Trancrição de parte do debate sobre educação que tive on-line em 15/6/2020 com José EDuardo Franco e Luísa Paolinell.moderado por Mário Fortes:
Mário Fortes- Prof.
Carlos Fiolhais, deixo-lhe daqui um desafio: não acha que a educação é dominada
pelas ciências exatas e tecnologias e ganharia em dar espaço às ciências
humanas numa educação mais integral?
Carlos
Fiolhais – A educação sempre se apropriou da tecnologia existente em cada
tempo, não é só hoje que o faz. Isso é uma coisa maravilhosa se permite
melhorar a educação. Podemos, agora, por exemplo, que professores e alunos
estejam próximos mesmo quando distantes. Eu vou responder à pergunta, mas a
intervenção do José Eduardo Franco foi tão inspiradora, que retomo a questão
básica do dever da educação: porque é que devemos educar, porque é que temos a
responsabilidade de educar, porque é que não podemos passar sem educar? Há
também a questão dos conteúdos e dos dilemas de escolha, de que falarei a
seguir.
Seja-me
permitido reafirmar o básico. Como cientista, gosto sempre de começar por aí. A
educação existe desde que a humanidade existe. A humanidade inventou a educação
e a educação trouxe-nos até aqui. Sem educação a humanidade regride, definha. A
educação é um elemento essencial da humanidade. Num certo momento da nossa
história, quando o conhecimento construído pela humanidade, em virtude da
educação, começou a ser extenso e complexo, já não podia ser todo transmitido
pela comunidade. Então, algum desse conhecimento passou a ser transmitido por
aqueles que o dominavam, formando progressivamente uma nova organização social,
que veio a designar-se por “escola”. Na Grécia Antiga, a escola – não tendo uma
única concretização, mas diversas –, já apresentava,
no essencial, a configuração que lhe reconhecemos hoje. Por exemplo, a relação
mestre-discípulo, que entendo ser o fundamental da escola, ocupa aí um lugar
central, o mesmo acontece na Idade Média, ainda que com características
diferentes, e no Renascimento, quando se deu a recuperação de alguns dos
valores da Antiguidade Clássica. No Iluminismo, no século XVIII que o José
Eduardo Franco conhece bem, há uma afirmação muito forte do valor de educação.
Devemo-la a um dos maiores filósofos de sempre, Immanuel Kant. Num pequeno
livro intitulado Sobre a Pedagogia,
que continua actualíssimo neste tempo global, Kant, disse, de forma lapidar, o
que deveria ser a educação moderna. Todos saberão que o filósofo foi um homem
global sem nunca ter saído da sua cidade, Königsberg, quer dizer, ele tinha o mundo
dentro da sua cabeça sem nunca o ter visitado. Considero que não podemos pensar
o mundo sem o pensamento que ele nos deu dele. Ele escreveu o que passo a ler:
“O homem só consegue ser homem através da educação [quer dizer, não há homem
sem educação]. Não é mais do que aquilo que a educação faz dele [repito porque
tem de soar aos ouvidos de hoje: o homem não é mais do que aquilo que a
educação faz dele]. É importante sublinhar que o homem é sempre educado por
outros homens, os quais por sua vez também foram educados.” Por outras
palavras, e estou agora a comentar Kant, a educação é uma prática continuada: a
essência humana está lá, sempre esteve, mas a educação acrescenta, modifica.
Continua Kant: «A educação é uma arte cuja prática deve ser aperfeiçoada ao
longo das gerações». É isso que, com pontos altos e baixos, umas vezes bem
outras vezes fracamente mal, tem sido feito; o resultado é o estado
civilizacional em que nos encontramos. Educar é fácil? Não é. Kant disse, na
mesma obra: “a educação é o problema maior e mais difícil que se pode colocar
ao homem. Com efeito, as luzes dependem da educação e a educação depende das
luzes.” Quer dizer, há aqui uma dupla implicação: nós não podemos ter certos
conhecimentos sem a educação, e não podemos ter educação sem ter certos
conhecimentos. A educação escolar é a condição mais importante do conhecimento
a que damos valor. Sobretudo, a partir do tempo das Luzes nunca mais deixámos
de poder abdicar desta implicação básica entre a educação e o conhecimento. A
humanidade nunca mais deixou de ter a questão da educação. É uma questão do
nosso destino humano.
Vou saltar
por cima do século XIX e mencionar dois filósofos do século XX, que uma
pedagoga minha amiga me recomendou, também alemães, e que têm para o tema aqui
em debate especial importância. Os dois viveram a experiência trágica da
Segunda Guerra Mundial. Uma é Hannah Arendt, que passou por Portugal a caminho
dos Estados Unidos, onde produziu boa parte da sua obra. Num dos seus grandes
livros – A Condição Humana – consta o texto A crise da educação,
onde, desassombradamente, diz: “A educação é o ponto em que decidimos se
amamos suficientemente o mundo para assumirmos a responsabilidade por ele e,
com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fossem a renovação e
a vinda dos novos e dos jovens. A educação é também onde decidimos se amamos
nossas crianças o bastante para não as expulsar de nosso mundo e abandoná-las a
seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de
empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as, em vez
disso, com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum.” Por outras
palavras, a educação é a maneira – a única maneira – que temos de levar cada
ser humano a integrar a herança da humanidade e, assim, poder expressar-se de
modo único no mundo e, também, de manter e melhorar o mundo. O mundo já existia
antes de as crianças nascerem, mas, para elas, o mundo é sempre novo, e é no
mundo que elas descobrem que devem ser desafiadas a pensar. O imperativo de
Kant que marcou a era iluminista era “atreve-te a pensar”. A educação deve
propiciar esse atrevimento que é colocar questões sobre o mundo, que incluem
também questões sobre nós, porque somos parte do mundo, sempre numa perspetiva
de gradual autonomia de pensamento dos educandos. É muito claro que Arendt
estudou Kant, bem como outro grande mestre muito anterior: Santo Agostinho, que
não posso omitir nesta conversa.
Um outro
filósofo alemão do tempo da Segunda Grande Guerra, que era judeu como Arendt e
que, como ela, fugiu do nazismo foi Hans Jonas. Jonas publicou em 1979 (na
altura em que eu fui para Alemanha fazer o doutoramento, o que explica o meu
lado da cultura alemã), o livro O
Princípio da Responsabilidade. Ele diz aí que a educação para ser
consequente, tem de levar à ação. Repare-se que a expressão de Arendt “se
amamos suficientemente o mundo” vai no sentido de amor mundi, de “amar o mundo”, de Santo Agostinho. Este doutor da
Igreja declarou a necessidade de estarmos numa boa relação com a Terra, que é a
parte do Universo que habitamos. Por sua vez, Jonas falou da necessidade de
agirmos de forma responsável nela; inspirando-se no imperativo moral de Kant, afirmou
o seguinte: “Age de tal maneira que os efeitos da tua ação sejam compatíveis
com a preservação da vida humana genuína.” Quer dizer, nós temos a
responsabilidade da continuação da espécie, porque somos, que saibamos, os
únicos no mundo que conseguem pensá-lo: se, por qualquer razão,
desaparecêssemos, deixaria de haver consciência do mundo, isto é, o mundo não
teria quem o pensasse. Temos, portanto, a obrigação de sobrevivência não apenas
perante nós próprios, como seres individuais e coletivos, mas perante a própria
vida, que inclui a vida animal e vegetal. É uma questão muito atual educar para
respeitar o mundo: ao contrário do que se passou outrora, neste tempo em que o
mundo está a sofrer o impacto das nossas ações, temos de pensar empenhadamente
como podemos não comprometer as condições para que a vida continue sobre a
Terra. Este é um problema que não podemos adiar, um problema que temos de
resolver a breve trecho.
Quanto à
questão que me foi colocada sobre a eventual oposição ciência-humanidades, não
considero que seja muito pertinente. Tal como está expressa, é uma falsa
questão, porque dá a entender que as ciências não são parte das humanidades.
Ora a ciência é um empreendimento humano. É tão humano como outra atividade
humana qualquer. Não há nada de desumano em fazer matemática e ciência. Já os
antigos gregos, os mesmos que faziam filosofia, cultivavam a ciência –
Aristóteles não se sentiria menos humano quando escreveu a sua Física do quando escreveu a sua Poética; e o mesmo se pode dizer de qualquer
autor renascentista com uma vasta mundivisão, como Leonardo da Vinci; ou
Voltaire, o filósofo do Iluminismo que levou a física de Newton da Inglaterra
para França. A pergunta não faz muito sentido. Fernando Savater, o filósofo
espanhol, que está vivo felizmente (para não falar só de filósofos mortos), salientou
que o grego e o latim são importantes já que permitem uma agilidade de
pensamento, mas acrescento que a matemática e a física também o são. O que é
que o latim e o grego têm que possam excluir a matemática e a física? Pelo
contrário, a matemática usa caracteres gregos e a nomenclatura da física
recorre a raízes gregas e latinas…
Por outras
palavras, a educação tem de ser completa no sentido de que tem de incluir as
ciências e as ciências humanas, sem esquecer as artes e a expressão física.
Percebo a origem da pretensa dicotomia. Vivemos numa sociedade que faz a
apologia do utilitarismo, orientada para a produção e consumo, pelo que as
questões da vida prática são tratadas por uma «filha» da ciência, a tecnologia.
Então, confunde-se ciência com tecnologia. De facto, atualmente, não se pode
fazer tecnologia sem ciência, mas as duas não se identificam. A confusão entre
as duas deve ser evitada. Eu posso produzir pensamento sobre o Universo, por
exemplo sobre a matéria escura e a energia escura (dois dos maiores enigmas
atuais), sem nenhuma intenção – nem sequer possibilidade – de ter qualquer tipo
de intervenção técnica. Todavia, numa sociedade dominada pelo fazer, numa
economia que se baseia na produção e no comércio, identifica-se muito
apressadamente ciência com tecnologia. Ora, os grandes espíritos, quer os
antigos, quer os atuais, sabem que ciência e tecnologia se tocam – não estou a
dizer que não se tocam – mas se tocam de uma maneira que não é essencial.
Quando se diz que a tecnologia está a prejudicar as humanidades, tenho alguma dificuldade
em concordar, pois isso significaria uma grande debilidade das humanidades.
Acho que as humanidades permanecem e permanecerão, aproveitando para seu
benefício o que a tecnologia lhes oferece. Se vemos no mundo contemporâneo
sinais de que o latim ou o grego, a filosofia e a história, etc. estão a ser preteridas, deve também reparar-se
que a minha disciplina – a física teórica – não o está menos. Eu, físico
teórico, estou do lado das humanidades, estou do lado do saber abstrato, do
saber inútil. E também me junto àqueles que cultivam o saber pelo saber, o
saber desinteressado, o saber que é capaz de avançar questões sem pensar em
aplicações.
Para
abreviar, o que é que a educação permite – ou pode permitir – hoje? A educação
permite dar às pessoas que povoam o mundo o melhor do nosso passado, o melhor
da tradição, o melhor da nossa herança para que haja um futuro melhor. Só
podemos dar o passado para ter esse futuro. Vamos ter futuro, mas este terá de
ser construído por nós. E não poderemos ter futuro se não conhecermos o
passado, se não tivermos munidos do melhor do nosso passado. Temos de saber
quem foi Galileu e temos de saber quem foi Montaigne. E temos de saber também quem
foi Descartes, que estava com os pés nos dois lados, tanto era matemático e
físico, como filósofo e teólogo. Portanto, a escola onde se estudam esses e
muitos outros génios da humanidade, continua a ser essencial, como sempre foi.
Diria até que é cada vez mais relevante, porque cada vez há mais questões para
resolver, algumas das quais muito complexas, em particular nesta altura a
questão da sustentabilidade do planeta. O que temos de fazer? Temos de dar o
melhor de nós na educação, dar o melhor de nós no dia-a-dia da escola, porque a
escola é o modo que a sociedade instituiu para pôr a educação do que é
sofisticado e difícil em prática. A escola continua imprescindível, porque
continua a ser a instituição por excelência da humanidade para fazer
humanidade.
Mário Fortes
- Muito obrigado, Professor. Tocou aqui em pontos fundamentais e extraordinariamente
pertinentes na educação, falando na Hannah Arendt, que é inspiradora e o ponto
que enfatizou que a educação é o lugar onde decidimos a responsabilidade é algo
extraordinário. Disse muito bem o que é educação e que, para cada nova criança
no mundo, abre-se um mundo novo. De facto, o professor trouxe para este debate
e para esta discussão aspetos muito pertinentes. Depois também terminou a sua
intervenção dizendo que a educação é cada vez mais relevante para respondermos
a tantas questões da nossa sociedade, para que consigamos dar respostas às
questões que a sociedade nos dirige neste momento.