sábado, 6 de novembro de 2010
OS LIVROS DE RÓMULO DE CARVALHO
Aproxima-se - é já a 24 de Novembro - outro aniversário de nascimento de Rómulo de Carvalho, o patrono do Dia Nacional da Cultura Científica. Recupero, por isso, um texto meu sobre os seus livros, que tanto admiro, saído no meu livro "Curiosidade Apaixonada" (Gradiva, 2005):
Para além da sua obra poética e de ficção (da pena de António Gedeão), Rómulo de Carvalho deixou-nos uma vasta e variada bibliografia ensaística, que inclui livros de divulgação científica, obras de história da ciência e manuais escolares. A primeira categoria engloba os livros da colecção “Ciência para Gente Nova” e os dois tomos de “Física para o Povo”, inicialmente editados pela falecida editora Atlântida, de Coimbra, e alguns dos quais foram reeditados pela editora Relógio d’Água, de Lisboa, na sua colecção “Ciência”. Inclui ainda os finos “Cadernos de Iniciação Científica” da Sá da Costa, que entretanto foram também reeditados pela Relógio d’Água num único volume. A segunda abrange um vasto número de títulos à volta da prática científica no Portugal do século XVIII, de que merecem destaque os três pequenos livros de resenha publicados pelo Instituto de Cultura e Língua Portuguesa “A Física Experimental em Portugal no Século XVIII”, “Astronomia em Portugal no século XVIII” e “A História Natural em Portugal no Século XVIII” (Rómulo escolheu para grande tema de estudo a ciência setecentista já que a ciência dos Descobrimentos tinha sido foco da atenção de outros autores e a ciência em Portugal do século XIX pouco mais foi do que inexistente). Merecem ainda referência especial a “História do Gabinete de Física da Universidade de Coimbra”, publicado pela Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, e os dois grandes volumes, um publicado nos últimos anos de vida e outro mesmo póstumo, “Actividades Científicas em Portugal no Século XVIII” (colecção de memórias da Academia de Ciências de Lisboa) e “Colectânea de Estudos Históricos” (estudos vários de história da ciência), ambos do prelo da Universidade de Évora. Por último, de entre os manuais escolares, quase todos em co-autoria e de qualidade não uniforme, merecem destaque os volumes “Ciências da Natureza” para o ciclo preparatório do ensino secundário. Como ensaios não classificáveis no esquema apresentado mas de grande fôlego refiram-se dois, relativamente tardios e ambas editados pelo Serviço de Educação da Fundação Calouste Gulbenkian, “História do Ensino em Portugal” e “O Texto Poético como Documento Social”. É obra!
Vejamos com mais pormenor cada um desses compartimentos bibliográficos.
- Livros de divulgação científica
Rómulo de Carvalho fez divulgação científica - e da melhor! - quando entre nós quase não havia divulgação científica. Embora as suas aulas, conta quem foi seu aluno, tenham ficado inolvidáveis, os livros aumentaram de maneira extraordinária o raio de acção do Professor. Houve quem quis ser cientista para saber os mistérios da física moderna que não apareciam nos manuais de física de antanho (ainda hoje quase não aparecem...) Para além de ter examinado alguns instrumentos baseados na ciência clássica, como o balão, Rómulo levantou a ponta do véu do pequeno átomo e do pequeníssimo núcleo no seu seio nos livros “História do Átomo”, “História da Radioactividade”, “História dos Isótopos” e “História da Energia Nuclear” da colecção “Ciência para Gente Nova”. É nítido logo a partir do título o valor pedagógico da história: a ciência é uma construção humana e aprende-se melhor se se conhecer o modo como ela se desenvolve. Nos livros do Mestre é claro ainda o primado da observação e da experiência: as coisas são como são porque alguém viu e experimentou, e nós, se formos suficientemente curiosos e hábeis, também podemos ver e experimentar. A linguagem, apesar de algo clássica, é sugestiva e motivadora, o que só se consegue por uma mistura da retórica e da imaginação que não está ao alcance dos escritores menores. Por isso, esses livros conservam a frescura inicial e, se o leitor os encontrar numa feira do livro de ocasião, considere-se feliz por os poder levar consigo para sua leitura privada.
A atitude experimental, que é inimiga da especulação gratuita e do preconceito falacioso, transparece também nos dois tomos de “Física para o Povo” a propósito dos fenómenos da física clássica (os dois tomos foram fundidos num só, na moderna edição da Relógio d’Água, intitulada “A Física no Dia-a-Dia”, com prefácio de José Mariano Gago e patrocínio do Instituto Camões e do Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro). Trata-se de uma prosa didáctica, escrita a pensar directamente no cidadão comum, a quem o autor gentilmente trata por “meu caro amigo”. Elucidativo sobre a omnipresença da ciência nas nossas vidas é o modo como são colocadas questões e dadas respostas sobre os mais fenómenos do nosso quotidiano. A Física não é uma actividade exótica mas tão só a tentativa de descrever e explicar o mundo onde vivemos. A “Física para o Povo” é um conjunto de aulas particulares, explicações, só para o “caro amigo”, o leitor que não quer ficar alheio ao mundo que o rodeia.
Finalmente, os “Cadernos de Iniciação Científica”, da Sá da Costa, que se destinam em primeira linha a jovens (a nova edição, da Relógio d’Água, junta todos os cadernos num só, prático, volume), “pretendem ser um meio de informação atraente, pela simplicidade da linguagem e pela apresentação gráfica, de conceitos fundamentais das ciências físicas” (do texto de apresentação da colecção). São, com os manuais escolares, os mais ilustrados dos livros de Rómulo, mas estes livrinhos, ao invés dos manuais, não querem seguir programas mas sim contar histórias, discutir ideias e prazentear leitores.
- Livros de história da ciência
Desde muito cedo Rómulo de Carvalho se interessou pela história da ciência em Portugal, nomeadamente o século XVIII. Os seus três livros da colecção Biblioteca Breve do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa são inescapáveis a qualquer estudante que se queira iniciar na época iluminista em Portugal. Em Coimbra, trabalhou na catalogação do Gabinete de Física, hoje Museu de Física, e escreveu várias memórias sobre peças desse rico acervo. E deixou um volume notável “História do Gabinete de Física da Universidade de Coimbra”, onde, em mais de sete centenas de páginas de aspecto austero e salpicadas de gravuras antigas, se descrevem os preciosos instrumentos científicos da colecção do Museu de Física. Essa colecção, que hoje pode ser visitada “in situ” remonta ao Colégio dos Nobres, em Lisboa. Foi Rómulo de Carvalho quem nos contou a “História do Colégio dos Nobres”, num volume da editora Atlântida muito anterior à “História do Gabinete...”. O actual catálogo do Museu (“O Engenho e a Arte”), que no essencial retoma o catálogo (“Les Mécanismes du Génie”) da exposição da Europália na Bélgica, seria impossível sem o trabalho meticuloso e paciente que Rómulo de Carvalho realizou no belo edifício pombalino quando ele ainda estava fechado à curiosidade e à admiração de todos. Também o Museu Maynense da Academia das Ciências deve muito (quase tudo) a Rómulo de Carvalho, que foi seu director. Dedicou a esse Museu e à Academia boa parte dos seus derradeiros anos, como é certificado pelo volume “Actividade Científica em Portugal no Século XVIII”, publicado em Évora por ocasião do doutoramento “honoris causa” concedido justamente pela universidade local. É especialmente útil para os estudiosos a bibliografia muito completa sobre a história da ciência em Portugal, que se encontra nesse volume.
- Manuais escolares
O lema dos compêndios “Ciências da Natureza”, que têm capas do conhecido “designer” Sebastião Rodrigues, vem logo na Introdução: “Atrás do aprender vem o saber, e o saber é uma riqueza que por mais que se use nunca se gasta”. O melhor elogio que se pode fazer a estes livros é que, por vezes, não parecem manuais escolares. Com efeito, se noutros manuais de Rómulo de Carvalho a sua prosa mais característica se encontra abafada, aqui ela solta-se, trazendo para o universo da escola a indagação e a curiosidade que muitas vezes estão apartadas dele por motivos inexplicáveis. Há quem testemunhe que Rómulo era um professor austero, difícil, autoritário. Estes compêndios mostram o contrário. Há um poeta escondido dentro do professor, e, se o rigor era seu apanágio, ele não aparecia dissociado do encantamento e da sedução que é uma marca dos verdadeiros poetas.
- Outros livros de ensaio
“A História do Ensino em Portugal”, com o subtítulo “Desde a fundação da nacionalidade até ao fim do regime de Salazar-Caetano”, é uma obra verdadeiramente enciclopédica, contendo informação factual cuja “secura” é contrabalançada amiúde pelo comentário e opinião. O livro é obrigatório para todos os que se interessam pelo ensino em Portugal. O ensino de hoje é, afinal, resultado de um passado feito de mil incidentes e circunstâncias que não podem ser ignorados se o queremos compreender e, acima de tudo, modificar. Rómulo de Carvalho não foi apenas um dos nossos maiores pedagogos mas também um dos maiores estudiosos da nossa pedagogia.
O “Texto Poético como Documento Social”, ensaio sobre a poesia como arma de documento e crítica, termina, tal como “A História do Ensino em Portugal”, com a revolução de 25 de Abril de 1974. Apesar de lhe ter sobrevivido 23 anos, Rómulo de Carvalho foi, por natural formação, um homem marcado pelo tempo anterior, um homem com uma revolta intelectual algo contida que apenas extravasava em textos poéticos de clara revolta social. Em “O Texto Poético...” procurou dissecar esse poder oculto da poesia que é o poder de transformar o mundo.
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2 comentários:
Eis uma prova concreta
de se poder aliar
o gosto de investigar
à missão de ser poeta!
Na ciência, como em tudo,
pode existir poesia,
como Galileu sentia
vendo o céu por um canudo!
O verdadeiro humanista
que abarca todo o saber,
se assim se pode dizer,
é no fundo o cientista.
Ninguém como Gedeão
para ilustrar a questão!
JCN
Para a verdade dizer,
não sei que mais me extasia,
se é a sua poesia
ou se acaso o seu saber!
JCN
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