segunda-feira, 29 de novembro de 2010

ALEXANDRE PINHEIRO TORRES


Mais um texto de Eugénio Lisboa, desta vez sobre Alexandre Pinheiro Torres, bacharel em Físico-Química pela Universidade do Porto e licenciado em Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra, grande autor da língua portuguesa (o início da sua obra literária, com o livro de poesia "Novo Génesis", foi há 50 anos):

Um empenhado embaixador da cultura portuguesa

Sobre as facetas de Alexandre Pinheiro Torres, como poeta, romancista, biógrafo, ensaísta e crítico literário – que, em todas, se notabilizou - , outros, estou certo, se debruçarão, com maior competência do que eu. Mas há um pelouro da importante actividade deste empenhado clerc para que me sinto em privilegiada posição de testemunho: refiro-me à sua actividade docente, na Universidade de Wales, em Cardiff.

Quando cheguei ao Reino Unido, em Maio de 1978, ia, confesso, com algum receio de me encontrar com o mítico personagem que era o Alexandre Pinheiro Torres, crítico literário e implacável executor de tantos que às suas mãos haviam sofrido tratos de polé. Eu tinha fama de presencista (publicara três livros sobre o Régio, um sobre o Segundo Modernismo e outro sobre a poesia portuguesa, do Orpheu ao Neorealismo, passando pela presença...) e o Alexandre conotava-se com o neorealismo. Tinha, além disso, fama de dar ao seu combate sonoridades aterradoras ... Íamos ver.

Para o caso, encontrei-me com ele, nos corredores do King’s College, em Londres, pouco depois de ali ter chegado, como Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal no Reino Unido. Nessa minha capacidade, não podia evitar, mais até do que o contacto, o comércio profissional com o encarregado de estudos portugueses na universidade galesa. Esse comércio depressa se tornou comércio de amizade. O Alexandre fez questão de se mostrar, desde logo, afável e amigo de colaborar – ou de me pedir que com ele colaborasse. Fui, por mais de uma vez, a Cardiff, ficando em sua casa, visitando o departamento e falando para os seus alunos. E levei lá personalidades que ali foram também falar: lembro, entre outras, David Mourão-Ferreira. O que ali presenciei calou-me fundo. Alexandre Pinheiro Torres tinha uma cultura fenomenal, que ia muito para além da literatura portuguesa: dominava extremamente bem a literatura brasileira, de que organizou uma magnífica antologia poética, e as literaturas africanas de língua portuguesa. Tinha cultura filosófica, política e sociológica e de tudo isto impregnava com entusiasmo, as suas lições e conversas com os alunos, que tinham, por ele, uma devoção filial.

O espalhafato que o Alexandre às vezes fazia tinha muito de encenação. No fundo era um homem extremamente bondoso e um incansável trabalhador. A sua biblioteca pessoal era gigantesca, trepando pelas paredes da sua casa e invadindo, com eloquência, as do seu gabinete de trabalho: livros obviamente lidos, com voracidade e penetração.

Nunca tive um momento de hesitação, quando se tratou de lhe satisfazer algum pedido: é que os seus pedidos queriam sempre dizer pretextos para ele ter mais trabalho do que já tinha. Quando se reformou como catedrático, disse-me que não se importaria de prolongar a sua actividade de catedrático por mais cinco anos, se o Instituto de Cultura e Língua Portuguesa lhe pagasse o modesto salário de leitor (tratava-se só de uma pequeníssima vantagem monetária a acrescentar a uma reforma longe de ser choruda). O ICALP aceitou e os cinco anos estenderam-se a onze.. Poucas vezes Portugal terá lucrado tanto com um “leitor” e não terá nunca tido um leitor de tal gabarito.

A sua morte surpreendeu-me, estava eu já em Lisboa, depois de 17 anos de convívio com o autor de Espingardas e Música Clássica. Não o sabia doente, porque o Alexandre, com toda a sua exuberância, era um modelo de discrição. A sua perda atingiu-me profundamente. Contava vê-lo, periodicamente, quando viesse a Lisboa. A sua amizade aquecera-me a estadia no Reino Unido e, quando se avança em anos, nada nos parece tão precioso como uma boa amizade. O Alexandre era inteligente, culto, trabalhador e divertido. Mas era, sobretudo, bom. E como isso nos faz falta!

Eugénio Lisboa

1 comentário:

Anónimo disse...

Estas coisas... diziam-se em vida do visado. JCN

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