sábado, 20 de novembro de 2010

O Sonho


Crónica a partir do poema “Pedra Filosofal”, de António Gedeão, in Movimento Perpétuo, 1956, e elaborada para o Exploratório Infante D. Henrique, Centro de Ciência Viva de Coimbra, no âmbito da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia a decorrer entre 22 e 28 de Novembro de 2010.

O sonho é, de facto, uma constante da vida e da história Humana.

Demócrito sonhou com o átomo. Mas foi Aristóteles, que não possuía equipamentos de ressonância magnética, o primeiro a observar que até insectos, como as abelhas, sonham. Que sonham, quiçá com coreografias, desenhos de néctar, no palco hertziano de uma passarola solar. Mas sonham.

Freud, que não sabia como Damásio da natureza molecular das emoções, pressentiu nos sonhos os desejos por interpretar da terra do subconsciente. Desejos de terras distantes, de superfícies lunares.

Aserinsky e Kleitman, que não sabiam bolinar, encontraram ilhas de sonho no mar do sono. Designaram estas janelas interiores por sono R.E.M. (Rapid Eye Movement). Por elas, a actividade neuronal expressa nos registos electrofisiológicos, é semelhante à do estado de vigília, quando estamos acordados!

Mas por essas janelas cogitamos sem nos movermos. Mas o sonho, esse avança por essas ilhas de sono R.E.M.

Hobson e McCarley, sem saberem voar, postularam que os sonhos são experiências sensoriais cerzidas pelo tear do cortéx cerebral, que usa fios de sinais caóticos, emanados desde a Ponte de Varólio, estrutura primeva do tronco cerebral, que partilhamos com os répteis e com as aves.

Payne e Nadal, que não eram poetas, definiram o sonho como o resultado de uma semântica feita com memórias, que nele se consolidam numa fluida narrativa, como pedaços de vida acordada mas intangível e que foge à recordação.

Se o sonho ocorre, é porque tem uma função específica e útil para as redes neuronais e suas complexas interacções entre as diferentes partes do cérebro.

Mas quais são os caminhos do sonho? Em que vagas de ondas de impulsos, ditos nervosos, avança ele, por entre milhões de neurónios, até à praia da nossa consciência?

No oásis onírico revoltam-se as essências, ocorrem flutuações na concentração de iões e moléculas. Mas há átomos e moléculas do sonho?

Sim. Alguns iões, principalmente os de sódio e potássio. E que moléculas? Certas combinações de não mais de duas dúzias de átomos de carbono, oxigénio, nitrogénio e hidrogénio. Átomos forjados em estrelas, mais ou menos distantes, e que hoje formam neurotransmissores, quais caravelas transportando mensagens.

Allan Hobson sonhou quantificar as moléculas do sonho. Mostrou que no sono do sonho, as concentrações nos fluidos cerebrais de neurotransmissores como a serotonina, a histimina e a noradrenalina estão diminuídas, e isto inibe as vias neuro-motoras, relaxando o corpo.

Por outro lado, neurónios colinérgicos na Ponte de Varólio aumentam as vagas de acetilcolina em direcção ao córtex e em níveis semelhantes ao estado acordado. Será a acetilcolina (C7H16NO2) uma molécula do sonho?



Nesta janela bioquímica que também é o sonho, o córtex cerebral tenta organizar as incessantes e anacrónicas vagas de impulsos. E com a matriz de padrões feitos de sensações e emoções quotidianas, o cérebro cortical vê, sente, ouve sem gastar os sentidos. Revisita a caderneta das nossas vivências, dos nossos planos futuros e compara-os, mistura-os, experimenta-os em novos cenários interiores, para forjar no silêncio uma alquimia de novos e úteis padrões de comportamento. E faz tudo isto e muito mais, sem cansar o corpo.

Mas no mar da vigília, também há ilhas de sonho. Ao sonhar acordados, cogitamos as ressonâncias entre experiências passadas com as possibilidades futuras, permitimos que soluções novas, para problemas velhos, floresçam de entre razões enrodilhadas.

E através da paleta das ressonâncias magnéticas funcionais, sonhamos nós um dia poder ver as cores de um sonho qualquer, “como bola colorida entre as mãos de uma criança”.

António Piedade

9 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

E se um dia, a bioquímica (e não só) esclarecesse(m) todo o metabolismo celular e o funcionamento do organismo, a medicina (meios de diagnóstico, análise clínica e terapêutica), farmacologia, psiquiatria e psicologia, passavam a áreas da... biologia (humana). Que é o que,no fundo, são, afinal.
E então, quando precisássemos melhorar a saúde ou modificar o corpo ou a mente, fazíamos uma "reparação biológica", talvez por catálogo, e escolhendo a "oficina".
Porém, (muito) antes disso temos que nos (pre)ocupar com a miséria e a fome, as quais, entre nós, equivalem, no momento, à dívida pública...

ana disse...

Li com prazer o seu texto científico que se transformou em texto literário segundo uma narrativa histórica, verdadeira ponte entre as ciências e as letras.
Apreciei bastante!

Anónimo disse...

SENSIBILIDADES

Estou-me borrifando, a bem dizer,
nas tintas eu me estou, não me envergonho,
para alquimicamente conhecer
as causas fisiológicas do sonho!

Como poeta basta-me sonhar
e pelas vias da imaginação
entre milhões de estrelas navegar
a bordo de fingido galeão:

acordado sonhar de olhos abertos,
compondo os meus poemas sob o efeito
dos siderais sinfónicos concertos.

O que a ciência apura a seu respeito
nada me diz em termos de esperança
de as ilusões manter de uma criança!


JOÃO DE CASTRO NUNES

Anónimo disse...

Altero o último terceto para:

O que a ciência apura a seu respeito
nada me diz, pois para mim não passa
de uma divina e generosa graça!

JCN

Anónimo disse...

O sonho reduzir a reacções
no córtex cerebral, como começa
a defender-se, iões contra protões,
queiram lá desculpar, mas não vou nessa!

JCN

José Batista da Ascenção disse...

Deixe estar, Caríssimo Professor João de Castro Nunes, que a Ciência nunca passará além do que pode, digo eu.
O belo/horrível bicho humano o demonstra, a cada passo, segundo penso.
Haja, pois, o sonho. Ou a poesia.
Para nosso bem, conforme sinto.

António Piedade disse...

Longe de mim reduzir uma aliquota que seja da dimensão etérea, mística, e casulo da esperança de um mundo melhor, que experenciamos pelo sonho.
Mas caro professor, não é igualmente deslumbrante e espantoso a compreensão de como é essa dimensão onírica se espoleta a partir de simples e complexos elementos, matéria e substância do próprio cérebro?
É tão deslumbrante como inacreditável...

Anónimo disse...

Tudo para um poeta... é deslumbrante e susceptível de se transformar em sonho, seja qual for a mecânica ou suporte fisiológico do seu funcionamento, por "inacreditável" que pareça! Haverá coisa mais poética do que a ciência? A questão é saber vivê-la em poesia. JCN

Anónimo disse...

A DESTEMPO

Ah! se eu vivido houvesse anos atrás,
na idade-média ou pouco mais à frente,
como seria tudo diferente
em quanto fiz ou me julguei capaz!

Teria sido um cavaleiro audaz
ou, se calhar, um afamado lente,
um cátaro rebelde e renitente,
um crstão-novo astuto e contumaz!

Teria andado com D. Pedro ao lado
pelas terras da Hungria combatendo
o turco fortemente organizado!

Por causa de razões que não entendo,
tocou-me vir ao mundo numa altura
em que sonhar... é crime, porventura!

JOÃO DE CASTRO NUNES

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