sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O Coração da Poesia e o Coração da Ciência

“O coração tem razões que a razão desconhece” (Blaise Pascal, 1623-1662).

O “Poema do Coração”, do poeta António Gedeão, de seu nome de baptismo Rómulo de Carvalho, aqui publicado no passado dia 23 por Carlos Fiolhais, denuncia o antagonismo entre a veia poética do autor e a sua formação científica, que o obriga a ver no coração não aquilo que, talvez, desejasse ver, mas sim aquilo aquilo que realmente é: uma simples bomba aspirante premente obediente às leis da Física.

Atente-se nestes versos iniciais:

"Eu queria que o Amor estivesse realmente no coração,
e também a Bondade,
e a Sinceridade,
e tudo, e tudo o mais, tudo estivesse realmente no coração
Então poderia dizer-vos:
‘Meus amados irmãos,
falo-vos do coração’,
ou então:
‘com o coração nas mãos’.

Mas o meu coração é como dos compêndios
Tem duas válvulas (a tricúspide e a mitral)
E os seus compartimentos (duas aurículas e dois ventrículos)
O sangue a circular contraio-os e distende-os
Segundo a obrigação das leis e do movimento”.

Neste dilema milenar sobre o desvendar da interrogação de Pascal - “Que quimera é o homem?” - confrontam-se, em busca incessante, a Ciência (Biologia), a Filosofia e a Religião. Para Peter Medawar (Prémio Nobel de Medicina de 1960), “a ciência não pode responder às questões últimas sobre o sentido da vida”. A Biologia hodierna, com pouco mais do que dois séculos de existência, a Filosofia, que atravessou a bruma dos milénios, e a Religião, que se perde na imensidão do tempo, porfiam desesperadamente em dar resposta, embora sem cultivar a interdisciplinaridade, ao grande enigma do “animal racional” de Lineu posto ao lado dos animais irracionais – que geneticistas nos dizem hoje diferenciar-se de um simples rato por uma pequena discrepância do DNA. Este facto foi rejeitado pelo fervor religioso do literato François-René Chateaubriand (1768-1848), que escreveu: “Se nos é permitido dizer, é, parece-nos, uma grande pena encontrar o Homem mamífero classificado, depois do sistema de Lineu, com os macacos, os morcegos e os pássaros”.

Segundo Edgar Morin, uma das melhores cabeças do pensamento contemporâneo, a idade da Terra ascende a 5 mil milhões de anos, a vida a 2,5 mil milhões, o homo sapiens de 100 a 50 mil anos, a Filosofia a 2500 anos, mas as Ciências Humanas estão apenas praticamente no seu ano zero! Julgo, assim, que se torna desejável (ou mesmo imperioso) que as Ciências Humanas, ainda segundo ele, “um pequeno ghetto”, não virem as costas à Biologia na sua tarefa de Sísifo de desvendar os segredos “da humilhação zoológica” do animal racional, apeado do criacionismo que alguns pretendem revigorar nos Estados Unidos da América.

Entretanto, ao debruçarmo-nos sobre a história, podemos avaliar os seus reflexos no tempo actual. Segundo o filósofo contemporâneo Jean-Michel Rey, “a Metafísica e a Religião, nos seus esforços conjugados, lançaram uma proibição sobre qualquer ciência do corpo”. Por outro lado, ao contrário do que vulgarmente se pensa, pelo apogeu das práticas atléticas gregas e o valioso legado da estatuária de apolíneos heróis coroados de folhas de oliveira, a filosofia helénica deverá, também ela, ser responsabilizada por este status quo. Assim, no legado platónico, praça forte do pensamento filosófico da humanidade, o corpo era havido como “um companheiro mau no caminho que leva à verdade” e "o túmulo em vida da alma".

Acresce que, para Jean-Pierre Changeux, consagrado neurofisiologista dos nossos dias, Aristóteles, com lugar no pódio dos maiores filósofos da humanidade, ao debruçar-se sobre o funcionamento da máquina humana, “baralhou os espíritos durante séculos” por considerar o cérebro um sistema de arrefecimento do sangue e o coração a sede dos sentimentos, uma tese tão ao gosto da poesia dos trovadores medievais.

Por este facto, segundo Georges Gusdorf, “a biologia aristotélica só foi verdadeiramente ultrapassada após um intervalo de 2000 anos". Ora, como é consabido, o coração é apenas, grosso modo, um músculo, anatomicamente estriado e fisiologicamente liso, que não ama e não odeia, que não rejubila e não sofre, que não age e não sonha! Mas ainda hoje, nos alvores de um novo milénio, na tradição popular é difícil aceitar esta realidade que obriga, até, o próprio conhecedor do sistema límbico a levar a mão ao peito, no sítio em que o coração, trespassado por uma seta, galopa em louco tropel para exprimir à sua amada o fogo da paixão que lhe corrói as entranhas e enrubesce a face!

António Gedeão, o poeta dos sentimentos, e Rómulo de Carvalho, o homem de ciência, ambos uma e a mesma pessoa, com rara felicidade não se traem: conciliam a beleza da poesia com a frieza da ciência. Por norma e liberdade poética, o coração da poesia vive arredado das leis da física. Mas não no “Poema do Coração”.

5 comentários:

Anónimo disse...

Será que na categoria do "homo sapiens" não há lugar para a poesia?... JCN

Rui Baptista disse...

Caro Professor JCN:

Claro que há!

E a prova disso está, em toda a sua plenitude, em António Gedeão "versus" Rómulo de Carvalho.

Somente, de uma forma geral, a alma artística (e o poeta é um artista de eleição) paira acima das retortas e dos tubos de ensaio do "homem da ciência".

Rui Baptista disse...

Caro Professor:

Depois de publicado este meu segundo comentário, repensando sobre a sua chamada de atenção - que agradeço -, vou rectificar a expressão "homo sapiens", desajustada do contexto, por "homem da ciência".

Anónimo disse...

COR UNUM


No peito do ser humano
existe um só coração,
não havendo distinção,
dentro de cada fulano,

entre a sua anatomia,
concretamente falando,
ou do mesmo se tratando
em termos de poesia.

JCN

Anónimo disse...

Caro Dr. Rui Baptista:

No texto do seu primeiro comentário, do mais elevado quilate literário, eu não diria que, no caso vertente, o poeta está "acima das das retortas e dos tubos de ensaio", mas dentro deles, não havendo pois razão para um "versus", mas um "a par". Na minha sensibilidade. JCN

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