sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A Reposição do Exame de Filosofia no Ensino Secundário


“A Filosofia não brota por ser útil, mas tão-pouco pela acção irracional de um desejo veemente. É constitutivamente necessária ao intelecto” (Ortega y Gasset, 1883-1955).

Acabo de tomar conhecimento, através do Público, com a data de hoje, e em título de notícia (p. 23), que o “Exame de Filosofia vai ser reposto no ensino secundário”.

Mais fiquei a saber, aí, que ontem foi assinalado o Dia Internacional da Filosofia, tendo o secretário geral das Nações Unidas, Ban Ki-mon, “lembrado que na sua base está a possibilidade de partilha de questões universais sobre a existência humana”. E acrescentou: “Isto dá-lhe um poder invulgar para ajudar a construir pontes entre povos e para abrir canais de comunicação entre culturas”.

Esta temática tem para mim um valor acescentado por ter servido de leitmotiv à publicação de um artigo de jornal, transcrito neste blogue, em 23/06/2007, constituindo a primeira peça de uma série de posts aqui publicados da minha autoria.

Transcrevo integralmente o referido post:

O EXAME NACIONAL DE FILOSOFIA

"O fascínio tecnicista e cientista é um sinal dos tempos, cujas repercussões se fazem sentir na organização, ou antes, na desorganização do sistema de ensino, a todos os níveis" - Georges Gusdorf.

Abel Salazar foi professor universitário de Medicina, em inícios e meados do século passado, com um notável e eclético saber nos diversos domínios científicos e culturais: médico, escritor, pintor, escultor e filósofo, tendo-se doutorado, em 1915, com 20 valores com a tese Ensaio de Psicologia Filosófica. Com conhecimento de causa, sentenciou ele: “Um médico que só sabe de medicina nem isso sabe!”

Hoje, numa época em que os responsáveis pela tutela da Educação – em nome de uma deplorável facilidade no acesso ao ensino superior, ou (apenas) como tal plasmado na lei! – em boa hora arrepiaram caminho na decisão em acabar com o exame nacional de Literatura Portuguesa, mas persistem em manter essa decisão no que se reporta à Filosofia, uma questão se levanta. Deverá a Filosofia ser valorizada no âmbito dos cursos de humanidades e subalternizada no domínio das ciências naturais?

A questão nem sequer é nova! Segundo Georges Gusdorf, “na Primavera de 1964, assistiu-se ao facto de os decanos da Faculdade de Medicina e da Faculdade de Ciências da Universidade de Paris, proclamarem que a Medicina é doravante uma ciência; ninguém poderá pretender ser iniciado se não for geómetra, se não possuir noções de base como as de função, logaritmo, derivadas. A formação médica pressupõe uma escolaridade secundária que passa pelas classes terminais de ciências e de matemática dos liceus”. (Da História das Ciências à História do Pensamento, Editores Livreiros, Ld.ª, Lisboa 1988, p. 9).

Ainda segundo este autor, “os distintos decanos preveniam os interessados e as famílias contra a deplorável perda de tempo e de inteligência que representaria um estágio na classe de Filosofia. Um jornalista foi, então, perguntar a estudantes de Medicina, escolhidos ao acaso, o que pensavam desta declaração. Responderam-lhe que lhes parecia, pelo menos, impensada. O conhecimento dos logaritmos é talvez útil ao médico, mas o conhecimento do homem e da condição humana é primordial; é deplorável que não entre em linha de conta na aprendizagem médica. Os estudantes tinham cem vezes razão em denunciar esta forma particularmente nociva de obscurantismo contemporâneo, que existe entre os potentados universitários como no homem da rua” (id., ibid.)

Este descabido, ridículo e insolente ataque à matriz de todas as ciências é tanto mais insólito quando nomes grados da Ciência se distinguiram no frutuoso deambular pelos caminhos de um Conhecimento sem fronteiras. Três exemplos, de entre muitos: Max Planck, físico e Prémio Nobel da Física (1918), preocupado com a relação entre a ciência e religião; Ernest Krestchemer, médico psiquiatra alemão, doutor honoris causa em Filosofia pelas Universidades de Wuerzburg e Católica do Chile; e Bertrand Russell, matemático e sociólogo britânico, Prémio Nobel da Literatura em 1950. E isto para não falar já em Albert Einstein, presença obrigatória em diversos manuais de Filosofia!

Poder-se-á objectar que a disciplina de Filosofia continua a fazer parte do currículo do ensino secundário, mas... o facto de não ser avaliada em exames nacionais coloca-a numa posição, no mínimo, insólita. E não me venham com a teoria de que os exames nacionais são uma forma menos válida ou justa de avaliar os alunos. O mal não está nos exames, mas na forma que preside à respectiva elaboração!

A facilitação em deixar passar os alunos sem testar os conhecimentos adquiridos em exames nacionais nos diversos graus de ensino conduziu a população escolar portuguesa à crítica demolidora de Vasco Pulido Valente: “Um ensino, em particular ensino superior, ineficiente e caótico e, além disso, irreformável”!

Na verdade, chegou-se a níveis de ignorância que campeiam entre os próprios diplomados do ensino superior e que não são escamoteáveis por mais tempo, pese embora, como escreve Mario Perniola, professor de Estética da Universidade Tor Vergata de Roma, “haver sempre uma caterva de ingénuos prontos a escrever a história da última idiotice, a solenizar as tolices, a encontrar significados recônditos nas nulidades, a conceder entrada às imbecilidades no ensino de todas as ordens e graus, pensando que fazem obra democrática e progressista, que vão ao encontro dos jovens e do povo, que realizam a reunião da escola com a vida”.

Numa altura em que novas (e, ainda mais, facilitadoras!) formas de acesso a escolas de ensino superior se divisam no futuro prenunciando técnicos despojados de uma necessária formação cultural - a que a leitura constante de textos literários e a reflexão filosófica conduzem - e em que a quantidade de diplomados pelo ensino superior supera em muito a sua qualidade - , os claustros universitários devem manter-se como guardiães esforçados da Cultura Humanística, do Conhecimento Científico e da Investigação Pura e Aplicada. Num contexto de elevada qualidade e numa tradição multissecular na formação de elites!

9 comentários:

Augusto Küttner de Magalhaes disse...

Muito necessário voltar a ser necessário/obrigatório, ensinar/aprender Filosofia no curriculo escolar.
Saber entender o abstracto, saber pensar na vida, saber ver além do ter,do unicamente "palpável" é essencial.


Augusto Küttner de Magalhaes

Anónimo disse...

Saber identificar ou colocar um problema, uma tese, um ou vários argumentos sobre temas relevantes da ética, da estética, da lógica, da epistemologia, da antropologia, da axiologia, da ontologia, entre outros, é fundamental na estruturação do pensamento e da acção.
Quanto aos exames repostos, já era sem tempo.

Rui Baptista disse...

Prezado Augusto Küttner de Magalhães:

Aprender a pensar (hoje a moda é "aprender a aprender"!) pode tornar-se perigoso para os detentores únicos de um conhecimento oficial, seja ele político, religioso ou qualquer outro.

Mas o escândalo do assassinato político-educativo da Filosofia foi finalmente julgado e punido, embora deixando atrás de si as vítimas de um ensino que apunhalou "a busca da sabedoria
e a sabedoria encontrada".

Daí o valor da sua exortação que peço vénia para transcrever: "Muito necessário voltar a ser necessário/obrigatório, ensinar/aprender Filosofia no curriculo escolar".

Nunca é demais repetir verdades que andam arredadas de alguns bestuntos da 5 de Outubro. Desta feita, cumpriu-se o desígnio que o povo traduziu de forma feliz: "Água mole em pedra dura tanto dá até que fura".Haja Deus!

Rui Baptista disse...

Rectificação: Este post foi publicado em 23/07/2007 e não durante o mês de Junho. Para além disso,foi o meu terceiro post, sendo o primeiro "A má fortuna dos claustros universitários", publicado em 5 de Julho desse mesmo ano.

Do erro involuntário, peço desculpa ao leitor.

Cisfranco disse...

Boa notícia esta de que a Filosofia vai ser reabilitada. Só cabeças vazias é que podiam ter determinado a menorização da Filosofia. Fundamental para qualquer área de ensino superior em que se formam diplomados. Cria pontes, pode abrir janelas, pode desbloquer situações que os que têm só o conhecimento científico estrito não conseguem fazer. Afinal a sabedoria é que é importante. E a Filosofia é só amiga dela...

Anónimo disse...

Já não era sem tempo. Incrível a falta de profissionalismo demonstrada por alguns professores de Filosofia. É fartar vilanagem nas notas para ter alunos de psicologia no 12º ano. A discrepância entre as classificações finais de filosofia e de todas as outras disciplinas chega a ser obscena.

Augusto Küttner de Magalhães disse...

Caro Rui Batista

Como é evidente temos que passar a mensagem de que a aprendizagem do pensamento é essencial.
Que saber aprender Filosofia bem como saber ter Cultura, saber olhar o belo, saber aprender História, até para tentar evitar erros cometidos anteriormente, é essencial.

E como é evidente a Fiolosofia, abstrai, faz fazer o cérebro extender-se, não ficando “todos” bloqueados no que se vê na frente do nosso nariz.

Como por certo saberá, estudos agora feitos, apontam para a utilização do GPS exclusivamente no desconhecido e nunca, mas nunca, no conhecido. Dado que desactiva a parte do cérebro, como é desactivado quando aparece a doença de Alzeimer, ou seja não chega as máquinas ajudarem-nos a pensar sem um esforço nosso em aprender a pensar.

Temos todos cada vez mais que ter que saber pensar, em deixar para as maquinas o delineado para as máquinas, nós somos muito mais e muito melhores que máquinas, mas não podemos ser limitados a não usar o que temos, dado que tudo perdemos....se ficarmos mecanizados!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Força!

Um abraço

Augusto Küttner de Magalhães

Rui Baptista disse...

Caro Augusto Küttner de Magalhães:

Subtraindo um certo exagero (ou talvez não!), a subalternização da Filosofia no ensino secundário traz-me à memória a obra "Fahrenheit 45" em que a nobre missão dos bombeiros foi substituída pela queima de livros a seu cargo.

E o que dizer dos respectivos programas que infantilizam os jovens escolares? Os responsáveis por este "status quo" deviam ser amarrados ao pelourinho de uma vergonha nacional.

Ou será que nos damos por felizes em ter um 1.º ministro de nome Sócrates e uma situação económica do tipo da Grécia?

Rui Baptista disse...

Na penúltima linha do último §, termos em vez de ter.

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