domingo, 21 de fevereiro de 2010
Aguarela Bioquímica
Novo texto do bioquímico António Piedade saído há pouco no "Despertar":
Que ambiente molecular encontraríamos se conseguíssemos ver o interior de uma célula à escala atómica? Que hora de ponta bioquímica existe na agitação molecular característica dos processos biológicos vitais? Será que o conhecimento entretanto acumulado desde a formulação da teoria celular (que diz que a unidade fundamental de todos os seres vivos é a célula) em 1830, por Schleiden e Schwann, nos permite ter uma ideia, mais ou menos precisa, desse ambiente? Se sim, como o poderemos retratar para que possa ser visto pelos nossos olhos nano e micro-míopes?
De facto, desde que a ureia foi sintetizada em laboratório por Friedrich Woehler, em 1828, derrubando assim a teoria vital (a de que os compostos orgânicos só podiam ser sintetizados no interior de seres vivos), a cartografia biomolecular da célula foi sendo preenchida e detalhada com um número espantosos de moléculas e iões diferentes. Mais do que um inventário e catalogação de aglomerados moleculares e iónicos, o conhecimento das propriedades e físico-químicas dessas nuvens electrónicas intrinsecamente nucleadas por protões e neutrões (e outros ões sub-nucleares) em diversas combinações, tem permitido a construção de modelos e de simulações do que acontece a um nível biomolecular.
O poder de cálculo útil com que as tecnologias informáticas e de computação nos têm brindado nas últimas décadas (anos) contribuiu e permitiu, de forma decisiva, para a modelação e simulação de interacções moleculares com significado e funcionalidade biológicas.
Exemplos desta confluência, entre o saber bioquímico e a informática, são as bases de dados que passaram a desaguar imagens em aplicativos nos desktops, laptops, mobiles, etc. De entre elas, o RCSB Protein Data Bank (PDB) (ver aqui), banco de dados sobre estruturas tridimensionais de proteínas e ácidos nucleicos, de domínio público e livre acesso, é disso exemplo incontornável. Mais de 60 mil estruturas biomoleculares estão ali depositadas e à espera de serem visualizadas.
Um ritual do sítio do PDB é o da publicação mensal de uma estrutura biomolecular seleccionada e desenhada pelo médico/artista molecular David S. Goodsell (ver aqui). Desde Janeiro de 2000 (ou seja desde o último ano do século passado) que, mensalmente, Goodsell nos brinda com as suas aguarelas bioquímicas. Utilizando uma técnica de pintura que relembra o cloisonismo (técnica de pintura desenvolvida no último quartel do século XIX, primeiramente denominada por Edouard Dujardin, aquando do “Salão dos Independentes” ocorrido em Paris em Março de 1988, e caracterizada por gradações de uma mesma cor delimitadas por traços escuros), Goodsell consegue transmitir-nos a tridimensionalidade das estruturas moleculares sobre suporte bidimensional (o monitor, a folha de papel) e, assim, torna mais intuitiva a percepção da relação estrutura-função, natureza essencial da Biologia Molecular e Bioquímica.
De facto, é preciso uma grande capacidade de abstracção e imaginação espacial para conseguir aprender estruturas e relações que funcionam devido à sua interacção tridimensional no tempo, em suportes bidimensionais. O recurso a animações 3D e vídeos que hoje começam a ser comuns no ensino da Bioquímica, parece ser um caminho interessante a percorrer. Contudo, enquanto estas novas e atractivas plataformas baseadas em tecnologia new media não se democratizam com qualidade e rigor científico, as representações tradicionais tenderão a ser o material de referência.
Neste contexto, o trabalho desenvolvido por Goodsell, pelo menos desde 1991, na comunicação de conhecimento bioquímico e biológico através de aguarelas adquiriu estatuto de espaço próprio e de tendência representativa nesta área.
Também por isso é que o seu livro “The Machinery of Life”, editado primeiramente pela Springer em 1993, e reeditado em 2009 pela mesma editora (ISBN: 978-0-387-84924-9), é um marco das boas e frutíferas relações entre arte e ciência. No seu livro, David Goodsell alia a sua arte pictórica e o seu conhecimento bioquímico para nos apresentar instantes de um mundo biomolecular denso em diversidade e nos guiar através dos processos moleculares subjacentes à vida. Mas Goodsell não se limita só a representar as diferentes biomoléculas, seus agregados funcionais e estruturas intracelulares com cores diferentes e matizadas para uma perspectiva em profundidade. Mais do que isso, utiliza a vastíssima informação analítica sobre a composição quantitativa e qualitativa das moléculas e átomos da vida, disponível nas inúmeras fontes de informação registadas em suportes celulósicos e electrónicos, para nos dar retratos dos fenómenos biológicos a nível molecular respeitando a demografia da miríade de componentes que participa na aventura da vida.
António Piedade
Legendas das Figuras
Figura 1. Ilustração de uma secção da parede da bactéria Escherichia coli. 2009. Créditos D. Goodsell.
Figura 2. Ilustração do detalhe da interacção entre anticorpos e a membrana de uma bactéria. 2009. Créditos D. Goodsell.
Figura 3. Ilustração de uma sinapse neuromuscular. 2009. Créditos D. Goodsell.
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6 comentários:
Se Goodsell associar às suas extraordinárias imagens, as legendas dos componentes mais importantes para as funções que quiser destacar, então quase podemos arquivar como obsoletas a generalidade daquelas que agora usamos...
É que para além da utilidade, há a beleza dos processos, do seu entendimento e, claro, das próprias imagens.
Goodsell, no livro que referi, assim como nos artigos em que tem publicado as suas ilustrações, tem feito esse trabalho de identificar os diversos componentes biomoleculares. Veja por exemplo o artigo: http://www3.interscience.wiley.com/journal/122523278/abstract
Se o não conseguir obter, faça o favor de mo pedir. Terei o maior gosto em lho enviar.
Caríssimo Dr António Piedade:
Fiquei encantado com a sua disponibilidade.
E estou há largos minutos a tentar aceder ao sítio que me indicou. Mas, seja lá pelo que for (estou a pensar em aselhice minha) não consigo obter o artigo que refere.
Será preciso inscrever-me? E pagá-lo?
De qualquer forma, esta semana, logo que possa requisitar o projector multi-média (o choque tecnológico é ainda muito incipiente, mesmo nas consideradas boas escolas...)mostro pelo menos as imagens acima aos meus alunos de 10º e de 12º.
É claro que gostaria de ter o artigo. Mas não se incomode. Eu agora fico "à espreita" e, mais tarde ou mais cedo, hei-de conseguir navegar por essas imagens. Que acho fantásticas.
Aceite um cumprimento cheio de gratidão.
Caro José Batista.
Muito Obrigado pela sua resposta. Deixe-me acrescentar que ao escrever para divulgar partos do principio de que devo assumir as consequências desse acto e logo estar disponível para ajudar no acesso à informação de que disponho. Assim, queira indicar qual a melhor forma para lhe enviar o artigo.
Entretanto, indico-lhe que no seguinte link,
http://mgl.scripps.edu/people/goodsell/books/MoL2figures
encontrará as figuras do livro "The Machinery of Life" que Goodsell disponibiliza livremente para fins educativos.
Cumprimentos.
Caro Dr António Piedade:
Estou há um bom bocado a ver imagens do novo endereço que me forneceu. São absolutamente extraordinárias. E tão abundantes! Nem pode imaginar o quanto lhe estou grato.
Quanto ao artigo, se preferir enviar por mail, o meu endereço é: josbat@gmail.com.
O meu endereço profissional é: José Batista da Ascenção, Professor de Biologia da Escola Secundária Carlos Amarante, Rua da Restauração. 4710-428 Braga.
Muito obrigado.
Com os meus melhores cumprimentos.
José Batista da Ascenção
Drew Berry - Visualization: Biology and Complex Circuits
http://www.youtube.com/watch?v=pPC1MZ-xAu4
"[...] His three- and four-dimensional renderings of key concepts such as cell death, tumor growth, and DNA packaging, capture molecular shape, scale, behavior, and spatiotemporal dynamics. His groundbreaking animations of DNA replication, translation, and transcription enlighten both scientists and the scientifically curious. [...]"
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