sábado, 12 de dezembro de 2009

Saber e poder

A teorização do sociólogo e antropólogo suíço Philippe Perrenoud (ao lado) constitui um dos principais pilares de reformas curriculares que se têm realizado em vários países e que assentam na noção de competência de pendor construtivista (a qual deve ser distinguida da noção de competência de cariz cognitivista).

Entendem muitos que esta noção mantém uma relação enigmática com a de saber, entendido no sentido académico, o saber que as sociedades, de modo geral, têm solicitado à escola para transmitir, ainda que ele "circule" em vários dos seus sectores e instituições.

De facto, mesmo que o referido professor de Genebra afirme que "construir competências não é voltar as costas aos saberes", que as competências requerem saberes, os saberes a que se refere não se restringem ao que acabei de aludir, podendo ser: (1) saberes do senso comum, decorrentes do processo de socialização; (2) saberes subjectivos, como resultado das experiências pessoais; (3) saberes profissionais, que se reúnem ao longo da vida; e (4) saberes científicos, que requerem uma formação longa.

É precisamente em relação a estes últimos que os reparos críticos deste e de outros teóricos se têm concentrado, tanto no que respeita ao seu sentido na relação professor - alunos, como no modo de os tratar em contexto escolar. Sentido e modo que se acusa de derivarem de um exercício de poder e de, em consequência não permitiram a autonomia nem dos que ensinam, nem dos que aprendem...

O texto que se segue, ilustra esta ideia:

“Na escola, aprendemos que o saber é um recurso para exercer o poder, para «tapar a boca ao outro», para dizer «é assim porque eu sei». A assimetria da relação entre o professor e o aluno condena este último, durante nove ou quinze anos de vida, a ficar privado de falar diante de alguém que fala «porque sabe». Na escola obrigatória, somos constantemente colocados numa situação de violência simbólica em que o conhecimento nos é apresentado como finito, seguro, incontestável e exterior. O estatuto de construtor do saber é, em larga medida, negado ao aluno, de quem se espera no fim da cadeia da transposição didáctica que seja, preferencialmente, um consumidor deferente do saber.

Nesta cadeia, os professores, colocados entre o saber erudito e a transposição didáctica realizada pelos especialistas, também não são mais autónomos que os seus alunos (…) tem, também eles, muitas vezes uma relação deferente com o saber. Este é um dos problemas da formação dos professores e da sua relação com as novas pedagogias (…). Carente de formação epistemológica e do domínio dos modos de produção do saber erudito, o professor reporta-se a um estado condensado, sacralizado, da teoria (…). Na escola, em todas as disciplinas, esta relação respeitosa com o saber pesa terrivelmente sobre a comunicação, o estatuto do erro, da hipótese, do ensaio, da alternativa. Quando incide sobre o conhecimento, a comunicação escolar dá, muitas vezes, razão àquele que revela e reverencia o dogma. Na conversa de café, cada um pode dizer o que quiser, expondo-se à crítica, mas entre iguais. Na escola, dá-se o inverso: existe uma autoridade que detém o conhecimento e julga, de maneira soberana, a forma e o conteúdo das opiniões de todos (…). Na verdade, as novas didácticas dão um estatuto mais positivo ao erro e, nesse sentido, transformam o contrato didáctico. Mas já alguma vez medimos a revolução coperniciana que isso representa quanto à relação com o saber? Na escola teremos realmente liberdade de reflectir em voz alta?"

Ph. Perrenoud, 1995, p. 182.

Referências bibliográficas:
- Perrenoud, Ph. (1999). Construir compêtencias é virar as costas aos saberes.
- Perrenoud, Ph. (1995). Ofício de aluno e sentido do trabalho escolar. Porto: Porto Editora.

6 comentários:

Manuel de Castro Nunes disse...

Sem inventar nada de novo, baralhou as cartas e lançou-as sobre a mesa. Grande confusão. Serão estes os novos gurus que vão «reinventar» a escola?
A banalidade travestida de génio.

Fartinho da Silva disse...

Comparar os conhecimentos científicos de licenciados, mestres e doutores aos conhecimentos científicos de crianças e jovens de 6, 7 ou 16 anos, para além de ser rídculo é absurdo!

É este pos-modernismo saloio que tem cavado as diferenças sociais e permitido que uma certa esquerda kaviar tenha construído um lobby a que alguns designam de "ciências" da educação (seja lá o que isso for)!

NG disse...

Está identificada uma das origens da bandalheira em que o ensino se tornou. Esse senhor Perrenoud vai ser lembrado por muitos anos.

José Lourenço disse...

Maravilha...Todos percebem de dinâmicas de sala de aula (do ensino básico e secundário), mesmo aqueles que nunca lá puseram os pés como professores. Os que fazem disso trabalho, estão fartos de tanto eduquês!

Rui leprechaun disse...

Na escola teremos realmente liberdade de reflectir em voz alta?


Texto excelente, mas é preciso compreendê-lo bem mais profundamente do que os comentadores acima fizeram!

Claro que o conhecimento é também um saber construído e não apenas transmitido. E isto é igualmente verdade no campo dos saberes científicos, embora seja mais difícil justificar ou explicar a perspectiva construtivista a este nível.

É interessante que, em termos mediáticos, a actual questão muitíssimo politizada do "aquecimento global" ou "alterações climáticas" não deixa de ter, a meu ver, algumas semelhanças genéricas com esta noção da construção contínua do conhecimento, que aliás deve ser um objectivo básico da ciência. É por isso que amplos consensos ou pretensas unanimidades, em matérias sobre as quais aquilo que se desconhece supera em muito o pouco que se conhece, são uma patente e óbvia falsidade.

Petition the Lord with prayer? You can NOT petition the Lord with prayer!

E o tempo das mentiras públicas também já lá vai caminhando para o ocaso, pelo menos em relação aquilo que pode ser escrutinado pelos cidadãos. Em que medida é que a ciência entra nesta categoria, se falarmos aqui de um público mais bem informado e educado?

...as novas didácticas dão um estatuto mais positivo ao erro...

Não é isto o próprio fundamento da ciência, tentativa e erro ou hipótese e experimentação sucessiva?!

Sim, Perrenoud e muitos outros... Dewey, Montessori, Steiner, Freinet, Freire... serão de facto recordados por muitos anos, por essa revolução coperniciana que iniciaram na educação. E que nem irá demorar muito a ser reconhecida, os sinais da transformação tornam-se evidentes... o tempo está maduro neste presente futuro!

O sistema educativo NÃO é o centro do processo ensino-aprendizagem, a luminosa interacção professor-aluno é o novo Sol... desde a aurora ao arrebol! :)

Teacher quality is the single factor that has the most influence on student performance. - Michelle Rhee

Manuel de Castro Nunes disse...

Cara Amiga.

Maior confusão do que a do Senhor Perrenoud, só a sua.
Acha então que a relação entre o que se conhece e o que se desconhece é favorável ao que se conhece? É adivinha, seja, já sabe, antes dos outros todos, o que se desconhece.
O Senhor Perrenoud diz coisas com sentido que já começaram a ser ditas há quase cem anos. Baralhando-as o suficiente para parecerem novas.
A Amiga ainda treslê, misturando o «processo de ensino-aprendizagem» com os dilemas do laboratório.
Será que ninguém consegue compreender que a escola não é só uma fábrica de «competências»?

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...