sábado, 9 de outubro de 2010

"Não há educação se não há verdade a transmitir"

A propósito da conferência O valor de educar, anunciada aqui, deixamos, neste post e no seguinte, uma breve nota biográfica dos conferencistas espanhóis e um apontamento do que têm escrito sobre educação, para os leitores que ainda não os conhecem.

Fernando Savater, de quem já deixámos no De Rerum Natura vários textos (aqui, aqui e aqui), não é fácil de apresentar pelo muito que tem dito e escrito, pelas posições sociais, políticas, educativas, éticas, epistemológicas e outras que tem tomado.

Resumindo muitíssimo: nasceu no País Basco, em San Sebastián, estudou Filosofia e Letras em Madrid, foi professor em diversas universidades espanholas, incluindo a do seu País. É professor catedrático de Filosofia na Universidade Complutense de Madrid.
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Sobre que a questão da noção de verdade que deve conduzir a educação escolar e o seu enquandramento, pode o leitor ver depoimentos aqui e aqui.

Ou ler a seguinte passagem do livro, justamente intitulado O valor de educar:

"Não há educação se não há verdade a transmitir, se tudo é mais ou menos verdade, se cada um tem a sua verdade, igualmente respeitável, e se não se pode decidir racionalmente entre tanta diversidade. Nada pode ser ensinado se nem sequer o professor acredita na verdade que ensina e no quanto é importante saber verdadeiramente. O pensamento moderno, com Nietzsche à cabeça, sublinhou com razão a parte de construção social que há nas verdades que assumimos e a sua vinculação à perspectiva ditada pelos diversos interesses sociais em conflito.

A metodologia científica e, inclusive, a simples prudência indicam que as verdades não são absolutas ainda que assim nos pareçam. São frágeis, passíveis de serem revistas, sujeitas a controvérsia e por fim perecíveis, mas nem por isso deixam de ser verdades, isto é, mais sólidas, mais justificadas e mais úteis que outras crenças que se lhes opõem. São também mais dignas de serem estuda­das, ainda que o mestre que as explica não deva ocultar a possível dúvida crítica que as acompanha (qualquer mestre recorda as verdades que aprendeu e que não o serão mais para os seus alunos).

A verdade esvoaça por entre as dúvidas como a pomba de Kant voa no ar que lhe oferece resistência mas que, ao mesmo tempo, a sustenta. Falando de voar, Richard Dawkins dá o exemplo da aviação como prova intuitiva de que nem todas as verdades são aceites como simples convenções culturais do momento; se não concedêssemos aos seus princípios mais veracidade que a que costumamos atribuir aos discursos dos políticos ou às prédicas dos curas, nenhum de nós subiria jamais a um avião.

A busca racional da verdade, melhor dizendo, das verdades sempre fragmentárias (…), tropeça na prática pedagógica com dois grandes obstáculos inter-relacionados, a sacralização das opiniões e a capacidade de abstracção.

Em vez de serem consideradas propostas imprecisas, limitadas pela insuficiência de conhecimentos ou pela aceleração, as opiniões convertem-se em expressão irrebatível da personalidade do sujeito («esta é a minha opinião», «essa é a sua opinião») como se o relevante delas fosse a quem pertencem, e não o que as fundamenta. A velha e deselegante frase que os tipos duros de algumas películas americana, costumam dizer – «as opiniões são como os cus, cada um tem o seu» – ganha força, porque nem sobre as opiniões nem sobre os traseiros, pelos vistos, é possível existir qualquer discussão e ninguém pode desprender‑se de umas ou do outro, ainda que o queira.

A isso, junta‑se uma obrigação beatífica de «respeitar as opiniões alheias», que, se na verdade se pusesse em prática, paralisaria todo e qualquer desenvolvimento intelectual ou social da humanidade.

Para não falar do «direito a ter a sua própria opinião» que não é o direito de pensar por si mesmo e submeter a uma confrontação racional o pensa­do, mas sim o de manter a própria crença, sem que ninguém interfira com incómodas objecções.

Este subjectivismo irracional convence mais rapidamente as crianças e os adolescentes, que se habituam a supor que todas as opiniões — isto é, não só a do mestre que sabe do que está a falar como também a deles que parte da ignorância — valem o mesmo e que não dar o braço a torcer é sinal de personalidade autónoma e que tentar convencer o outro do seu erro, com argumentos e informação adequada, é exemplo de tirania.

A tendência para conver­ter as opiniões em parte simbólica do nosso organismo e para conside­rar tudo quanto as desmente como uma agressão física («feriu as minhas convicções») não constitui uma dificuldade apenas para a edu­cação humanista como também para a convivência democrática. Viver numa sociedade plural impõe assumir que o que é verdadeiramente importante são as pessoas, não as suas opiniões, e que estas devem ser escutadas e discutidas e que não nos devemos limitar a vê‑las passar, sem as tocar, como se fossem vacas sagradas.

O que o mestre deve fomentar nos seus alunos é a disposição para conseguirem estabelecer a não irrevogabilidade do que escolheram para pensar (a «voz da sua espontaneidade», a sua «auto‑expressão», etc.) e sim, a capacidade de participar frutuosamente numa controvérsia razoável, ainda que isso «fira» os dogmas pessoais ou familiares de alguns dos seus alunos.

É aqui que reside a alarmante falta de hábito de abstracção dos neófi­tos, cuja ausência também os professores de matérias essencialmente teóricas lamentam com amargura, mais tarde, nos estudantes universitários. Consiste numa dificuldade quase incurável para deduzir a partir de premissas, para conseguirem desligar‑se do imediato ou do anedóti­co, para não procurar, por detrás de cada argumento, a má vontade ou o interesse mesquinho do argumentador mas sim verem a debilidade do argumentado (…).

Aprender a discutir, a refutar e a justificar o que se pensa é o que constitui a parte irrenunciável de qualquer educação que aspire ao título de «humanista». Para isso, não é suficiente saber expressar‑se com clareza e precisão (ainda que seja primordial, tanto na escrita como oralmente) e subme­ter‑se às mesmas exigências de inteligibilidade que se pedem aos outros, mas deve também ser desenvolvida a faculdade de escutar o que se propõe na construção discursiva. Não se trata de patentear uma comunidade de autistas, zelosamente enclausurados nas suas «respeitáveis» opiniões próprias, mas sim de propiciar a disposição para participar lealmente em colóquios razoáveis e em procurar, em comum, uma verdade que não tenha senhor e que procure não fazer escravos.

É indubitável que tal disposição deve encontrar o seu primeiro exemplo na atitude do próprio mestre, seguro do que sabe, mas disposto a debatê‑lo e, inclusive, a modificá‑lo no decurso de cada aula com a ajuda dos seus alunos.

Deve ser uma das principais tarefas fomentar o espírito crítico sem fazer concessões ao simples afã de levar a melhor (tão característico e estimulantemente lúdico na idade adolescente). Também é saudável que o professor não se antecipe aos adolescentes no zelo subversivo, ensinando-os a refutar coisas que ainda não mostrou sob o seu aspecto positivo, por exemplo (…) expor as doutrinas filosóficas a partir dos seus erros.

Há professores tão inconformistas que não se conformam com ser apenas professores e querem também ocupar o papel de jovens rebeldes, em vez de deixar aos seus alunos essa iniciativa (…). Deve ser potenciado naqueles que aprendem a capacidade de perguntar e perguntar-se: essa inquietação, sem a qual nunca se consegue saber verdadeiramente alguma coisa, mesmo que se consiga repetir tudo.

Uma das constatações mais alarmantes do ensino, na actualidade, é que os mestres das crianças pequenas sentem‑se angustiados com as suas perguntas constantes, enquanto na universidade nos queixamos porque nunca perguntam nada. Que ocorreu nesses anos que separam a escola da faculdade para que lhes tenha passado a alegre vontade de inquirir? E não devemos temer que esse espírito crítico leve ao puro niilismo indisciplinado, porque se for autêntico, consegue ser o seu melhor preventivo (…)."
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Referência bibliografica: Savater, F. (1997). O valor de educar. Lisboa. Edições Presença. (A obra foi republicada pelas Edições Dom Quixote em 2006)

4 comentários:

José Oliveira disse...

Cara Professora: há uma parte do texto que aparece repetida.

Cumprimentos,

José Oliveira.

Helena Damião disse...

Caro José Oliveira
Muito obrigada pelo seu reparo. Penso que emendei o problema.
Cordialmente, Helena Damião

Anónimo disse...

"Não há educação se não há verdade a transmitir, se tudo é mais ou menos verdade, se cada um tem a sua verdade, igualmente respeitável, e se não se pode decidir racionalmente entre tanta diversidade. Nada pode ser ensinado se nem sequer o professor acredita na verdade que ensina e no quanto é importante saber verdadeiramente."

Há uns anos já que isto anda a dar cabo de mim e me deixa perplexa, cada vez mais angustiada e presa no meu próprio trabalho.
Sou professora de matemática e o que é tão bem descrito neste parágrafo tem-me paralizado à conta da doutrinação e dos critérios de correcção das provas de aferição.
Toda esta construção tem feito de mim, a cada dia que passa, uma professora mais desmotivada, mais angustiada e mais inoperante.
Tanto que ando a ponderar, e ainda não fiz sequer 45 anos, deixar o ensino.

Anónimo disse...

Cara colega desanimada: isto não é pêra doce, também ando por lá e também sou frequentemente vítima do desânimo e consequente desejo de "deitar tudo às urtigas". Mas, o que lhe quero dizer e aqui partilhar é a minha enorme alegria pela oportunidade de poder ouvir ao vivo pensadores como os que aí vêm conferenciar. Congratulemo-nos, colega(s), parece que afinal não estamos assiom tão sós!
HR

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...