fullness of Life. O sucesso financeiro destas publicações indica que se ganha mais dólares com o público americano se se for um cientista que fala abertamente de Deus.

Depois da publicação da Física da Imortalidade, que sugeria que as leis da física poderiam permitir que nós e as nossas almas poderíamos continuar a existir muito depois de termos morrido, a digressão literária do livro de Tipler incluiu imensas palestras muito bem pagas para grupos religiosos protestantes. Esta subindústria lucrativa floresceu ainda mais nos últimos anos, graças aos esforços efectuados pelo riquíssimo fundador do fundo de investimentos Templeton, Sir John Templeton, para encontrar pontos de ligação entre a ciência e a religião e tentar conciliá-las. Além de patrocinar workshops e conferências acerca deste assunto, a Fundação Templeton procura cientistas bem conhecidos e com visões favoráveis à religião, para lhes atribuir um prémio anual cujo valor monetário é superior ao do prémio Nobel.

Que não haja qualquer dúvida de que não existe qualquer terreno comum entre a ciência e a religião, tal como elas são hoje em dia praticadas. Como foi exaustivamente documentado no tomo do século XIX Uma História da Guerra da Ciência contra a Teologia na Cristandade pelo historiador, e outrora presidente da Universidade de Cornell, Andrew D. White, a história revela-nos uma longa relação de antagonismo entre a religião e a ciência, história essa dependente de quem controlava a sociedade em cada altura. As afirmações da ciência baseiam-se na verificação experimental, enquanto as afirmações da religião se baseiam na fé. Estas são duas abordagens do conhecimento irreconciliáveis, o que assegura uma eternidade de debates sempre que os dois campos se encontram. Tendo dito isso, é provavelmente boa ideia manter os dois lados a falar um com o outro, como se faz nas negociações de reféns.

Este cisma não aconteceu por falta de tentativas prévias de aproximar ambos os lados. Grandes mentes científicas, desde Cláudio Ptolomeu no século II até Isaac Newton no século XVII, investiram os seus intelectos formidáveis em tentativas de deduzir a natureza do universo a partir de afirmações e filosofias contidas em escritos religiosos. De facto, por altura da sua morte, Newton tinha escrito mais palavras acerca de Deus e de religião do que acerca das leis da física, incluindo tentativas fúteis de invocar a cronologia bíblica para compreender e prever eventos no mundo natural. Se algum destes esforços tivesse sido bem sucedidos, hoje em dia a ciência e a religião seriam essencialmente indistinguíveis.

A razão de isso não ter acontecido é fácil de explicar. Até hoje, ainda não vi nenhuma previsão bem-sucedida acerca do mundo físico que tenha sido inferida ou extrapolada do conteúdo de um qualquer documento religioso. De facto, posso até fazer uma afirmação mais forte. De todas as vezes que as pessoas tentaram fazer previsões precisas acerca do mundo físico usando documentos religiosos, elas têm-se enganado de forma clamorosa. Por previsão entendo uma afirmação precisa acerca do comportamento não-testado de objectos ou de fenómenos no mundo natural, registada antes de esse acontecimento ocorrer. Quando o modelo só prevê uma coisa depois de ela ter acontecido, fez uma «pós-visão», não uma previsão. As pósvisões são a pedra basilar da maior parte dos mitos de criação e também, claro está, das Just So Stories de Rudyard Kipling, em que explicações de fenómenos quotidianos explicam aquilo que já é sabido. No negócio científico, contudo, cem pós-visões não chegam a valer sequer uma única previsão bem-sucedida.

NO TOPO DA LISTA de previsões religiosas estão as afirmações perenes de que o mundo irá acabar, nenhuma das quais se verificou. Como exercício, é razoavelmente inócuo. Mas outras afirmações e previsões chegaram a impedir, ou até mesmo a inverter, o progresso da ciência. O melhor exemplo é o julgamento de Galileu (que leva o meu voto para o julgamento do milénio) onde ele mostrou que o universo era fundamentalmente diferente das opiniões dominantes da Igreja Católica. No entanto, para ser justo para com a Inquisição, é preciso dizer que um universo centrado na Terra fazia carradas de sentido do ponto de vista observacional. Com mais um enorme complemento de epiciclos para explicar os movimentos peculiares dos planetas contra as estrelas de fundo, o bom e velho modelo centrado na Terra não entrava em conflito com nenhumas observações conhecidas. Isto continuou a ser verdade muito depois de Copérnico ter proposto o seu modelo de um universo centrado no Sol, um século antes. O modelo geocêntrico também se enquadrava perfeitamente com os ensinamentos da Igreja Católica e com as interpretações prevalecentes da Bíblia, onde a Terra é inequivocamente criada antes do Sol e da Lua, como é descrito nos primeiros versos do Génesis. Se foram criados antes, está bom de ver que têm de estar no centro de todo o movimento. Onde mais poderiam estar? Mais ainda, era suposto que os próprios Sol e Lua fossem orbes lisas. Porque que é que uma divindade perfeita e omnisciente iria criar outra coisa qualquer?

É claro que tudo isto mudou com a invenção do telescópio e as observações dos céus que Galileu fez. O novo aparelho óptico revelou aspectos do cosmos que entravam em conflito directo com as concepções que as pessoas tinham de um universo divino centrado na Terra e livre de imperfeições: a superfície da Lua era acidentada e rochosa; a superfície do Sol tinha manchas que se moviam ao longo da sua superfície; Júpiter tinha luas próprias que orbitavam em torno de Júpiter e não da Terra; e Vénus tinha fases, tal como a Lua. Devido às suas descobertas radicais, que abalaram a cristandade — e por se ter armado em idiota pomposo a este respeito —, Galileu foi julgado, declarado culpado de heresia e sentenciado a prisão domiciliária. Isto foi uma punição ligeira quando se considera aquilo que sucedeu ao monge Giordano Bruno. Umas quantas décadas mais cedo, Bruno tinha sido declarado culpado de heresia e queimado vivo, por ter sugerido que a Terra poderia não ser o único local do universo que albergava vida.

Não quero sugerir que cientistas competentes, seguindo o método científico de forma perfeita, não se tenham enganado de forma clamorosa. É claro que sim. A maior parte das afirmações científicas feitas acerca de assuntos nos limites da investigação irá, em última análise, revelar-se errada, devido sobretudo a dados maus ou incompletos e, por vezes, a erros. Mas o método científico, que nos permite fazer expedições até ao fundo de becos sem saída intelectuais, também promove ideias, modelos e teorias com poder de previsão que podem estar espectacularmente correctos. Não há nenhum outro ramo na história do pensamento humano que tenha sido tão bem-sucedido em descodificar os comos e porquês do universo.

De vez em quando, a ciência é acusada de ser uma actividade dogmática ou teimosa. As pessoas fazem esse tipo de acusações frequentemente, quando vêem cientistas a desvalorizar com rapidez coisas como a astrologia, o paranormal, avistamentos do Pé Grande e outras áreas de interesse humano que falham sempre testes experimentais bem controlados, ou que não possuem qualquer tipo de indícios fiáveis. Mas não se sintam ofendidos. Os cientistas aplicam este mesmo tipo de cepticismo a quaisquer afirmações que apareçam nas revistas de publicação científica. Os padrões são idênticos. Reparem naquilo que sucedeu quando os químicos do Utah B. Stanley Pons e Martin Fleischmann declararam, numa conferência de imprensa, que tinham criado fusão nuclear «fria» na sua bancada de laboratório. Os cientistas actuaram rápida e cepticamente. Poucos dias depois da conferência de imprensa, era já claro que ninguém conseguia reproduzir os resultados de fusão fria que Pons e Fleischmann defendiam. O seu trabalho foi descartado de forma sumária. Ocorrem histórias semelhantes praticamente todos os dias (tirando as conferências de imprensa) para quase todas as afirmações científicas novas. Aquelas que tendem a ser conhecidas são só as que poderiam afectar a economia."

Neil deGrasseTyson
(continua)

2 comentários:

a.mar disse...

O dinheiro é o Deus de todas as ciências e religiões, enfim... o Deus dos humanos. O grande impusionador da Criação!
Margarida

Jorge Pires Ferreira disse...

Há alguns erros e muita ignorância neste texto. Galileu não foi condenado por heresia. As descobertas de Galileu não abalaram a cristandade.
E uma das convicções da Igreja, desde a Idade Média (após Tomás de Aquino) é precisamente que a Fé e a Razão, a Igreja e a Ciência não se podem contradizer. Não há duas verdades. Há uma só, pelo que têm de estar de acordo (daí o julgamento de Galileu - erro da Igreja, mas com bom intenção). Daí que hoje a Igreja combata o relativismo e seja, estou certo disso, o melhor auxílio para as ciências.
Jorge Pires Ferreira
http://tribodejacob.blogspot.com/

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