Vasco Graça Moura, numa incursão pela literatura portuguesa, revela-nos textos e autores que, desde o século XV até ao presente, têm captado e explorado esses significados. Vale a pena ler a Antologia em que apresenta essa incursão e da qual reproduzo, de seguida, as duas primeiras páginas.
“Como é natural, as referências ao Natal na nossa literatura começam por registos de uma intensa devoção e só muito mais tarde se preocupam com a transposição de celebração religiosa e do seu sentido transcendente para o plano civil de uma comunhão festiva, familiar e universal, necessariamente ligada à ideia de paz na terra e reconciliação entre os homens.
É na poesia e no teatro que desponta literariamente aquela exaltação religiosa, com mestre André Dias (1348-1437), e depois nalguns auto vicentinos de devoção, para não parar mais, até ao nosso tempo: do Maneirismo, no Barroco, no Romantismo e daí em diante, até hoje. Basta recordar, mais ou menos ao acaso, poetas como António Ferreira, Frei Agostinho da Cruz, Diogo Bernardes, Rodrigues Lobo, D. Francisco Manuel de Melo, Jerónimo Baía, Correia Garção, Reis Quinta, Cruz e Silva, Bocage, Almeida Garrett, Castilho, António Nobre, Gomes Leal, Fernando Pessoa, Vitorino Nemésio, Miguel Torga, Álvaro Feijó, António Gedeão, David Mourão-Ferreira e tantos outros…, para se ver que o «cancioneiro de Natal» lusitano é muito abundante e variadíssimo.
Por sinal que é provavelmente com um célebre soneto de D. Francisco Manuel de Melo, «De consoada a uma sua prima», que o lado da celebração familiar e afectiva da quadra natalícia, acompanhada da troca de presentes, surge na nossa literatura, com a particularidade de ser escrito na prisão e, portanto, de contrapor um estado de afastamento, de solidão e de tristeza (…) a uma época do ano que era tradicionalmente de jubilosa reunião da família.
Mas ainda no século anterior, a pós-vicentina Prática dos Compadres de António Ribeiro Chiado, já descreve, de modo muito colorido, no pitoresco diálogo entre o Cavaleiro e o Compadre, os usos e folguedos entre familiares e vizinhos, a propósito da ceia de Natal e da missa do galo.
Isto tinha razões muito antigas. O Padre Mário Martins explica a dramatização popular na liturgia do Natal a partir de uma ideia de presépio que «vinha de longe, muito antes de São Francisco de Assis» e observa que na «Idade Média (…) nem tudo era edificante, pela festa do nascimento de Jesus". Em 1473, um concílio de Aranda (…) fala-nos de representações, mascaradas, figuras monstruosas e versos indecentes (…) que vinham a público, nas igrejas, por ocasião do Natal, da festa dos Santos Inocentes, São João Baptista, etc. (…).
Com pouco desfasamento em relação à poesia e ao teatro (e também às artes plásticas, do Vasco Fernandes da Adoração dos Pastores até ao Machado de Castro dos presépios), na nossa tradição cultural as referências importantes ao Natal, em prosa literariamente consistente, podem ser detectadas já em finais do século XV, n’O livro de Vita Christi em lingoagem português, tradução da obra de Ludolfo de Saxónia mandada fazer por D. João II e por sua mulher, a rainha D. Leonor (…).”
Referência completa: Graça Moura, Vasco (2003). Gloria in Excelsis: Histórias Portuguesas de Natal (Antologia: apresentação e selecção). Porto: Colecção Mil Folhas (Jornal Público), páginas 5 e 6.
Imagem. Natividade, Painel de azulejos portugueses (1746, 1754) - Igreja Basílica do Senhor do Bonfim, São Salvador, Bahia. Encontrado em: http://peregrinacultural.wordpress.com/2008/12/18/canto-de-natal-poesia-de-manuel-bandeira/
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