terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Cérebros, mulheres giras e cerveja barata


Artigo de opinião de David Marçal, publicado no "Público" de hoje:

Segundo um artigo recente publicado noutro jornal, os motivos apontados por dez investigadores estrangeiros para trabalharem em Portugal são a praia, a comida, as mulheres giras e a cerveja barata. E, de acordo com vários relatórios de organizações internacionais, Portugal é também o país europeu que mais exporta recursos humanos qualificados, o que faz supor que os portugueses só dão o devido valor a estas coisas quando se vêem a apanhar chuva na pinha e a pagar cinco euros por uma pint nalgum sítio onde as suas competências sejam valorizadas.

Que prevê o programa do actual Governo para a ciência? Cerveja grátis para investigadores? Não. O Governo propõe-se "a renovar e reforçar o Compromisso com a Ciência". Define metas quantitativas (aumentar o número de doutorados, patentes, o investimento público e privado em investigação), faz referência à necessidade de Portugal integrar as redes internacionais de conhecimento e de grandes infra-estruturas científicas. Promete ainda melhorar as condições fiscais para quem contratar doutorados, medida que não é novidade mas que me inspira alguma preocupação: a ideia de que a contratação de doutores pelas empresas tem que ser apoiada é um pouco como um médico que receita morfina: temos que estar mesmo muito mal. Mas, sem brincadeiras, a proposta que me parece mais interessante é esta:

"Será ainda garantido, a todos os investigadores doutorados, um regime de protecção social idêntico ao dos restantes trabalhadores, incluindo os actuais bolseiros, assegurando-se, ainda, o cumprimento integral, em Portugal, das recomendações europeias relativas às carreiras dos investigadores e às suas condições de mobilidade."

Esperemos que cumpra rapidamente. É uma vergonha que tantos investigadores estejam abrangidos pelo Seguro Social Voluntário, o mesmo sistema de protecção social das donas de casa, e não pela segurança social igual para todos. Isto na prática equivale a prestações para a Segurança Social pelo valor do salário mínimo (com as devidas consequências no valor das prestações em caso de necessidade e na reforma) e ausência de subsídio de desemprego. Os bolseiros são uma fatia de leão, tanto em número como em importância para o sistema científico nacional. O que aconteceria aos grupos de investigação que ganham prémios e fazem notícias nos jornais se dispensassem os bolseiros? Perguntem-lhes.

É válida a meta apresentada pelo Governo de aumentar o número de investigadores. Mas esperemos que isso não continue a ser feito à custa da precariedade dos bolseiros. Sai muito mais em conta um bolseiro de investigação que ganha uma miséria (as bolsas não são actualizadas desde 2002, o que representa uma perda de 18% do poder de compra face à inflação acumulada), que recebe apenas 12 meses por ano, que custa 83,84? em segurança social por mês (independentemente do valor da bolsa) e que não dá chatices com subsídio de desemprego. Este tem sido o milagre da multiplicação de cérebros.

Registo como positivo o programa que na anterior legislatura permitiu a contratação de 1000 investigadores doutorados para institutos e universidades públicas. Os contratos de trabalho devem tendencialmente substituir as bolsas, pelo menos no caso dos investigadores doutorados, por isso esperemos (tal como consta do programa do Governo) que continue. Mas isto não invalida que as condições dos bolseiros não tenham que melhorar. Senão, perpetua-se uma espécie de sistema de castas, em que alguns felizardos conseguem saltar para o outro lado, assemelhando-se a carreira de investigação em Portugal ao filme Slumdog Millionaire.

Não ignoro que Portugal é um país que tem um PIB per capita muito inferior ao de outros países europeus e que não poderá de um momento para o outro oferecer aos investigadores as mesmas condições, pelo que teremos que continuar a contar com a ajuda do clima, da gastronomia, do sex appeal dos portugueses e da cerveja barata para fixar cérebros. Mas integrar os bolseiros no Regime Geral de Segurança Social (e julgo que deveriam ser todos e não apenas os doutorados) é o mínimo. Esperemos que isto aconteça em breve. E que a crise, o salvamento do sistema financeiro irresponsável, o défice ou qualquer outra perna de pau não sirva de desculpa para protelar indefinidamente esta medida.

4 comentários:

Armando Quintas disse...

Impera neste país a carolice, se pudessem punham os investigadores a pagar para trabalhar!
Este país, o estado ao lado dos grandes patrões, querem o trabalho feito de borla se possível!

Ao invés de andarem a dar dinheiro para essa gente do futebol em negócios escuros, a fazer negociatas com submarinos, helicóptros e tvg da treta, apostem na ciência e na formação de cerebros, para ao invés de importarmos, exportarmos, mas se não ouver cá quem saiba fazer vamos estar continuamente a comprar o que poderiamos vender, e a vender aquilo que ninguém quer porque os asiáticos fazem mais barato, ou seja o produto sem valor acrescentado, que se monta num armazém meia dúzia de maquínas de costura em numa semana são feitos milhares de produtos contrafeitos a preço da chuva!

Com isso não podemos concorrer, mas podemos com os produtos de tecnologia de ponta que já não vingam a contrafacção nem a mão de obra semi escrava!

Mas para tal é preciso de dar condições aos investigadores, nomeadamente sustento porque não vivem do ar..

mas enquanto continuar o espirito da carolice e da "mama" do faz lá e trás pra vermos para te dizer sim senhor, palmadinha nas costas, adeus que agora vou publicar com o meu nome.. isto vai andar assim.

Não esqueçamos que o ensino é péssimo já de sí para atrair cérebros, e não lhes dando condições eles fogem para o estrangeiro, com o curso feito em Portugal, ás custas de todos os contribuintes a beneficiarem a custos reduzidos os outros países!

Jose Antonio Salcedo disse...

Na minha pequena empresa (industrial de alta tecnologia) temos 25 colaboradores com 6 nacionalidades, onde se incluem 9 doutorados. Todos os colaboradores estão contratados sem termo. Gostaria de poder contratar outros 5-10 pessoas com mestrado e doutoramento para fazer face aos desafios e às oportunidades que temos pela frente, mas infelizmente não temos capacidade financeira para o fazer. Seria útil poder contar com um programa de apoio para esse tipo de contratações qualificadas, que já existiu em tempos mas não existe desde há alguns anos.

David Marçal disse...

Caro José António Salcedo,

Não interprete das minhas palavras que sou contra essa medida, apesar de pensar que pode ter efeitos perversos: contratar doutorados para funções que não justificariam essa qualificação simplesmente para aproveitar os apoios e fazer boa figura nas estatisticas. Situação que cabe ao doutorado avaliar se lhe convém, mas que penso que não justificará o apoio do Estado. Mas certamente que a medida poderá ser verdadeiramente meritória em muitos casos . Penso sim que a sua eventual necssidade permite aferir o estado em que ainda estamos, no que diz respeito à economia do conhecimento.

Desejo sucesso para a sua empresa!

Jose Antonio Salcedo disse...

David Marçal,

Obrigado pelo comentário, mas repare que temos doutorados (nacionais e estrangeiros) apenas porque precisamos deles dado o nível científico e tecnológico a que operamos. E tanto precisamos que estamos a financiar ou co-financiar 3 teses de doutoramento, uma em Portugal e duas em Inglaterra. Não temos subsídios nem deles dependemos, mas alguns apoios seriam bemvindos porque nos permitiriam fazer mais e mais rapidamente. É como registar patentes nos EUA: como não existem apoios e elas são extremamente caras, apenas temos 6 em vez das 20 que poderíamos ter neste momento.

Quanto às estatísticas oficiais, elas são-nos inteiramente indiferentes e passam-nos completamente ao lado até porque nem temos negócios em Portugal. Convido-o a visitar o nosso site, da Multiwave Photonics SA.

50 ANOS DE CIÊNCIA EM PORTUGAL: UM DEPOIMENTO PESSOAL

 Meu artigo no último As Artes entre as Letras (no foto minha no Verão de 1975 quando participei no Youth Science Fortnight em Londres; esto...