Ensinar serve para quê? Sem uma resposta clara a esta pergunta básica, qualquer política educativa andará à deriva. É o que hoje se verifica, sendo praticamente omnipresente, nos documentos do ministério da educação, a desorientação dos seus autores. Veja-se, por exemplo, o que se pode ler no Programa de Matemática Aplicada às Ciências Sociais:
“(...) pretende-se que os estudantes tenham experiências matemáticas significativas que lhes permitam saber apreciar devidamente a importância das abordagens matemáticas nas suas futuras actividades. (...) também se tem em vista propósitos de Educação para a cidadania e o papel importante assumido pela Escola, para esse fim. (...) o objectivo aqui vai ser o de introduzir e desenvolver alguns conceitos matemáticos através de problemas da vida real, mais numa perspectiva de formação cultural do que de formação estritamente técnica.”
É nítido que não se entende a matemática como valor em si, nem como algo que pertença “à vida real”. Presumo que Einstein nunca teve uma “vida real”, só têm vida real os protagonistas de telenovelas — mas as telenovelas não são a vida real, são ficções. Neste documento só se reconhece valor instrumental à matemática: quer para um emprego futuro quer para formar para a cidadania.
Este é um dos problemas fundamentais dos técnicos ministeriais, e dos próprios políticos do sector: desconhecem o valor intrínseco do conhecimento. A matemática, a música, a filosofia, a história, a física, não têm outra justificação excepto o emprego futuro ou a formação para a cidadania. Esta concepção instrumentalista de escola é um dos factores responsáveis pela desvalorização da escola junto dos estudantes e da opinião pública. Ao fugir do seu papel real (ensinar conteúdos com valor intrínseco) a escola chama a si competências que não tem, não pode ter e é até perigoso que tenha — como é o caso da educação para a cidadania, que nas mãos do ministério se transforma inevitavelmente em doutrinação ao pior estilo do Admirável Mundo Novo, de Huxley.
Não se trata de negar que a matemática e as outras disciplinas têm valor instrumental. Sem dúvida que têm. Mas sem uma noção clara do seu valor intrínseco a escola não consegue cumprir o seu papel porque, ironicamente, o valor instrumental da matemática e das outras disciplinas resulta do seu valor intrínseco. Sacrificar conteúdos cognitivamente importantes porque não têm relevância para o emprego nem para a formação da cidadania tem o efeito perverso e irónico de não dar aos estudantes uma preparação sólida em matemática nem nas outras disciplinas — o que tem como resultado a sua falta de preparação para o mundo do trabalho e para a participação na vida pública. A concepção instrumentalista do conhecimento, veiculada pelos técnicos e responsáveis políticos do ministério da educação, é precisamente o que torna a escola irrelevante para o mercado de trabalho e para a formação de cidadãos críticos, participativos e informados. E é este resultado que, por sua vez, desprestigia a escola, que é vista por pais e estudantes como irrelevante e pouco séria.
A ideia de que o ensino de uma determinada disciplina, ou até a sua presença no desenho curricular, deve estar subordinada a fins extrínsecos desorienta o ensino. Só uma noção clara do valor intrínseco das disciplinas pode devolver à escola o seu papel social próprio — pôr os estudantes em contacto com os aspectos centrais das disciplinas fundamentais, incluindo as científicas, humanísticas e artísticas. Os professores (e escolas) que usam esta estratégia, ao arrepio das recomendações do ministério da educação, são precisamente os mais respeitados por pais e estudantes.
quinta-feira, 22 de março de 2007
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12 comentários:
Esta pergunta é pensada por Aristóteles, Platão, Sócrates...
Sempre achei que o ensino reflecte um país e aqui o ensino está sempre a mudar as linhas orientadoras. Confusão de valores sociais ?
Caro Desidério:
Primeiro deixe-me dizer-lhe que subscrevo na íntegra a sua ideia de que é necessário haver uma clarificação do que se entende por educação. Este é, aliás, um dos principais problemas da Filosofia da Educação. Só sabendo para onde queremos ir, saberemos se estamos no caminho certo!
Assim surge o problema: a simples definição de algumas competências e objectivos curriculares só podem, e isso na melhor das hipóteses, permitir uma "navegação à vista"; não uma visão total do que é a educação.
Também concordo consigo que é muito perigoso que a escola chame a si a tarefa de "educar para a cidadania". Mas escolhendo a neutralidade, condenam-se os alunos à doutrinação por outra via. Deste modo ficam indefesos contra qualquer ideia que seja veiculada pelos meios de comunicação social, grupos religiosos, extremistas ou outros, que têm como principal objectivo ganhar dinheiro e ou fanáticos para as suas causas. Para além disto, se os alunos tomam os professores como modelos, é no mínimo irresponsável não nos preocuparmos com a maneira como agimos, pelo que não podemos, de forma alguma, declarar-mo-nos indiferentes aos valores que a escola transmite. Assim só nos resta - penso - admitir que a escola transmite realmente valores. Ao mesmo tempo teremos de definir muito bem o que se entendemos por "educar", para que estes valores que a escola transmite não sejam deixados ao critério de cada professor ou escola, mas constituam um núcleo básico para todos os alunos e para que todos saibam que os seus filhos têm uma educação escolar baseada neles.
Cumprimentos:
José Oliveira
Tomar
Durante o meu 4º ano no curso de Engª Física (éramos 5 ao todo) tivémos uma reunião com os profs. do Departamento para discutir o futuro (dos alunos).
Nessa reunião, o Prof. Manuel Laranjeira disse-nos que seria altamente improvável deparar-nos, na nossa vida profissional, com a 2ª pergunta do teste de Física do Estado Sólido II.
O que eles nos queriam ensinar era (por esta ordem):
- Não ter medo de problemas
- Saber resolver problemas
- Se não soubéssemos, saber fazer as perguntas certas.
Agradeço ao Prof. Manuel Laranjeira e aos restantes profs. do Dep. de Física da FCT-UNL a maneira não instrumental como nos ensinaram.
Caro colega José Oliveira: só num artigo mais desenvolvido eu posso explicar melhor a questão dos valores transmitidos pela escola e da verdadeira educação para a cidadania. Envie-me o seu endereço de e-mail e eu mando-lhe o PDF. De forma muito sintética: a escola o que tem de fazer é dar instrumentos críticos aos estudantes, para que possam avaliar por si diferentes propostas de modelos de sociedade, e não dar-lhes modelos de sociedade para que os aceitem acriticamente; os valores que a escola inevitavelmente transmite devem ser os valores da curiosidade, integridade intelectual, sentido crítico e valor do conhecimento, entre outros.
Bom dia Desidério:
Antes de mais aqui tem o meu endereço de e-mail:
zemaneloliveira@gmail.com
Lerei com muita atenção o artigo, que com certeza me ajudará a esclarecer alguns pontos de vista. Agradeço profundamente a atenção.
Dito isto, acredito que a escola deve transmitir um conjunto BÁSICO de valores, ainda que estes possam ser mais tarde rejeitados, ou novos modelos de sociedade possam ser propostos. Foi essa a ideia que pretendi transmitir.
Além disso aplaudo o seu interesse pelas questões da doutrinação nas escola. Penso que todos teríamos muito a ganhar se mais filósofos se debruçassem sobre esta questão.
Cumprimentos
José Oliveira
O texto citado é um portento de confusão. No entanto, parece-me nalguns aspectos pouco rigorosa a crítica que lhe faz. Por exemplo, afirma no seu post: "Neste documento só se reconhece valor instrumental à matemática: quer para um emprego futuro quer para formar para a cidadania". Porém, eu leio nele o seguinte: "O objectivo aqui vai ser o de introduzir e desenvolver alguns conceitos matemáticos (...) mais numa perspectiva de formação cultural do que de formação estritamente técnica.”
Outro exemplo: parece-me absurdo dizer-se que a matemática é um valor em si. Afinal, o que quer dizer a palavra "valor"? A busca do conhecimento - do conhecimento matemático, por exemplo - é um valor. Já a matemática não o é. Não compreendo como uma pessoa com a sua formação pode pretender o contrário.
Para terminar. O texto criticado é o de um "Programa de Matemática Aplicada às Ciências Sociais". Se se trata de um programa de matemática aplicada, como seria possível remeter para um plano secundário a questão da sua aplicação.
Caro João Pinto
Para compreender o que significa dizer que a matemática tem valor em si poderá ler o meu artigo "Para que Serve o Ensino?" em criticanarede.com. A matemática tem valor em si porque o conhecimento tem valor em si. A diferença entre valor em si e valor instrumental é explicada no artigo. No meu livro Pensar Outra Vez também explico essa diferença.
Quanto ao programa, é matemática aplicada às ciências sociais, mas não se pretende ensinar matemática aplicada às ciências sociais --apenas se pretende fazer os estudantes ter "experiências matemáticas significativas".
Sejamos claros: os funcionários do ministério detestam o conhecimento. Só querem folclore. Basta visitar a página da DGIDC, que é quem realmente manda no ensino secundário:
dgidc.min-edu.pt
Se encontrar aqui alguma coisa parecida com conteúdos escolares sérios, diga-me. Estamos a falar de bestas que detestam tudo o que seja livros, conhecimento, estudo, trabalho a sério. Até as bibliotecas, para esta gentalha, são apenas uma espécie de recreio mas com CD-ROMS e filmes e vídeos e muitos computadores. Livros? Isso é considerado retrógrado e elitista. Matemática a sério? Nem pense nisso. Leia a entrevista de Buescu em criticanarede.com.
Não contesto que a matemática tenha valor em si. Contesto que seja um valor, que é o que está escrito no seu post. Creio que a diferença é evidente.
Caro João Pinto: não consegui encontrar no meu post qualquer afirmação de que a matemática é um valor. Apenas afirmo que a matemática tem valor intrínseco.
Eu não escreveria algo como "X é um valor" porque considero tal expressão popular sem qualquer conteúdo claro. Fala-se muito na crise de valores, por exemplo, dizendo que há falta de valores, mas isto é um disparate. Um valor é o que alguém valoriza e as pessoas valorizam tantas coisas hoje como no passado. Podem é valorizar as coisas erradas, que não têm valor intrínseco ou não têm valor instrumental adequado.
O problema do nosso ministério é precisamente não valorizar o conhecimento, valorizando em seu detrimento todas as tolices brihantes e coloridas.
Estou completamente de acordo com as ideias aqui apontadas por Desidério Murcho no que respeita a esta moda do "utilitarismo" do ensino que conduz ao fim do estudo da Literatura e do Latim, por exemplo. Os próprios professores acabam por alinhar numa defesa da simplificação dos programas.
Na realidade, tudo isto acaba por ser perversamente elitista, uma vez que a escola desiste do ensino artístico, humanístico e científico. Os pais privilegiados poderão sempre inscrever os filhos em actividades extracurriculares. Os outros ficarão sujeitos ao empobrecimento curricular que dita a morte da "escola cultural" (expressão que deveria ser um pleonasmo).
Quanto à Educação para a Cidadania, penso que é importante que a escola seja um local de debate.
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