terça-feira, 22 de dezembro de 2009

A FORMAÇÃO DE PROFESSORES AO SABOR DAS MARÉS


“A desistência das elites, substituída por uma casta de medíocres, transformou-nos numa espécie de carpideiras” (Baptista-Bastos, escritor e jornalista).

Esta “desistência das elites” tem dado azo a que vozes vindas de estratos profissionais sem ligação directa ao ensino se manifestem publicamente, enquanto os professores formados por universidades parecem viver numa espécie de apatia generalizada. Das vozes mais contundentes, sobressai, sem dúvida, a de Medina Carreira, que não perde a oportunidade em chamar a atenção para a importância de uma educação que separe o trigo do joio: “Isto de sermos todos iguais é uma trafulhice” (Revista Expresso, 24/10/2009).

Recuando ao ano de 2004, cito uma entrevista televisiva em que, por seu lado, o economista Silva Lopes dá conta da sua preocupação com o lamentável estado da educação nacional. Dela recolho uns tantos excertos: ”É um desastre completo. Nem daqui a 30 ou 40 anos nos livramos dos erros que andamos a fazer hoje. Sobretudo no fim da carreira temos alguns dos professores primários mais bem pagos da Europa. Nunca ninguém me explicou por que não há concursos verdadeiros para professores, por que é que se utilizam as notas das universidades, venham eles de uma escola boa e exigente ou de uma escola perdulária nas notas”.

Este statu quo, torna-se forçoso dizê-lo, encontrou acolhimento nos próprios licenciados por faculdades que se venderam por um “prato de lentilhas” concorrendo para a docência de escolas superiores de educação que iam sendo criadas, a eito, pelo país fora. Chamei a atenção, várias vezes, para esta situação merecedora, por parte de um professor do politécnico, do seguinte protesto: “Considero absolutamente lamentável o artigo da autoria de um membro da direcção do Sindicato Nacional dos Professores Licenciados. Utilizando uma linguagem belicista com o propósito de mobilizar os estudantes universitários para uma espécie de guerra santa a fazer aos estudantes do ensino politécnico, o autor acaba por tornar visível a xenofobia académica que tem vindo a alimentar algumas (repito, algumas) das posições através das quais se recusa, liminarmente, às ESE’s a possibilidade de formarem professores para leccionar no 3.º ciclo do ensino básico” (Público, Carta ao Director, 24/12/96).

Por o artigo ser da minha autoria não podia deixar de justificar a razão da minha posição. Assim, respondi com um artigo de opinião intitulado “Uma Questão de Honra”, de que transcrevo parte: “Mas como eu me sinto feliz e orgulhoso pelo reconhecimento público de que tenho sido um esforçado centurião (aliás, desde 87) da recusa em ESEs poderem formar professores para o 3.º ciclo do ensino básico. Nunca me perdoaria a mim próprio deixar que os estudantes universitários pudessem ser apanhados desprevenidos nas teias que à sorrelfa se teciam nos gabinetes da 5 de Outubro para lhes usurpar um mercado de trabalho já saturado e da sua natural pertença. E porque, com escrevi, em artigo anterior, referindo-me, respectivamente, aos universitários e aos alunos do politécnico, ‘uns são os invadidos e outros os invasores’, tenho que aceitar a acusação que me é feita de ‘xenofobia académica’, mas que colhe nobre exemplo nos franceses que durante a II Guerra Mundial lutaram contra os alemães nas forças da Resistência, enquanto compatriotas seus colaboravam com os invasores. Nesta perspectiva, portanto, a minha ‘xenofobia académica’, mais do que uma mera opção, deve ser considerada uma questão de honra” (Público, 01/02/2007).

Tempos depois, foi a direcção do Sindicato Nacional dos Professores Licenciados recebida em audiência pela então secretária de Estado da Educação Ana Benavente. Aproveitando a ocasião, levantei esta questão. Fazendo jus à proverbial ambiguidade dos políticos, “bamboleando três vezes a cabeça como quem prefacia uma revelação ponderosa” (Camilo) não deixou ela de mostrar um ar agastado. Ao recordar-lhe que a Lei de Bases do Sistema Educativo contemplava, apenas, a atribuição dessa docência a diplomas universitários, sem se dar por achada, retorquiu: “Mas a lei muda-se de um dia para o outro!”

Sabia do que falava. Numa segunda alteração à Lei de Bases do Sistema Educativo, Lei n.º 49/2005, de 30 de Agosto, sendo Valter Lemos, antigo professor da Escola Superior de Educação de Castelo Branco, secretário de Estado da Educação, foi estabelecido no respectivo ponto 3, do artigo 34.º, do respectivo anexo: “A formação de educadores de infância e dos professores dos 1.º, 2.º e 3.º ciclos do ensino básico realiza-se em escolas superiores de educação e em estabelecimentos de ensino universitário”. Com esta promiscuidade formativa, através de faculdades e de escolas superiores de educação, corre-se o risco da universidade vir a diminuir a exigência do respectivo ensino para evitar que os seus alunos sejam preteridos por alunos saídos das escolas superiores de educação nos concursos para a docência em que conta a classificação final de curso.

A factura desta eventual baixa de qualidade na formação dos professores saídos das faculdades será paga por um país que parece conviver bem com a mediocridade do ensino fomentando-a, até, para além da própria decência, com passagens até ao 9.º ano de escolaridade, com finalidades meramente estatísticas de uma qualidade que não existe perante a apatia da própria opinião pública porque, como escreveu Simone de Beauvoir, “o mais escandaloso dos escândalos é que nos habituamos a eles”.

Sendo ministra da Educação Isabel Alçada e presidente do Conselho Nacional de Educação Ana Maria Bettencourt, as duas professoras das Escolas Superiores de Educação, respectivamente, de Lisboa e de Setúbal, difícil me parece que consigam subtrair-se ao fascínio de serem juízes em causa própria, tornando, assim, possível que a preparação dos professores do ensino secundário seja realizada, também ela, em escolas superiores de educação, desvirtuando, com isso e uma vez mais, o princípio legal que presidiu à criação dessas escolas: formarem educadores de infância e professores do 1.º ciclo do ensino básico detentores do diploma académico de bacharel. Trata-se apenas de uma questão de marés!

10 comentários:

Armando Quintas disse...

Por tudo isto que apontou se vê o desgoverno do nosso país, recursos são gastos a triplicar sem necessidade, diferentes tipos de ensino público que na prática são iguais fazem concorrência entre si.

A escolaridade obrigatória vai passar a ser 12 anos, portanto teremos 12 anos de passagens administrativas sem aprendizagens de conteúdos.

Criaram-se sistemas e sub sistemas, escolas superiores, institutos politécnicos e afins, desvirtuando o objectivo da sua criação para alimentar uma casta de professores que nem são colocados por via transparente..

Para alimentar esta máquina, temos a necessidade de abrir mais cursos nas universidades porque são financiadas de uma forma arcaica que ao invés de valorizar a qualidade e empregabilidade dá mais atenção ao número de alunos, e o ensino superior a ser asfixiado precisa de mais alunos que vão encher o desemprego obrigando o governo a medidas sociais suplementares..

Isto vai ao encontro da fuga dos cérebros..

Abrem-sem cursos como se vende bacalhau a patacos, qualquer dia qualquer vilazinha tem uma escola superior, parece o tempo das rádios piratas!

Qualidade e exigência não se pede, nem se fala em tal, exigência para o ensino superior, para a entrada no mesmo? só se for em medicina com as médias excessivamente altas, cursos com 10 de nota mínima imperam, e isto porque a lei já não permite menos que os havia.

Os alunos no secundário não aprendem nada, já chegam ao superior sem saber escrever correctamente o português, e lamentam-se quando têm que ler bibliografia em inglês ou francês..

Bolonha ou a sua implementação à portuguesa, veio trazer outro problema, com 3 anos não se aprende o mínimo necessário para se ser licenciado, por isso é normal que se considere as licenciaturas desvalorizadas em relação ao anterior regime.

Os mestrados vão sendo convertidos para Bolonha, onde antes eram 4 + 2, agora são 3+2, aprendendo-se no segundo ciclo o que se aprendia na licenciatura antiga, isto apesar da lei decretar que o mestrado de Bolonha é superior à licenciatura antiga, mas na prática..

Os alunos terminam um curso em 3 anos, sem terem a noção exacta de um percurso e já os estão a persuadir/coagir para fazerem o 2º ciclo, o ano de paragem para trabalhar/ ganhar experiência e currículo acabou, passam a mestres sim, mas ao fim dos 5 anos não sabem fazer nada, 0 experiência!

Os exemplos abundam, mas não me queria estar a desviar da temática.

Concluo que na minha opinião este estado de coisas que o post descreve, existe para dar cunha e emprego aos amigos, é por isso que há interesse em surgirem institutos, faculdades, escolas superiores e derivados, como cogumelos..

Rui Baptista disse...

Meu Caro Armando Quintas:

Obrigado pelo seu comentário.

Por vezes, dou comigo a pensar que o avanço das escolas superiores de educação apanharam os professores licenciados e a própria Universidade de surpresa e de forma insidiosa mum ataque pela calada da noite e de baionetas caladas. Quem iria pensar que surgisse um Estatuto da Carreira Docente que transformou gigantes em anões e anões em gigantes?

Esse estatuto surgiu com o apoio de uns tantos sindicatos de professores para satisfação de uma determinada orientação política ou de determinadas clientelas de formação académica menor. Não se tratou, apenas, de uma bola de neve. Foi, desde o início, um pequena avalanche que arrastou pelo caminho princípios morais.

Chegou-se ao ponto, de fazer retroceder os professores licenciados que então se encontravam no topo da carreira (letra A) para o 8.ºescalão de uma carreira de dez escalões.

Para os que possam ter a memória curta (por amnésias da idade ou das suas conveniências), recorda-se aqui que o topo da carreira antiga era a letra B, para os bacharéis, e a letra C para os diplomados com cursos médios. A partir daqui, passou-se, parafraseando Medina Carreira, "à trafulhice de serem os professores todos iguais". Escolas privadas (ditas) superiores, por processos de verdadeira alquimia, transformaram em meses diplomas de ensino médio em licenciaturas.

Hoje, então, de degrau em degrau, com o novo-riquismo das Novas Oportunidades e das Provas de Acesso ao Ensino Superior para maiores de 23 anos corre-se o risco de andar à procura, neste verdadeiro palheiro em que se transformou o ensino,de uma agulha que não seja licenciada. Costumes de um tempo em que todos os cidadãos têm uma certa dose de culpa. Uns por ingenuidade, outros por conveniência.Mas ambos coniventes de um processo que cada dia que passa tem novos desenvolvimentos.

Mas sempre no sentido de agravar as situações já existentes.

Fernando Martins disse...

Assino de cruz o texto do post e o comentário...

E votos de boas festas...

Rui Baptista disse...

Meu Caro Fernando Martins:

Com um forte abraço, agradeço e retribuo os votos de boas festas, embora descrente que o Ano Novo traga algo de bom para os professores licenciados por universidades. Fartei-me de ver mais do mesmo ou até pior.

Os motivos? Estão eles bem expressos no derradeiro parágrafo do meu "post". Bastou um secretário de Estado do ex-governo do Partido Socialista, professor de uma escola superior de educação albicastrense, para que a exigência da docência do 3.º ciclo do ensino básico passasse a ser partilhada por formações académicas universitárias e politécnicas. Ou seja, quanto menor for essa exigência melhor são os seu resultados na eficácia do ensino... Alguém, com dois dedos de testa, consegue explicar este verdadeiro paradoxo?

Mas haja esperança.Pelo menos, até ao momento, há 2 comentários (o seu e o do Armando Quintas) que não embarcam numa criminosa passividade de deixar correr o marfim. Já é um começo...

Fartinho da Silva disse...

Caro Rui Baptista e comentadores,

Concordo em absoluto com tudo o que aqui foi referido e acrescento apenas mais um ponto, o lobby das "ciências" da educação, como se encontra numa enorme pressão para encontrar novas formas de financiamento, está a lutar para que:
1. não se façam exames aos "alunos" com consequências para que o desastre continue escondido;
2. se façam exames sobre a fé por ele professada aos "professores";
3. se obrigue os "os professores" a frequentar as "escolas" "superiores" de eduquês para cursos tão fundamentais como: "Avaliação de professores" e "Psicosociologia da educação"...;
4. se obrigue os "encarregados de educação" a frequentar essas mesmas "escolas" para que possam aprender a ser "pais" e "mães" à moda do eduquês;
5. se obrigue a "escola" a ter "técnicos" superiores formados nas tais "escolas" para que estes a possam guiar na "escola nova".

Para se ter uma breve ideia do que se passa neste país e com este lobby, basta dizer que saiu uma portaria de certificação em competências TIC (731/2009) em que os licenciados, mestres e doutorados em engenharia informática passam a ter uma certificação de nível básico (?????), enquanto que os doutorados em "ciências" da educação passam a ter uma certificação de nível avançado e de forma automática!!!!!

Não acreditam? Então basta consultarem esta portaria através do seguinte endereço: http://www.min-edu.pt/np3/3690.html

Quando li esta portaria fiquei com uma enorme vergonha de ter nascido em Portugal... e prometi aos meus filhos tudo fazer para que estes estudem numa boa Universidade estrangeira!

Rui Baptista disse...

Meu Caro Fartinho da Silva:

Agradeço o seu comentário por se tratar de mais uma pedrada no charco do nosso ensino e de um Estatuto de Carreira Docente que permitiu injustiças como esta:

Que uma professora (5.º ano do antigo liceu + 2 anos de magistério primário) e um belíssimo professor metodólogo de Matemática, antigo Reitor de Liceu, ambos vivendo no mesmo prédio, se reformassem ambos no 9.º escalão. Ela com 50 e poucos anos de idade, ele no limite máximo de idade (70 anos), não se tendo reformado, como seria justo, no 10.º escalão por uma questão de dias.

Casos como este, levam-me a discordar de acordos sindicais fiéis ao princípio desde que eu me amanhe que se tramem os outros...

José Batista da Ascenção disse...

E não deixarão pedra sobre pedra.
E quando se pedirem contas (se se pedirem) já os responsáveis estarão na condição de venerandos laureados pelo sistema que criaram e por aqueles a quem serviram.
E como a história é o registo que se faz dela, talvez nem aí sejam (a posteriori) objecto de julgamento. Que importa o número infinito dos que prejudicaram? Não vamos ouvindo cada vez com mais frequência a frase: "estou de consciência tranquila"? Eu acredito que estão mesmo: não propriamente tranquila mas ferozmente intencional.
Quanto a indivíduos como nós, somos apenas "os vencidos do ministério da educação". Apesar de não devermos dar-lhes tréguas, até ao fim...
Bom Natal.

Rui Baptista disse...

Caro José Batista da Ascenção:

Quem não tem consciência pode apregoar que não tem problemas de consciência. Assim como quem não tem um único dente seu pode apregoar que não tem dores de dentes. Daí a justificação para, como diz, se ouvir cada vez mais a frase "estou com a consciência tranquila".

Enfim, um Bom Natal para aqueles que não estão com a consciência tranquila enquanto não se verificar que a iguais direitos correspondam iguais deveres. O que se verifica hoje no nosso sistema educativo com expressão no estatuto da carreira docente é bem diferente: os direitos para mim e os deveres para os outros...

Leonardo disse...

Interessante o post e os comentários. E daqui do Brasil, sendo eu também um professor, faço coro a tudo que disseram, pois aqui em meu país não está muito diferente, às vezes até pior.

Abraços e bons agouros para 2010...

Rui Baptista disse...

Caro Leonardo:

Grato pelo seu comentário que envolve o meu post e os comentários que muito o valorizaram.

Como eu costumo dizer cá (em Portugal) e lá (no Brasil)"más fadas há". Um Bom Ano Novo!

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