domingo, 13 de dezembro de 2009

O BUREAU DES LONGITUDES


Do meu livro "Curiosidade Apaixonada", saído há anos na Gradiva, eis uma crónica de uma visita a uma antiga instituição científica que os franceses preservam:

No outro dia, a almoçar em Paris com físicos franceses, perguntei se ainda existia o Bureau des Longitudes, instituição lendária criada durante a Revolução Francesa com o fito de resolver os problemas relacionados com a determinação da longitude, nomeadamente no mar. E, perante um certo ar de espanto dos meus interlocutores, que indiciava a falta de senso da questão, perguntei logo o que fazia o Bureau actualmente.

A resposta foi muito simples, mas também surpreendente. À minha frente estava, sem eu o saber, o Presidente (“Monsieur le President”) do Bureau des Longitudes e ao meu lado estava, também sem eu o saber, um antigo Presidente e actual membro do mesmo Bureau. O Presidente passou-me, simpaticamente, a sua “carte de visite”. E convidou-me a assistir à próxima sessão do Bureau que se realizava precisamente no dia seguinte, quarta-feira, pelas 10 horas da manhã. O Bureau reúne na primeira quarta-feira de todos os meses pontualmente às 10 horas, ou não fosse ela uma instituição bicentenária que trata, com minúcia, as medidas do espaço e do tempo.

Quem pergunta quer saber, pelo que não dei parte de fraco. No dia seguinte estava lá pouco antes das 10 horas. O sítio é magnífico. Quem vem da margem Norte do rio Sena, o ponto de referência é o Museu do Louvre, no meio do qual está a famosa pirâmide de vidro. Aí atravessa-se o rio pela Pont des Arts, entre a Pont du Carroussel e a Pont Neuf (que liga a Ile de France), e entra-se directamente na Place de l’Institut, que se abre no Quai de Conti. E nessa praça ergue-se, com uma elegância barroca, o Palais de l’Ínstitut, sede do Institut de France e também do Bureau des Longitudes.

O edifício, com uma cúpula que combina com a do vizinho Palácio do Louvre, foi construído em 1688 por ordem do poderoso Cardeal Mazarin (1602-1661). O nome original era Collège des Quatre Nations, uma vez que o edifício se destinava à educação de jovens nobres provenientes de quatro regiões que tinham sido anexadas à França. Hoje é a casa-mãe do Insitut de France. Este inclui a Academia Francesa, uma das mais famosas academias do mundo, fundada em 1635 pelo Cardeal Richelieu, e que tem quarenta membros encarregados de redigir o dicionário da língua francesa (um dos últimos académicos, “confrère” como os académicos franceses se chamam entre si, é o ex-presidente Valéry Giscard d’Estaing, não tendo a sua entrada sido isenta de polémica). Mas o sítio chama-se “palácio das cinco academias” porque além da Académie de France existem a Académie des Inscriptions et des Belles Lettres, a Académie des Sciences, que é a maior de todas, e a Académie des Beaux Arts e a Académie des Sciences Morales et Politiques. O Bureau des Longitudes, que é independente das academias, fica no fundo do Instituto, acedendo-se à porta que contém a respectiva placa dourada, depois de se passar dois pátios interiores.

A Academia Francesa e as outras estão normalmente fechadas ao público, exceptuando-se a visita marcada de grupos com interesses culturais. O mesmo se passa com o Bureau des Longitudes. Mas, quem é convidado, entra facilmente. O convidado subiu logo à histórica Sala das Reuniões, onde pontifica um teodolito antigo, para não passar pela vergonha de chegar depois da hora. É que a sessão começa mesmo às 10 horas, sem quaisquer atrasos académicos.

Tratava-se de uma reunião ordinária, com a particularidade apenas desta reunião anteceder a eleição do próximo Presidente, função para a qual é norma a indigitação do Vice-Presidente. O processo é democrático mas a democracia é convenientemente preparada! O Presidente depois de declarar aberta a sessão, apresenta o seu convidado (“professeur de l’Université de Coimbrá”, que muito honrado se senta numa boa cadeira lateral já que a mesa está reservada para os treze membros do Bureau), e passa a enumerar os pontos da ordem do dia.

Antes de entrar na ordem do dia, convém esclarecer qual é o objectivo do Bureau e quem são os “eleitos” que o constituem. Eles tratam hoje não já do problema das longitudes no mar, que está resolvido desde os trabalhos no século XVIII do inglês John Harrison (que construiu um relógio-cronómetro suficientemente preciso para medir as horas a bordo), mas de questões actuais relativas ao globo terrestre e ao cosmos. Como explica o seu “site” http://www.bureau-des-longitudes.fr/ o Bureau é uma academia científica que trata as ciências do Universo. Publica todos os anos um livro de efemérides astronómicas (sob o nome muito bonito de “La Connaissance du Temps”). Organiza um conjunto de palestras para o público em geral, no quadro da sua missão geral de difusão do conhecimento e da cultura científica. Emite pareceres sobre os domínios da sua especialidade (Física do Espaço e da Terra, Geodesia, Cartografia, etc). Já está, portanto, respondida a questão que deu origem ao convite... Os membros do Bureau são todos eles astrónomos e físicos. O presidente até há pouco tempo era o Professor Jean-Paul Poirier, que dirigiu a Laboratório de Geomateriais do renomado Institut de Physique du Globe de Paris. É autor de vários livros, entre os quais um traduzido em português (“O Núcleo da Terra”, Instituto Piaget, 2000). Serviu a França na Marinha Francesa, ocasião em que teve oportunidade de visitar Timor, quando este território ainda era colónia portuguesa. E lembra-se, com delícia, do vinho do Porto aí oferecido pelos seus colegas da Marinha Portuguesa.

De que constava a ordem do dia? Espero não cometer nenhuma inconfidência ao revelar que o Bureau des Longitudes na primeira quarta-feira de Dezembro ouviu uma palestra de um dos seus membros sobre o escritor Júlio Verne (2005 era o centenário da morte). Dada a vastidão de temas científicos e técnicos tratados pelo escritor de Nantes, o orador concentrou-se nos temas que diziam respeito ao clima. Os romances menos conhecidos o “Le Docteur Ox” (o doutor Ox do título tinha um ajudante chamado “Igène”; os dois em conjunto faziam “Oxigène”) e “Sans dessus dessous” (em português, “Fora dos eixos”, que trata de uma louca aventura de um grupo que quer alterar o eixo de rotação da Terra) fornecem bons motivos para discussão do clima numa altura em que tanto se discutem – e temem – as alterações climáticas à escala global. Depois desta palestra, recheada de erudição e humor, seguiu-se a apresentação do próximo volume de “La Connaissance du Temps”, que o Bureau “subempreitou” desde 1998 ao Institut de Mécanique Céleste et de Calcul des Ephémérides, do Observatório de Paris. Discutiu-se também a divulgação de uma brochura sobre o sistema Galileo, o projecto europeu de satélites que deverá em breve concorrer com o sistema norte-americano de GPS (“Global Positioning Systems”). Lembre-se que o GPS é hoje um método fiável de determinar não só a longitude, como a latitude e a altitude de qualquer lugar. Finalmente, informou-se que o Prémio Descartes, atribuído a trabalhos científicos que envolvam uma cooperação europeia foi atribuído, em parte, a uma equipa de astrónomos, chefiada por uma astrónoma do Observatório Real da Bélgica e que envolvia uma parceria com França e outros países. Os premiados criaram um modelo preciso para o movimento do eixo de rotação da Terra, que terá implicações para o sistema Galileo. Lá está o eixo de rotação que Verne queria alterar no seu romance...

É muito interessante como a França (e a Bélgica e vários outros países europeus) sabe conservar as suas tradições no domínio das ciências. O Bureau des Longitudes foi formado pela lei revolucionária do 7 Messidor do ano III (25 de Junho de 1795) tendo os seus primeiros membros sido dez grandes nomes da ciência, a saber Lagrange, Laplace, Lalande, Delambre, Méchain, Cassini, Bougainville, Borda, Buache e Caroché. Lagrange e Laplace fazem parte da época de ouro da ciência newtoniana. Delambre e Méchain foram os dois astrónomos que em 1791 partiram de Paris em direcções opostas para medir o meridiano de Paris. Os outros são menos conhecidos mas alguns foram aventureiros notáveis. Como Bougainville, que deu o nome às buganvílias, árvores que encontrou numa viagem ao Brasil e que hoje encontramos em Portugal.

Muito obrigado ao Prof. Poirier, Presidente do Bureau des Longitudes, por me ter respondido de uma forma tão hospitaleira a uma pergunta “naif”!

2 comentários:

Fernando Martins disse...

Caro Doutor:

Post delicioso - só não concordo que não dê realce ao Cassini do Bureau (filho e neto de excelentes astrónomos...) e ele próprio importante na astronomia francesa e imortal e na cartografia...

Paisano disse...

Pois!!!!

Gostei e achei delicioso o seu texto.

Só que é pena, que a civilização gaulesa não consiga entender que alguns séculos antes do cronómetro, já por outros meios o problema da longitude era resolvido.

Segundo consta já no século XIV - XV o Império do Meio tinha meios correctos de calcular a longitude.

Mas a civilização do Império do Meio é muito atrazada em relação à esplendorosa civilização ocidental que só consegue resolver tal problema no século XVIII !!!!

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