terça-feira, 23 de novembro de 2010
MÉDICOS PORTUGUESES
Escasseiam em Portugal as obras de referência. Não há, por exemplo, um dicionário de cientistas ao longo dos mais de quinhentos anos que a ciência já leva em Portugal. Mas há, desde há pouco tempo, um dicionário histórico de médicos portugueses. É seu autor, como não podia deixar de ser, um médico, Manuel Freitas e Costa, Professor Catedrático Jubilado de Pneumologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, que coleccionou ficha biográficas de muitos médicos assim como imagens dos respectivos rostos (o que não deve ter sido nada fácil), que agora foram reunidas num volume publicado pela editora Lidel, intitulado “Personalidades e Grandes Vultos da Medicina Portuguesa”.
A capa é convidativa: o quadro “Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp” (1632) (na figura) do grande mestre holandês Rembrandt. E a primeira coisa que verifica quem pega no livro é o número enorme de “personalidades e grandes vultos” de medicina nacional. “Grandes vultos” é um subconjunto das 600 “personalidades” biografadas pelo autor de uma forma curta, o subconjunto daquelas que mais se destacaram por uma razão ou por outra: surgem mencionados logo no sucinto prefácio do autor os nomes de Pedro Hispano, Garcia da Horta, Ribeiro Sanches, Miguel Bombarda, Sousa Martins, Egas Moniz, Ricardo Jorge, Abel Salazar, Bissaya Barreto, Reynaldo dos Santos e Francisco Pulido Valente. Não vêm nesse grupo, por exemplo, Amato Lusitano, o médico judeu sobre cujo nascimento passam em 2011 cinco séculos, Jacob de Castro Sarmento, outro médico judeu que tal como o anterior emigrou para fugir à Inquisição e Luís da Câmara Pestana, pioneiro da bacteriologia, mas poderiam vir. E aparecem também nessa short list alguns nomes de médicos que se distinguiram fora da medicina, como foram os casos na matemática e astronomia de Pedro Nunes (talvez o maior cientista português de todos os tempos), na política os republicanos Manuel de Brito Camacho e António José de Almeida (que acrescem a Miguel Bombarda, assassinado pouco antes de assistir ao triunfo das suas ideias), na literatura os escritores Júlio Dinis, Miguel Torga e Fernando Namora, e na arte o pintor Mário Botas, falecido prematuramente. Muitos médicos portugueses distinguiram-se, como se vê, fora da sua área de formação original.
Além de não terem surgido até hoje dicionários de médicos portugueses, também não há um livro completo e actualizado de história da medicina acessível nas livrarias. Na bibliografia consultada, encontram-se o clássico “História da Medicina em Portugal”, de Maximiliano Lemos, o qual, originalmente publicado em 1899, foi há poucos anos republicado pelas Publicações D. Quixote, em edição que se encontra esgotada, e o muito bonito livro, embora abranja no título um só século, “Medicina Portuguesa no Século XX”, de Manuel Machado Macedo, publicado pelos CTT – Correios de Portugal em 2000 e também esgotado. Ainda mais difíceis de encontrar são obras publicadas por laboratórios em certas ocasiões, como “Grandes Figuras da Medicina Portuguesa”, de Imtiaz Juma, apoiada pela Rhône-Poulenc em 1993.
Apesar dessa escassez de apanhados gerais que nos permitam apercebermo-nos da dimensão histórica da medicina portuguesa, a história dessa ciência entre nós é bem antiga. Quem foi o mais antigo médico em Portugal? Pois o prefácio informa quem não saiba que “o primeiro médico português e o primeiro a ensinar medicina” foi Mendo Dias. Fui logo para a letra D o Dicionário, para confirmar que D. Mendo Dias viveu nos séculos XII e XIII, desconhecendo-se as datas exactas do seu nascimento e morte. Foi monge no Mosteiro de Santa Cruz em Coimbra, tendo ido estudar medicina para Sorbonne, em Paris, numa época em que ainda não existia a Universidade de Coimbra (fundada em 1290). Freitas e Costa informa-nos que, apesar de não haver universidade em Portugal, a medicina já se ensinava em Santa Cruz desde 1130. E foi aí que Mendo Dias ensinou, no tempo de D. Sancho I, ganhando justa fama. Nas esculturas realizadas por Leopoldo de Almeida para a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (o edifício do Estado Novo, na Alta, agora deixado pelos médicos por terem rumado para o campus do Pólo III, nas imediações do Hospital Universitário) lá está Mendo Dias, perto de Pedro Hispano e de Garcia da Orta.
Como esse grupo escultórico está muito perto do meu local de trabalho, já vi guias turísticos chamarem a atenção do seu grupo não para Mendo Dias, mas para Pedro Hispano, justificando que foi o primeiro e até agora único papa português, sob o nome de João XXI (embora por pouco tempo, vitimado como foi em 1276 pela derrocada do palácio papal). Avancei no Dicionário para a letra H, para ler a ficha de Pedro Hispano ou Pedro Julião. Também esteve em Paris, como Mendo Dias, assim como esteve em Lisboa, Santiago de Compostela, Sicília, Siena e Montpellier, tendo portanto sido um viandante pela Europa num tempo em que ainda não havia o programa Erasmus. Entre as várias obras que lhe são atribuídas (não há a certeza da autoria) sobressai o tratado oftalmológico De Oculis, contendo uma receita que se diz ter sido usada, anos volvidos, pelo pintor Miguel Ângelo.
Para verificar a qualidade do dicionário recuei a seguir para a letra E, para consultar uma das maiores fichas, a de António Egas Moniz, o nosso primeiro e único Prémio Nobel na área científica. E lá está a informação que conhecia: no próximo ano vai fazer cem anos que trocou o seu lugar de Coimbra por um lugar de catedrático na então fundada (ou refundada, pois partiu de escolas anteriores) Universidade de Lisboa. Tal como Mendo Dias e Pedro Hispano, também passou por Paris...
Folheando o Dicionário, encontrei Pedro de Almeida Lima (o famoso colaborador de Egas Moniz), Marck Athias (outro judeu, licenciado em Paris), Henrique Barahona Fernandes (perito em saúde mental), Adelaite Cabete (não há muitas médicas no livro!), Augusto Celestino da Costa (introdutor da embriologia entre nós), João Cid dos Santos (cirurgião vascular), Mário Corino de Andrade (o grande estudioso da doença dos pezinhos), António Plácido da Costa (um oftalmologista inventor), João Curvo Semedo (o primeiro a utilizar a quina no tempo de D. João V), Francisco Gentil (pioneiro da luta contra o cancro), Zacuto Lusitano (outro judeu perseguido), Júlio de Matos (psiquiatra e positivista), Elysio de Moura (lendário médico coimbrão), José Vizinho (médico de D. João II e cosmógrafo), etc. Mas não encontrei António Augusto da Costa Simões, o fisiologista do século XIX que modernizou o ensino médico em Coimbra.
Fica-se, de facto, admirado com o número de médicos que se notabilizaram fora da sua área: Judas Leon Abrabanel (o Leão Hebreu, autor dos “Diálogos de Amor”), Félix Avelar Brotero (que, apesar da sua formação em Medicina, enveredou pela ciência botânica), José Vicente Barbosa do Bocage (que, como Brotero, se tornou naturalista embora optando pela Zoologia), Jaime Cortesão (que ganhou fama como historiador), Júlio Dantas (o do “Morra o Dantas, morra, pim!”), José Feliciano de Castilho (o da Questão Coimbrã), José Fialho de Almeida (o autor de “Os Gatos”), Manuel Laranjeira (o escritor que se suicidou), José Leite de Vasconcelos (o grande etnólogo), Alberto de Sousa (o pintor) e Bernardo Santareno (o dramaturgo). Lá está ainda o músico contemporâneo já falecido Carlos Paião.
Se eu tivesse disposto deste livro teria tido menos trabalho quando escrevi, com Décio Martins, a “Breve História da Ciência em Portugal”, saido este ano na Gradiva...
- Manuel Freitas e Costa, “Personalidades e Grandes Vultos da Medicina Portuguesa”, Lidel, 2010.
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2 comentários:
Bela apresentação duma obra que de outra forma desconheceria. Como Arquitecto vivo longe do mundo da Medicina, preciso muito deste tipo de pequenos textos para satisfazer pequenas curiosidades...
Cumprimentos
Júlio Dinis ers médico. E Fernando Namora.
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