Toda a gente sabe, toda a gente concede, toda a gente encolhe os ombros.
Refiro-me (mais uma vez) ao assunto do post anterior, a que o De Rerum Natura tem dado destaque: o plágio e a encomenda de trabalhos académicos do ensino superior para unidades curriculares (assim se chamam agora as disciplinas), estágios, mestrados, doutoramentos. Não menos grave é a apresentação de “qualquer coisa” devidamente encadernada, que se faz passar por obra substancial.
Sem enveredar pela via da desculpa ou da relativização (já aqui dei a entender quão grave e intolerável é o assunto) não posso deixar de tentar perceber as razões daquilo de que me apercebo no meu quotidiano na universidade e que colegas me contam, nem daquilo que leio nos jornais.
Junto essas razões na seguinte lista:
- Os prazos são cada vez mais apertados porque é pedido às escolas, quais fábricas que trabalham por encomenda, que respondam às necessidades de produção de diplomados do 1.º, do 2.º e do 3.º ciclos, e nas quantidades estabelecidas;
- Desvalorizados que estão os exames, os alunos são postos a fazer trabalhos em todas, ou quase todas, as unidades curriculares, as quais aumentaram significativamente nos últimos anos, uma vez que cada uma daquelas que constava nos planos de estudos anteriores pulverizou-se em duas ou três, quando não quatro. Bem vistas as coisas, tal como no ensino básico, os cursos do ensino superior têm um currículo impossível, ao ponto de os alunos muitas vezes não saberem o nome das unidades curriculares que frequentam, muito menos daquelas que passaram e das que se seguem.
- Os professores que orientam os trabalhos têm inúmeras tarefas atribuídas: além da leccionação de aulas e seminários de várias unidades curriculares (longe vão os tempos em que se dedicavam a uma ou duas onde, se não eram, deviam ser especialistas) têm uma carga burocrática de funcionário público, compete-lhe a orientação tutorial, o esforço de internacionalização, a ligação à necessidades da comunidade, a investigação em equipas de excelência…
Acresce que todas estas tarefas têm de ser geridas no quadro das suas carreiras, que estão longe de decorrer sem sobressaltos. Valorizando-se, nessa gestão, essencialmente (para não dizer apenas), os artigos em revistas de prestígio e pouco (para não dizer nada) tarefas como a leccionação ou a orientação tutorial, estas são relegadas para o fim da lista das preocupações de quem, muito legitimamente, quer ter reconhecimento académico…
- A avaliar pelas apreciações de colegas e de trabalhos que se confrontam, os alunos que chegam ao ensino superior capazes de fazer uma pesquisa e de estruturar e escrever um pequeno trabalho são, a cada ano que passa, mais raros. Por outro lado, habituados já estão ao “corta” e “cola” não percebem, muitos deles, que estão a fazer algo censurável, sob o ponto de vista ético e legal. Os que desconfiam ou sabem, percebem, desde cedo, que o esforço e o investimento não compensam, o mesmo já não acontecendo com a prevaricação;
- Mas não são apenas os alunos acabados de sair do secundário que recorrem a artimanhas várias para “despachar” trabalhos, adultos com responsabilidade intelectual elevada, fazem o mesmo.
- A sociedade concede em tudo isto: há os licenciados, mestres e doutores desempregados que montaram os seus negócios de “fazer trabalhos para fora”, é preciso compreender as suas necessidades; há a conversa do amigo que nos diz que no país tal, ainda é pior; há o senso comum que está longe de considerar, por exemplo, o plágio como crime ou a encomenda como desonesto… Afinal, que mal ao mundo daqui advém?
- Mas a razão que escrevo com mais apreensão neste texto é a seguinte: as escolas de ensino superior e os seus professores não têm sido capazes de, afirmativamente, sem ceder a pressões e argumentos, defender a essência de todas as escolas, com particular destaque para as de ensino superior.
Essência essa que radica no valor do conhecimento e da sua investigação, bem como na honestidade que a deve guiar. Sempre, sem qualquer excepção.
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4 comentários:
Tenho de reconhecer que a culpa destes casos é não só dos alunos, como também dos professores e sobretudo do sistema de facilitismo e desresponsabilização que esta sociedade tem criado.
Efectivamente as reuniões intermédias que tive com os meus orientadores, as discussões, os excertos de textos analisados, as questões levantadas quando da minha tese de mestrado não permitiam isso. O meu orientador de mestrado não estava apenas a formar um mestrando, estava-me a formar como cidadão para a ciência e isso faz muita diferença. Ainda hoje lhe estou grato pelo complemento humano.
Os alunos também têm culpa mas, na minha opinião, grande parte da culpa recai sobre quem educa e quem ensina.
Para se apresender a fazer bons trabalhos é necessário tempo, dedicação e algum acompanhamento. Infelizmente, cada vez se concede menos tempo aos alunos em todos os níveis de ensino. E os professores preocupam-se cada vez mais com os programas das disciplinas e cada vez menos com os conhecimentos e as dificuldades que os alunos possuem.
Há uns anos atrás colocaram nos horários do ensino básico uma disciplina cujo objectivo era professores acompanharem alunos no estudo e nos trabalhos escolares. Alguns professores que deviam fazer esse acompanhamento logo acharam nessa disciplina uma oportunidade para compensar os atrasos com os programas das suas disciplinas.
Para fazer investigação é encessário tempo, para realizar bons trabalhos é necessário tempo. Infelizmente, há professores que entendem, que, ser exigente é dar tarefas hercúleas aos alunos. Com prazos curtos e vários deveres que ocupam tempo, dificilmente a maioria dos alunos vai realizar boas investigações e bons trabalhos em grande quantidade.
E ainda há outra questão. A questão de se dar tão boa nota ou melhor a alunos que fizeram plágio face e igual ou pior nota a alunos que não recorreram ao plágio. O que incentiva os alunos a recorrer ao plágio.
É sem dúvida uma marca indelével da nossa civilização falar em «culpa». Pessoalmente prefiro «responsabilidade». O conceito «culpa» acaba por nos desculpabilizar, ordenando-nos para uma inevitabilidade oriunda da situação «primeva». Ora, responsabilidade exige liberdade, iniciativa, numa palavra, trabalho e «inscrição» (plagiando Gil). A nossa sociedade é pura e simplesmente uma permanente cópia. Copiamos músicas, desde as velhinhas fitas, copiamos filmes. Com o «cortar e colar» a cópia está ao alcance de um pequeno «click». Será possível contrariar esta situação? Como professor do ensino secundário, considero importante consciencializar os alunos para estas situações. Sob a forma de chamadas orais os alunos deverão ser capazes de provar a originalidade do que fizeram. Para tal, é fundamental promover pequenos trabalhos (duas, três páginas) e confinar para as universidade trabalhos de índole mais abrangente cujo rigor conceptual e metodológico deverá ser escrutinado de modo absoluto. Os próprios alunos, quando confrontados com a situação de transcrição, não aceitam as constatações. Só por curiosidade, relato uma pequena história: há uns anos atrás o casal Toffler foi promover o seu livro à China. Viram aí uma possibilidade de aumentar consideravelmente as vendas. Contudo, ficaram surpreendidos com os conhecimentos que os chineses possuíam das suas teses. Vislumbraram que o governo chinês havia feito milhões de cópias do livro A Terceira Vaga. Não puderam fazer nada por que tal era permitido. Creio que o problema está na forma linear como actualmente encaramos a cópia (estamos a ficar chineses). Para nós não há diferença entre a cópia de uma música e a cópia de uma tese. Por outras palavras, não há diferença entre a produção científica e outras situações do quotidiano.
Um último ponto: Helena Damião, se me permite tratá-la deste modo, diz que «os alunos que chegam ao ensino superior capazes de fazer uma pesquisa e de estruturar e escrever um pequeno trabalho são, a cada ano que passa, mais raros». Mas não será essa a tarefa fundamental da universidade? Um professor do secundário pode apresentar formas correctas de fazer uma bibliografia, mostrar formas de encetar uma investigação, contudo há um polimento que a universidade deve fazer e isto só se consegue com um índice de maturidade considerável.
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