terça-feira, 8 de dezembro de 2009

P53 A GUARDIÃ DO GENOMA


Novo texto do bioquímico António Piedade saído em "O Despertar" (na figura o p53 a examinar o DNA):

O nosso corpo é composto por muitos milhões de células. Estas resultaram da divisão de uma única célula, o ovo, ou zigoto, resultante da fecundação de um óvulo, da nossa mãe, por um espermatozóide, do nosso pai. Desde então, uma intensa e actividade de divisão celular ocupa uma significativa parte do tempo do ciclo de vida da maior parte de tipo de células dos diferentes tecidos e órgãos de que somos compostos. Estima-se um número astronómico de divisões da ordem das 10 mil triliões de vezes ao longo de toda uma vida (ver aqui).

Porque é que as células do nosso corpo se dividem tanto? Uma razão principal tem a ver com a necessidade em substituir aquelas células que, ao serviço das funções vitais, se degradam, se esgotam e deixam de estar capazes de contribuir para um estado de saúde. A maior parte das células, ao fim de um determinado tempo que varia de tecido para tecido (por exemplo, maior para as células cerebrais, menor para os glóbulos vermelhos), são “eliminadas” por uma espécie de morte celular programada que designamos por apoptose e que garante uma boa funcionalidade dos tecidos. O espaço que fica livre pela morte celular é ocupado por células resultantes da divisão de outras células “ainda boas”. Assim a velocidade de substituição é regulada (entre outros factores) pela densidade de células vizinhas: quando as células perdem o sentido do espaço, quando ficam sem tacto para com a geografia do tecido a que pertencem, então dividem-se sem regra, com uma gula desmesurada, violentando a arquitectura funcional, originando tumores que tanto podem ser benignos como cancerosos.

Refira-se, como curiosidade, que a morte celular maciça por apoptose ocorre em inúmeras situações ao longo do desenvolvimento do nosso corpo, como sejam a abertura de fendas e “rasgos” em terminados folhetos de células do embrião que fomos, dando origem às aberturas para os nossos olhos, para as narinas, etc.

Podemos pois afirmar que a morte celular é um processo necessário à vida harmoniosa de qualquer organismo pluricelular.

E agora surgem as perguntas: O que é que comanda esta morte celular? Que conjunto de mecanismos controlam o fado de cada célula tendo em vista a manutenção da estabilidade complexa do organismo? O que é que decide se uma dada célula entra em apoptose e “morre” ou, pelo contrário, inicia o processo de duplicação de conteúdos que caracteriza a divisão de um célula em duas iguais?

António Piedade

Há 30 anos (ver aqui e aqui), dois grupos de cientistas isolaram e identificaram uma proteína do citoplasma celular que migrava o mesmo que um marcador com o peso de 53 kDa (Da = Dalton é a unidade de massa atómica, que é aproximadamente equivalente à massa de um átomo de hidrogénio) num gel de electroforese de proteínas (SDS-PAGE). Apesar de hoje sabermos, com base na composição em aminoácidos, que a sua massa é cerca de 43,7 kDa, o valor então encontrado serviu para a baptizar com a designação p53. Ou seja, proteína com 53 kDa de massa, alcunha p53. Os seus descobridores associaram inicialmente a p53 com o desenvolvimento de tumores, mas muita tinta correu e muitas árvores foram abatidas desde então à custa das investigações efectuadas para compreender o papel desta proteína. Publicaram-se pelo menos 50 mil artigos nestes 30 anos sobre a p53: 4 artigos e meio por dia! ver aqui.

Ao longo deste trilho de árvores que se desfolharam em artigos sobre a p53, descobrimos que esta proteína globular desempenha um papel charneira, integrador e verificador da qualidade da informação genética da célula.

Sabemos hoje que a p53 está presente em inúmeras encruzilhadas do metabolismo celular, cabendo-lhe o papel de decidir o futuro da célula. Se a qualidade da informação contida no genoma celular estiver abaixo do reparável, devido, por exemplo, a mutações causadas por agentes cancerígenos, genotóxicos, então a p53 activará as vias que desaguam no evento apoptótico. Caso a estabilidade genética esteja assegurada garantindo uma aceitável transmissão da informação genética, para as células filhas, então a p53 activará os procedimentos que promovem a divisão celular se, claro está, esta for necessária para a coesão e funcionalidade dos tecidos onde a célula que a alberga está inserida. Numa outra perspectiva, funciona como uma espécie de supressor de tumores e daí a sua importância para o desenvolvimento de novas terapêuticas anticancerígenas (ver aqui ).

Esta guardiã da qualidade genómica e, consequentemente, proteómica da célula, está presente, com pequenas variações, em todas as formas celulares conhecidas (bactérias, protozoários, células eucariotas animais e vegetais, etc.). Isto implica que o aparecimento do protótipo da p53 é muito antigo na história da vida na Terra, sendo anterior à evolução e diferenciação das diversas formas celulares. Ou seja, a p53 rege o destino celular há mais de três biliões de anos.

4 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Pelo nosso sistema de numeração, a p53 rege o destino celular há mais de três mil milhões de anos (e não três biliões), isto é, mais ou menos desde o aparecimento (estimado) da vida no planeta Terra, planeta que se supõe ter uma idade de cerca de quatro mil e seiscentos milhões de anos

António Piedade disse...

Caro José Batista da Ascenção,

Obrigado pela oportuna correcção. De facto, no nosso sistema de numeração (português) 1 bilião é igual a um milhão de milhões (1 seguido de 12 zeros); já no sistema brasileiro é igual a mil milhões (1 seguido de nove zeros). Já no sistema anglo-saxónico pode ser igual a uma e outra coisa dependendo da dimensão da escala (ou contexto) em que é usado. Ou seja, o que encontro parece mostrar não haver grande uniformidade. Por isso solicito esclarecimento a quem possa fazê-lo.
Voltando ao meu texto, o que eu quis dizer foi que a proteína da qual evoluiu a p53 parece ter sido das primeiras do reportório proteico das primeiras células com capacidade de divisão. Não há propriamente uma data precisa para esses eventos. Contudo, as análises resultantes da divergência genética expressa nas diversas p53 hoje funcionais encontram-se algures nesses distantes 3 mil milhões de anos (3 x 10^9 anos).
António Piedade

Anónimo disse...

"Estima-se um número astronómico de divisões da ordem das 10 mil triliões de vezes ao longo de toda uma vida"

Escala longa ou curta?

Porque nao acabar com estas palhacadas e utilizar notacao cientifica?

António Piedade disse...

Tem razão, caro anónimo. Deveria ter tido mais rigor ao escrever o texto inicial. Reconheço a imprecisão e como esta é fonte de desinformação e confusão. Por outro lado, se referi a "palhaçada" da escala longa ou curta, que desconhecia, foi exactamente para mostrar que ainda há muito para fazer para tornar o conhecimento científico acessível ao um maior número de pessoas, independentemente da sua literacia.

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