Uma viagem sentimental do académico e ensaísta Eugénio Lisboa pelo mundo da sua paixão pelos gatos e idêntico sentimento traduzido em páginas de literatos consagrados:
À memória da Generala Alexandrovna Ivanovna
Petrovska Ivinskaia, do Jim, do Jules e, ainda, à
Secotine, felizmente viva e incrivelmente activa.
Diz quem sabe que os gatos apareceram no nosso planeta, há cerca de sete milhões de anos. Apareceram e, de então para cá, quase nada mudaram, na sua constituição, porte e funcionamento. Este
“mínimo tigre de salão”, como lhe chamava Neruda, numa das suas belas odes, apareceu para ficar, durar e fascinar – ainda hoje, tal como no primeiro dia. Veio logo com formato definitivo, marimbando-se para a lei da evolução, que só dá para se aplicar aos outros animais.
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Por isso alguém disse, com um acinte que apetece aplaudir: com o gato, Deus acertou à primeira. O gato veio perfeito e assim tem permanecido. Quando a Igreja Católica quis arranjar argumentos para uma briga com Darwin, esqueceu-se do gato, isto é, desperdiçou o único argumento decente que tinha à mão: porque, se o homem descende, inconvenientemente, do macaco, o gato descende apenas do gato, sem qualquer intermediário que lhe obscureça o trajecto.
Tenho toda uma biblioteca consagrada ao gato (felideoteca?) e nela colho, diariamente, renovadas e acrescentadas razões de apreço e de afecto pelo elegante felino (sem falar, é claro, nas aulas práticas com a Secotine). O gato é, obviamente, o animal superior da criação. Concordo inteiramente com Mark Twain – de quem o Nobel, como é seu costume, se esqueceu – quando diz que, se o homem se cruzasse com o gato, melhoraria o homem, mas deteriorar-se-ia o gato. O gato tem sido consagrado e até venerado por tudo quanto é gente de gabarito. A minha felideoteca que o diga! Numa das duas edições da Enciclopédia Britânica, que possuo, pode ler-se isto, que ponho à vossa consideração: “A personalidade independente do gato, combinada com a sua graciosidade, limpeza e com os seus subtis sinais de afecto, são traços que têm um vasto apelo”. Ogden Nash, o celebrado autor de poesia humorística, dizia, num dos seus poemas, que o problema com os gatinhos era eles tornarem-se, eventualmente, gatos. Esta afirmação prova, entre outras coisas, que Nash nada percebia de gatos, caso contrário, saberia que, para um verdadeiro amante de gatos, um gato é eternamente um gatinho.
Nash, felizmente, é excepção. Os amantes de gatos são legião, se exceptuarmos algumas criaturas execráveis, que a história regista: Júlio César, que tinha horror a felinos e morreu assassinado (justiça transcendente?), os papas (três!) Gregório IX, Inocêncio VII e InocêncioVIII, a Raínha Elizabeth I (bem feito, morreu virgem!), o imortal bardo de Stratford, que congeminou o Hamlet, mas sempre se referiu maldosamente ao mais gracioso animal da criação, o Rei-Sol, Luís XIV, que dançava à volta de gatos que mandava lançar à fogueira, Napoleão Bonaparte, o compositor Johannes Brahms, que se entretinha a disparar setas contra os bichos indefesos, a dançarina e coreógrafa Isadora Duncan, e, por fim, o general Eisenhower, que proibiu gatos na Casa Branca, enquanto presidente – tudo gente horrível, mal disposta e, no fundo, sem o mais pequeno sentido estético. Mas estes são a triste excepção e, como muitos dos amantes do Felis Catus são ficcionistas e poetas, não se cansam de incluir o gato nos seus romances e contos, como protagonista de relevo, ou de o cantar e exaltar, nos seus poemas: Victor Hugo, Balzac, Théophile Gautier, Perrault, Alexandre Dumas, Colette, Thomas Hardy, Kipling, Mark Twain, Lewis Carroll, La Fontaine, Swinburne, Shelley, Keats, Edward Lear, Matthew Arnold, Jonathan Swift, Oscar Wilde, Zola, Arnold Bennett, Anatole France, Ford Madox Ford, Emily Dickinson, Petrarca, Yeats, Pierre Loti, Jean Cocteau, Simenon, P. G. Wodehouse, Ernest Hemingway, Saki, Walter de La Mare, Louis Macneice, T. S. Eliot, Don Marquis, Ted Hughes, Ambrose Bierce, Stevie Smith, Patricia Highsmith, A.L. Rowse, Eça de Queirós, Miguel Torga prestaram homenagem, nas suas prosas e nos seus versos, ao inimitável Catus.
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De todos eles, tenho testemunhos cintilantes em livros e antologias. Baudelaire tinha pelo “mínimo tigre de salão” uma verdadeira paixão: quando ia a casa de algum amigo, mostrava-se extremamente nervoso, enquanto lhe não aparecia o gato da casa; quando este, finalmente, se dignava aparecer, o poeta pegava-lhe, acariciava-o, beijava-o, falava-lhe, inteiramente esquecido dos donos da casa a quem mal ou distraidamente respondia. A sua empatia e quase identificação com os felinos era tão grande, que alguém descreveu o poeta das Flores do Mal como “um gato voluptuoso e blandicioso, com as suas maneiras aveludadas.”
O compositor russo Borodine vivia literalmente rodeado de gatos, a quem dava todas as liberdades. Com visitas em casa, os bichos saltavam para cima da mesa do jantar, sem que ao músico passasse pela cabeça enxotá-los. A romancista Colette, universalmente admirada por tudo quanto tinha nome de escritor, viajava com os seus gatos e levava-os para os hotéis onde, ocasionalmente, se aboletava. E escreveu um romance, ainda hoje famoso, La Chatte, no qual, em luta com uma mulher, pelo amor de um homem, a gata vence. Ao seu magnífico gato angorá, Victor Hugo deu o nome de Gavroche, o pequeno herói das barricadas, do romance Les Misérables. Foi sua grande e fiel companhia, durante o prolongado exílio na ilha de Guernesey, mas não teve o destino grandiosamente trágico do pequeno Gavroche: envelheceu, engordou e amolengou-se, passando a chamar-se “O cónego” (Le Chanoine). Hemingway, o homem das grandes caçadas africanas e da pesca graúda em Havana, vivia , na sua Finca La Vigia, em Cuba, rodeado, não de canzarrães temíveis, mas sim de gatinhos a granel (chegou a ter trinta e quatro).
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romance For whom The Bells Toll foi escrito numa secretária atapetada de gatos ciosos (como é conhecido o ciúme que os felinos têm do papel em que escrevemos, presume-se que o romance deva ter levado, a ser escrito, o dobro do tempo que levaria... sem gatos!) Mark Twain era de opinião que uma casa sem gatos devidamente apaparicados não era uma casa digna desse nome. Mas, aos bichos, gostava de dar nomes arrebicados: Apollinaris, Zoroastro, Blatherskite (Parlapatão), ou Sour Mash (Mixórdia Azeda): tudo maneiras de lhes exprimir o seu carinho. De resto, Eliot, num poema cuja tradução dediquei à generala a quem agora co-dedico este texto, explicava que os gatos precisam de ter nomes invulgares e improváveis, sem o que não conseguem manter a cauda perpendicular (ele queria dizer, é claro, “vertical” e não “perpendicular”, mas, por um lado, não percebia nada de geometria nem de Física, por outro, a palavra “perpendicular” é mais longa e aparatosa). Mark Twain não tinha lido Eliot, mas chegara à mesma conclusão por simples intuição e por ter, com os gatos, longas e amigas conversas.
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Quando se gosta destes sábios felinos, eles tomam, por completo, conta de nós, até porque sabem muito bem que o homem foi feito para servir o gato. Tanto que Evelyn Underhill não se pejava de confessar: “Acaba de me ser dado um gatinho persa extremamente sedutor ... e ele é de opinião que eu lhe fui dada a ele.”
Esta crónica vai longa, mas se o leitor pensa que a matéria – literatura com gatos – está esgotada, anda muito enganado. O tema é inesgotável e, por isso, voltarei a ele.
Eugénio Lisboa