Detenho-me no romance que Luísa Costa Gomes publicou recentemente e de que já aqui demos notícia. Apesar de ter por título Ilusão (ou o que quiserem), contém páginas de um realismo puro e... atroz sobre o ensino e a aprendizagem, sobre o funcionamento dos sistemas educativos ocidentais e o modo como as sociedades que os legitimam vêem a escola, as crianças, os jovens e os seus professores. E, a embrulhar tudo isto, as concepções de educação formal de alguns académicos e da generalidade dos decisores políticos, o discurso a que se agarram e a sua filiação epistemológica, marcadamente relativista, subjectivista e contextualista. No diálogo que se segue entre a dedicada professora Teresinha e o seu marido (páginas 30-32) podemos encontrar um cenário com todos estes ingredientes:
“Ao jantar, fez-me o relatório desses dois dias. «Cedo me apercebi de que não tinha meios para seguir profunda e verdadeiramente aqueles cinco alunos. Primeiro visualizei os meus objectivos, depois imaginei as estratégias e técnicas para mais adequadas à sua prossecução. Achei que devia negociar caso a caso o processo de ensino-aprendizagem. Propus aos alunos a iniciação de uma relação de diálogo biunívoco professor-aluno e de confiança mútua e depois aproveitei o ambiente criado para lhes dar a conhecer o projecto de contratos de leitura. Houve uma certa e natural resistência à ideia da obrigação de ler um livro à escolha para ganhar um ponto a somar à avaliação do período mas digamos que tive uma boa margem de sucesso, dado que aceitaram todos excepto o Fábio, o Márcio e o Dédalo. A Cindy não se pronunciou e a Jessica teve uma reacção em que exprimia uma agressividade normal. É normal que os alunos reajam com desconfiança e até um certo grau de violência verbal a uma proposta nova que lhes é feita na ecola. Faz parte do psiquismo do ser humano essa relutância em mergulhar no desconhecido. Elaborei então uma reapreciação da situação e dos novos desafios que se me colocam. Decidi concentrar-me na Jessica. Anteontem dei-lhe uma hora suplementar de apoio a Português, penso que a relação de ensino-aprendizagem, firmemente ancorada numa boa relação afectiva de responsabilidade e de autonomização permitiu grandes sucessos. Ela ainda claudica muito na composição, e temos teste para a semana. Distrai-se facilmente e é virtualmente impossível fazê-la desligar o telemóvel. Então ocorreu-me um pensamento, daqueles que se têm uma vez na vida, sabes? Porque não fazê-la escrever SMS? Porque não usar a sua experiência na comunicação bem sucedida com os seus pares?». »Parece-me conveniente», disse eu. «É uma coisa que faz parte da vida, não é uma matéria abstracta. Para a motivar tenho de ter uma estratégia em que ela veja o resultado prático rapidamente. Para lhe estimular a auto-estima. Sem auto-estima, mais vale arrumarmos já o material didáctico. Porque isso é que é uma estratégia de sucesso. Não podemos estar à espera de que eles tenham paciência para aprender coisas que não têm a ver com a vida deles, com a vida de todos os dias. Eles têm de sentir que a escola é deles. Afinal é aí que passam noventa por cento do seu tempo.» «O ensino tem de ser centrado no aluno!», ajudei. «Não vês que é exactamente o que estou a fazer? E disse à Jessica: «Fazes uma composição como se estivesses a escrever mensagens aos teus amigos. Experimenta. E ela aceitou o desafio.» A Teresinha estendeu-me então meia folha, mal rasgada ao meio e muito amarrotada: «k ir ao kumersial? Tou tesa!vi la uma caia bué! Bora ao kafe! Ta de xuva! Fdse! Tnsmoney? Não! Atao nao da.» «É um princípio», disse eu. «Isto é uma lança em África», disse ela. «A Jessica é extremamente viva e esperta e aprende depressa. Tem aspectos cognitivos muito pragmáticos, muito ligados à vida de todos os dias e uma imaginação concreta com potencial. Consegui finalmente que fizesse um contrato de leitura para a disciplina. Depois de uma negociação interessante, comprometeu-se a ler os bilhetes de autocarro e os menus do McDonald. São coisas da vida de todos os dias e afinal nós estamos a educar para a vida."
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8 comentários:
É por essas e por outras que... filho meu na "escola" pública, só se estiver completa e absolutamente maluco ou completa e absolutamente falido!!
Pode parecer caricatura, mas há mesmo professores que falam assim e acreditam em tretas daquele género.
E há investigadores e pensadores na área das ciências da educação e coisas adjacentes que teorizam em tom sério sobre essas mesmas tretas e as justificam.
Pior: tais teorizadores têm imenso crédito e influência na máquina do ministério, no governo e nos sindicatos - que, no que ao "eduquês" diz respeito, estão de acordo.
Que fazer?
Isto coloca questões altamente complexas que eu já tentei aflorar. Como conciliar duas posições aparentemente tão antagónicas? Como querer ensinar "pelo método antigo" quem se recusa a aprender por ele?
E como implementar um método que os infantes não recusem, esteja ligado ao "mundo deles" mas que garanta objectivos de qualidade mínima, o que me parece que não acontece de todo hoje em dia?
Continuo sem ter perspectivas satisfatórias. E a única resposta que vou obtendo é: aplicar o "método antigo à força - com um polícia em cada porta".
O que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. Se calhar o trabalho teria de ser todo repensado logo, logo nas bases mais básicas ao nível do infantário e do primeiro ciclo. Crianças que não sabem estar numa sala de aula quedas e mudas nunca vão saber estar num 2º ciclo que as "obriga" a estar assim para obterem resultados satisfatórios.
E aqui entra uma segunda questão que é a de: queremos realmente crianças quedas e mudas um dia inteiro nas suas secretárias? Isso será "natural, desejável ou necessário"?
Quando olho para os alunos de "tudo 5", muito disciplinadinhos e estudiosos ao mesmo tempo fico com uma sensação de artificialidade e lavagem cerebral atroz. Por alguma razão a maioria das crianças não são assim. Seria mesmo desejável que todas o fossem?... humm...
É muito mais fácil politicamente (há quem diga "humanamente", sem dominar o conceito) - portanto, politicamente correcto - passar a ideia de que todos as crianças e jovens estão a aprender tudo (tudo o que "interessa", claro), do que tentar ensinar realmente a um maior número possível de crianças e jovens o mais e o melhor possível. É que os resultados, no final deste processo (que se quer, à partida, igualitário), não revelariam, como não podem revelar talvez nunca, uma férrea igualdade de facto, mas uma diferença salutar e, pelo menos, realista. Salutar, porque quem aprendesse, aprenderia mesmo, com todos os benefícios para si mesmo, mas também para a sociedade; realista, porque essa seria a realidade possível (e sê-lo assim, já não seria mau).
Mais fácil é, pois, alimentar o povo com uma boa ilusão, do que dotá-lo de instrumentário intelectual e cultural adequado para enfrentar a realidade.
A obra de Luísa Costa Gomes parece ser, de facto, mais realista do que ficcional... infelizmente, para o futuro de milhares de crianças e jovens.
Musicólogo, está a cair em falácias. Do post não podemos concluir a redução que o musicólogo faz. O ensino da comunicação não exige todos "quietinhos", mas exige esforço. Ou será que as notas musicais irão ser substituídas por outros símbolos? A comunicação, sob qualquer pretexto, exige domínio das técnicas. Quem assim não executa, não tem grandes horizontes de progressão. A memorização e a consequente mecanização é um instrumento indispensável para posteriores aprendizagens. Isto é custoso. Sim, bastante, mas daí não vem mal ao mundo. Só desta forma é que somos capazes de promover equidade no acesso ao mundo. O novo exige o domínio do velho.
Olá António Daniel
Você disse:"A memorização e a consequente mecanização é um instrumento indispensável para posteriores aprendizagens. [...] Só desta forma é que somos capazes de promover equidade no acesso ao mundo."
Acha que faz sentido o que disse? "Equidade no acesso ao mundo através da memorização e consequente mecanização" Ou li mal e o que quis dizer foi que através do "custoso" é que promoveremos a equidade no acesso ao mundo?
Sinceramente, ou não percebi ou Vc está muito à frente
Cruz Gaspar
Gostava de saber em que ano de escolaridade andava essa Jessica. Tenho a certeza de que, quando aprendeu a juntar as letras, não aprendeu de seguida a estranha taquigrafia das sms.
Concluo que tivesse sido mal ensinada antes. Quando frequentava a primária, a minha professora fazia ditados para treinar a morfologia das palavras. Mais de três erros e estávamos em sarilhos. Três faltas na acentuação valiam um erro. Imagino o que a régua devia trabalhar bem se usássemos a mísera linguagem das sms.
Lembro-me que a régua nos mantinha a todos alinhados, incluindo os meus colegas de etnia cigana (entre os quais tinha como grandes amigos). Aprendemos o que lhe competia ensinar e, no fim, deixou saudades.
Não sou favorável a nenhum método de ensino em especial mas o actual não me parece ser melhor... muito pelo contrário!
Houve uma certa e natural resistência à ideia da obrigação de ler um livro à escolha...
Há uma escola, bem perto da cidade onde vivo, em que o 1º direito dos alunos relativamente à leitura é o seguinte:
Toda criança tem o direito de não ler o livro de que não gosta.
Quite thought provoking!
Rubem Alves, o pedagogo brasileiro que muito escreveu sobre a Escola da Ponte, comenta o seguinte acerca disso:
Esse direito sempre me pareceu óbvio. Mas eu nunca o havia visto assim escrito de forma clara, numa escola, para que os alunos o lessem. As escolas da minha memória jamais fariam isso. Porque é parte do seu dever burocrático fazer com que as crianças leiam os livros de que não gostam.
Há professores que ensinam literatura para desenvolver uma postura crítica nos seus alunos. Mas esse não é o objectivo da literatura. Lê-se pelo prazer de ler. Por isso, refugo quando pessoas falam sobre a importância de desenvolver o hábito de leitura. Isso é o mesmo que dizer que é preciso desenvolver nos maridos o hábito de beijar a mulher. Hábitos são comportamentos automatizados que nada têm a ver com prazer. Lê-se pela mesma razão que se dá um beijo amoroso: porque é deleitoso, porque dá prazer ao corpo e alegria à alma.
Será isto assim tão difícil e hermético de compreender ou soa apenas como inteiramente natural?
É por isso que quanto ao método antigo... forget it! Bem, creio que o slogan "uma nova escola para um homem novo" é algo revolucionário... soa a comunista, será?
Mas como disse noutro comentário, esta é uma geração MUITO diferente das anteriores e é impossível tentar utilizar métodos coercivos e impositivos da "velha guarda", felizmente passada... for "the times they are ALWAYS changing"!
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.
E isto é MUITO mais verdade no séc. XXI do que no XVI, onde está a dificuldade em perceber algo tão evidentemente S-I-M-P-L-E-S?!
So... no external obligation just an inner motivation! :)
Obviamente, essa motivação tem de estar igualmente presente nos professores, em plano de igualdade com os alunos, pois os adultos também podem e DEVEM aprender com as crianças, absorvendo delas esse sagrado espírito de maravilhamento... o ingrediente mor do conhecimento!
Well... easier said than done... still this is step nº 1! :)
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