segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

O CULTO DA CARGA


Minha crónica na última "Gazeta de Física" (na imagem Richard Feynman):

O físico Richard Feynman, num discurso de início do ano académico no California Institute of Technology (Caltech), em 1974, usou a expressão “cargo cult” (traduzido à letra o “culto da carga”) para designar os rituais que alguns povos primitivos de ilhas do Pacífico começaram a praticar, durante a Segunda Guerra Mundial. Eles imitavam, ainda que toscamente, os procedimentos dos militares americananos quando instalavam pistas para aterragem de aviões de carga. Os indígenas chegavam não só a arranjar pistas rudimentares a ver se também recebiam a “carga”, mas também a “fazer uma cabana de madeira para um homem se sentar lá dentro, com dois bocados de madeira na cabeça a imitar auscultadores e dois paus de bambu a imitar anternas – o controlador”. Este relato é feito no livro “Está a brincar Mr. Feynman” (Gradiva, 1988), um dos primeiros volumes da colecção Ciência Aberta e que vale sempre a pena reler. Feynman sugere uma analogia para a pseudociência: “Seguem todos os preceitos e formas aparentes da investigação científica, mas falta-lhe qualquer coisa essencial porque os aviões não aterram.”

De facto, os exemplos que podem ser dados de ciência do “culto de carga” são numerosos. Os praticantes das várias formas de pseudo-ciência, umas mais grosseiras e outras mais refinadas, proliferam no mundo de hoje. Porém, ao contrário do que a caricatura indicada por Feynman dá a entender, nem sempre é fácil fazer a distinção entre ciência e pseudo-ciência, entre ciência verdadeira e ciência da treta. É decerto mais fácil nas chamadas ciências exactas como a física e a química, onde a eventual fraude acaba relativamente cedo por ser detectada acarretando a morte científica do respectivo autor, mas é mais difícil em ciências humanas, como a psicologia e as ciências da educação, onde não raro acontece que a morte física do autor precede a respectiva morte científica. As chamadas ciências naturais, em particular as ciências biomédicas, onde hoje trabalha uma enorme comunidade de investigadores, constituem um vasto terreno intermédio (ver sobre medicina e farmácia o livro de Ben Goldrace “Ciência da Treta”, saído há pouco na Bizâncio).

O famoso caso da fusão fria, ocorrido há uma década quando os químicos Martin Fleischmann and Stanley Pons anunciaram que tinham conseguido produzir fusão nuclear numa simples experiência de electrólise de água pesada com um eléctrodo de paládio, é paradigmático do destino impiedoso que têm, em ciências físico-químicas, as ideias que não são comprovadas por outros de uma forma clara, sistemática e, por isso, conclusiva. Fleischmann e Pons estão hoje desaparecidos de cena. Feynman bem tinha avisado: “Aprendemos com a experiência que a verdade acabará por aparecer. Outros experimentadores repetirão a nossa experiência para descobrir se estávamos certos ou errados. Os fenómenos naturais irão estar de acordo ou em desacordo com a nossa teoria. E, embora possamos ganhar alguma fama e excitação temporárias, não adquiriremos uma boa reputação como cientistas se não tentarmos ser muito cuidadosos”.

No campo das ciências humanas, a área do ensino das ciências deve particularmente preocupar os cientistas. Aí o método científico tem, sem dúvida, uma aplicabilidade mais restrita. Os sistemas são mais complexos e a incerteza é maior. Mas é significativo que o “American Journal of Physics”, com um sistema de “peer review” muito apertado, publique cada vez mais artigos sobre educação científica. E que haja em “open access”, com o rigor que é apanágio da “Physical Review”, a revista “Physical Review Special Topics - Physics Education Research”. Quero ser optimista: a ciência do “culto da carga” está, nas ciências de educação, sob ameaça.

8 comentários:

Unknown disse...

O curioso, e voltando ao tema "du jour", é que a profecia climática segue quase ritualmente o carril da pseudociência, uma vez que as suas previsões não são falsificáveis em tempo útil. O objecto de experimentação é a Terra, toda ela, e por razões óbvias, não se pode meter num laboratório e testar as hipóteses. Os modelos sim, podem testar-se, mas sendo o que são (modelos), são apenas representações simplificadas e mais ou menos deterministas e enviesadas de uma realidade complexa...muito complexa.
O facto de as previsões serem vagas e lançadas para um futuro suficientemente distante, torna-as inverificáveis e contingentes. Acreditar que são "verdadeiras" é tão pseudociência como a ideia da "fusão a frio", ou a "dianética" . Só que aquela era verificável e por isso foi desmascarada.
Previsões climáticas feitas com modelos não são muito diferentes, em termos de resultados, de profecias feitas com búzios, ou por leitura da carta astral. Trata-se de teses não refutáveis em tempo útil. Efectivamente até o Borda d'Agua tem uma impressionante história de acertos, na previsão do clima a um ano. Os modelos nem isso.
De modo que é uma questão de crença... e os apanhados do clima que fazem todo este escarcéu a que temos assistido, não parecem muito diferentes dos indígenas de Feynman, ou de um qualquer culto religioso que segue um ritual mágico.


Isto no que toca à questão dita científica, uma pequena e quase irrelevante parte do "climatic change", face às vertentes ideológicas e políticas em jogo.

Luís Santos disse...

Em boa verdade o mesmo pode ser aplicado à Física de Partículas (que faz uso de modelos semi-clássico completamente ad-hoc) e - como é bem conhecido - à Teoria de Supercordas. Isto para além do facto, também ele bem óbvio, que ninguém vê realmente um electrão, um fotão ou uma onda monocromática, por exemplo. O "How the Physics Laws Lies", por exemplo, é um bom livro para nos mostrar que a Física, tal como se faz, anda muito longe mitos baconianos atirados por pregadores. Isto do físico achar que a epistemologia se resolve em duas penadas é, intelectualmente, do mais primitivo.

rt disse...

Oxalá essa ameaça chegue rapidamente a Portugal, mas por enquanto as Escolas Superiores de Educação e as Faculdades de Psicologia e Educação estão cheias de "pistas rudimentares".
Todavia, os "indígenas" que as construiram fazem um pouco mais do que aguardar que a "carga" caia do céu: eles improvisam também a "carga" e depois dizem que caiu do avião da ciência.
(Aposto que agradaria a Feynman, que tinha muito sentido de humor, saber que em Portugal se chama Ciências Ocultas às Ciências da Educação!)

Anónimo disse...

Ó O-lidador, nãos sei se o que dizes é correcto, ou se era isso que querias dizer.
A ciência serve para prever usando leis que foram testadas, por isso não há necessidade nenhuma de se provar que a teoria do aquecimento é falsificável em tempo útil.
De resto concordo contigo, não acredito nada que o aquecimento seja garantido e não acredito que alguém o possa prever porque há demasiadas avriáveis em jogo, muitos erros que se podem alastrar nos cálculos, e os modelos serão muito limitados. Nunca niguém consegue prever o tempo com muita precisão por causa desses todos problemas que aparecem, sobre outra maneira, na previsão do aquecimento global.

Luís Santos, a física tem os seus quês, mas funciona, e muitas vezes com um erro tão pequeno que tens que ir muitos números para lá da vírgula para o encontrar, além de que ninguém anda por aí a mentir ou a esconder que certas teorias funcionam em determinados limites e noutros não. Não há a mínima comparação possível com as "ciências" sociais, não estão ao mesmo nível, muito longe disso. Basta olhares para o pc, é uma máquina complexa que se rege por certas leis que não falham. Ás vezes lá acontece um crash, mas pronto, não tens nenhum produto desta qualidade nas humanidades.
luis

Luís Silva disse...

Caro Luís: o argumento da eficácia (mas x funciona), segundo Popper, é exactamente o que nos leva a confundir ciência e pseudo-ciência. A psicologia funciona sempre. O comunismo funciona sempre. Já a Mecânica Quântica (onde se baseiam a electrónica), pela sua essência, só (na generalidade dos casos) funciona estatisticamente. Por outro lado, se quiser pegar na mecânica clássica, num sistema com 10 variáveis, por exemplo, não é possivel determinar o resultado final. Agora era preciso continuar por aí. O facto é que a coisa não é simples. Só é simples para quem gostar dar ar de erudito e é ignorante.

Anónimo disse...

Luís Silva, o que eu queria dizer é que a psicologia nem sequer tem nenhuma lei com capacidade de prever seja o que for, muito menos de funcionar sempre, como tu dizes! Na psicologia não tens leis, logo não podes fazer como nas ciências: projectar um computador no papel, montar as peças, e o gajo funcionar, sempre. Ou mandar um foguetão à Lua. Na psicologia não prevês grande coisa, e ainda bem que é assim... Por isso é que não é uma ciência.
Não sei se percebes bem a mecânica quântica, tenho as minhas dúvidas. A estatística da quântica pode ser usada para fazer previsões correctas, como uma propriedade de um metal. Claro que tem limitações devido à complexidade de cálculos, às vezes não se podem fazer as contas, ou então tem que se simplificar, mas a estatística da psicologia não serve para nada, não prevê nada, é um mero registo que tem o seu interesse, mas não compares as duas, são incomparáveis.
O comunismo funciona sempre??! Devo ser mesmo ignorante!
luis

Unknown disse...

"Claro que tem limitações devido à complexidade de cálculos"

Caro anónimo, não se deve à "complexidade dos cálculos", mas sim ao facto de que à escala quântica, o acaso é um dado.
E quanto mais se tenta diminuir essa incerteza, maior a interferência do observador.

Lá atrás alguém disse que as previsões das leis físicas são do mesmo tipo da previsão climática.

É inexacto.
A previsão climática escapa à falsificabilidade, porque aponta prazos não verificáveis.
É como, mutatis mutandis, o comunismo que garante, num prazo não verificável, uma sociedade ideal.
Ou o cristianismo, que aponta o Reino dos Céus.

Acreditar nestas profecias é basicamente uma questão de mentalidade religiosa, provavelmente uma necessidade do ser humano.

Porque razão estes modelos não fazem previsões mais concretas.
Dizer por exemplo que daqui a 2 anos, acontecerá isto e isto, de forma quantitativa e mensurável?

Pela mesma razão que os astrólogos não são concretos nas suas previsões....é que correriam o risco de ser confrontados com o fracasso.

O que é grave nisto, é que é com base neste tipo de profecias que se pretende interferir de forma radical no modo de vida das pessoas, empobrecê-las, aplicar-lhes impostos.

Luís Silva disse...

Ó Luís, isso é que foi mostrar ignorância, heim. A Mecânica Quântica (que a minha área de investigação académica) é probabilística, e não é determinista, em sentido clássico. Pensava que isso até era um lugar comum. Procure por "Measurement Problem". Quanto à Psicologia, ela tem leis e princípios. O futebol também. O que não faz por si só serem Ciências. E se tiver o cuidado de ler como o Popper trata o chamado problema da demarcação verá que ele mostra precisamente isto: em Psicologia é possível estar-se sempre certo, explicar tudo. Tal como no Comunismo, tal como na Astrologia, de certo modo. Em ciência - defende Popper - é precisamente o erro, a ausência de garantia que funcione, que lhe dá a característica. Ou seja, em Ciência, só se sabe o que não funciona, o que não se sabe. O critério da eficácia pode ser bom para a Eng. mas é certamente mau para a Ciência.

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...