terça-feira, 16 de novembro de 2010
Alfredo Margarido - Um Testemunho –
No passado dia 12 de Outubro faleceu, com 82 anos, o ensaísta, poeta e artista plástico Alfredo Margarido. razão para recordarmos um texto que Eugénio Lisboa lhe dedicou há poucos anos muma homenagem em que não pôde estar presente:
Tenho sincera pena de não poder estar presente nesta homenagem que hoje aqui se presta a um dos mais genuínos cultores do desassossego intelectual, que dá pelo nome de Alfredo Margarido. E só não estarei presente pela simples e honesta razão de que estarei ausente... em Cuba, onde a minha filha mais velha festeja os seus cinquenta anos, seguindo-se um Natal, desta vez melancólico e depressivo, por causa de uma crise perversa que tanto mal tem feito a tanta gente. Uma crise de que não tive oportunidade de falar com o espírito acutilante e sempre surpreendente de Alfredo Margarido. Porque, de facto, há muito que não estou com o Alfredo – e o prejuízo é só meu. As razões porque as pessoas estão tanto tempo sem se verem são muitas e variadas e, a partir de uma certa idade, são também, infelizmente, óbvias. Mas não é disso que aqui venho falar.
Alfredo Margarido é, como os melhores, um monte de contradições: um rezingão inteligente que disfarça os seus afectos, um cultivador da palavra acerada e perscrutadora que esconde, com pudor e alguma malícia, o seu talento de artista plástico, um erudito sólido que faz, com desenvoltura, poesia e romance, um provocador profissional que ama o convívio e sabe cultivar as amizades, um professor que gosta de desarrumar a sabedoria estabelecida e convida à irreverência fundamentada, em suma, um cavalheiro de opinião diferente, sempre preparado para nos contradizer, com um sorriso malicioso e uma voz mansa que amacia o tumulto...
O Alfredo Margarido que primeiro me apareceu, vivia eu então numa África onde, aliás, nasci, filho e neto e bisneto de quem lá nasceu, o Alfredo Margarido com que primeiro contactei foi o do celebrado (e longo) prefácio à antologia de poetas de Moçambique, que viu a luz em 1962.
Detentor, eu, de um espírito livre – para mim, havia várias moradas para a poesia, e todas elas legítimas – a aproximação rigidamente normativa do texto de Margarido – “Ora o que se procura é uma poesia que assente...” – ia ferir o meu implacável amor à liberdade de criação. E também me parecia que o enfoque daquele prefácio iria servir de pára-raios para muita mediocridade bem intencionada.
Claro que o Alfredo também o sabia, mas a sua luta era outra. Como ele próprio mais tarde dirá, no prefácio de 1980 à sua colectânea de ensaios – Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa -, “as literaturas das nações africanas podiam merecer alguma simpatia piedosa, mas não podiam ser entendidas como literaturas no sentido pleno da expressão”. Ora era precisamente aqui que nos separávamos: a minha simpatia levava-me ao exercício de uma atenção carinhosa prestada a literaturas incipientes que mereciam pouca ou nenhuma atenção de quase toda a gente – mas nunca a uma avaliação de que estivesse ausente alguma exigência estética; a “simpatia piedosa” do Alfredo inclinava-o a valorizar certos textos, mesmo sabendo (e como o sabia, com a sua imensa cultura e o seu gosto certeiro!) que deles se ausentava, muitas vezes, o mais elementar teor de arte... Tudo quanto se pode dizer é que o Alfredo era, de nós dois, o mais generoso e, eu, o mais exigente. Não vem disto grande mal ao mundo, penso eu, mas, naqueles tempos de mais juventude na guelra e menos sabedoria de viver, aquelas diferenças pareciam montanhas intransponíveis! Bons tempos, meu caro Alfredo: éramos menos sábios mas éramos também mais novos...
Recordar estas coisas não é, contudo, o meu propósito. O meu gosto seria achar maneira de prestar aqui uma homenagem bonita ao eterno gavroche que é o Alfredo Margarido. E lembrei-me de que a melhor homenagem que poderia prestar a este exímio e estimulante espírito de contradição seria contradizê-lo eu, ainda que em termos de amizade, e provocá-lo a responder-me, arrancando do seu saco de munições algumas com que derrube, as minhas atrevidas asserções. Aí vai.
No prefácio de 1980 ao livro citado, e depois de ter clarividentemente estabelecido a diferença entre “literaturas africanas de expressão portuguesa” e “literaturas dos países africanos de língua portuguesa”, rejeitando o primeiro modo de definir e acolhendo, com bom acervo de razões, o segundo, Alfredo Margarido desenvolve o seu pensamento, concluindo que “estamos face a um problema de autonomização definitiva destas literaturas, que um sistema minorativo, ainda demasiado neo-colonialista, tem vindo a impedir.” E acrescenta logo a seguir: “Creio que está chegando o momento em que a autonomia será total, e deixará de se recorrer a estas expressões genéricas.”
Ora bem, o meu ponto de vista é que não há, nas literaturas, “autonomias totais” e que não são os colonialismos os responsáveis por essa falta de autonomia “total”. Nenhuma literatura – nem a inglesa, nem a alemã, nem a francesa, nem a espanhola, nem a portuguesa se podem gabar de “total” autonomia. Os autores, os movimentos literários, os “ismos” transmigram de país para país e os grandes escritores de um país ouvem, com atenção, vozes de outras latitudes e outras longitudes. Goethe dizia que, a ele, tudo o influenciava e, em conversa com Eckerman, trata por tu Shakespeare, Molière, Walter Scott, etc. O romantismo português não é totalmente autónomo, como o não é o francês ou o inglês ou o espanhol. Nem faz mal que o não seja. Claro que o romantismo se veste, em cada país, de especificidades próprias, mas do que ele se não pode gabar nunca é de uma autonomia “total”. Nem sei se seria conveniente ou vantajoso que pudesse. Exigir de literaturas que há pouco “começaram” o que se não pode (nem deve) exigir de outras bem mais idosas e bem assentes seria exigir o impossível (e, já agora, o indesejável....)
Eis, em resumo, meu caro Alfredo, a homenagem - provocação que lhe dedico. V. saberá reduzir a pouco a minha asserção. Mas o que eu queria mesmo era pedir-lhe que reunisse em livro (ou livros) tantos dos seus fulgores dispersos por jornais, revistas e separatas, de difícil consulta. Não haverá um, ou dois, ou três dos seus ex-alunos que possam dedicar-se à beneditina tarefa de dar volume e estrutura ao muito que Você andou por aí a semear? E não seria curial dar uma equivalência qualquer (mestrado por exemplo) a essa tarefa necessária e até urgente? Tanto mestrado se faz sobre o sexo dos anjos...porque não valorizar tarefas deste gosto? Aqui deixo a sugestão e mais um abraço amigo (até ao meu regresso de Cuba).
Seu,
Eugénio Lisboa
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