sexta-feira, 12 de novembro de 2010
O Tio Rómulo
Crónica publicada no jornal electrónico "Boas Notícias":
Vasco está tonto. Não tonto de tolice, que lá tolo é que ele não é. Pelo contrário, está tonto de andar com a cabeça às voltas. Não às voltas como a Lua ao redor da Terra. Às voltas com os poemas que o tio Rómulo lhe está a ler, numa noite de lua cheia, à soleira da porta para aproveitar o Veranico de São Martinho dito.
“Então não é que é a Terra que anda à volta do Sol!”, diz o tio com ar de provocação depois de ler “Um Poema para Galileu”, de António Gedeão. “Mas isso”, exclamou Vasco, “não faz nenhum sentido aos sentir dos meus olhos!”
“Sou capaz de jurar a pés juntos que o Sol nasce a nascente e se põe a poente, e que faz isto a girar por cima do horizonte, lá em frente no palco do mundo! E sou capaz de jurar que de noite, o Sol passa por de baixo da Terra para, no dia seguinte, e depois do galo capão cantar, voltar a despontar em alvorada de novo a nascente.”
“Não”, diz o tio Rómulo com voz certa da verdade que há nos homens de ciência e, claro, também nos poetas. “É exactamente o contrário. E é a ciência que nos ajuda a discernir, sem ilusões e preconceitos, a aparência criada só pela simples observação.”
“É preciso questionar e planear novas e minuciosas observações, para chegar a constatações a que qualquer um pode chegar, se fizer as mesmíssimas observações.” “E é preciso experimentar, a ideia que temos das coisas que nos rodeiam, para a despir de aparências e ilusões.”
“Mas o que vejo não é real?”, pergunta Vasco intrigado. “Se os sentidos são reais, Vasco? Sim, claro que são e ainda bem que são”, afirma o tio Rómulo. “Mas a maravilha dos sentidos está mais em deixar o cérebro também ver, ouvir, cheirar... Para depois fazer a pergunta certa, a que abre novos horizontes e desvenda o que antes parecia pura contradição.”
“E a magia deixa de estar no fenómeno e passa para o deslumbramento das ideias e do sonho…”, continuou o tio Rómulo. “Sim, porque como diz o poeta no outro poema, o da ‘Pedra Filosofal’, é o sonho, essa essência neuronal, é o sonho que comanda a vida. Mas depois do sonho nos transportar através de aparentes contradições, surge a curiosidade de experimentar a eventual ideia que dele emerge!”
Vasco está estupefacto. Nos seus olhos cintila o brilho das estrelas, o rosto prateado pelo Luar. “Os homens sonharam ver mais e mais para além e aquém do que os olhos vêem”, continua o tio Rómulo e levanta-se. “E o Homem do primeiro poema, o pisano Galileu Galilei, depois de muitas e persistentes observações dos satélites e das estrelas, fez cair uma secular ilusão: a de o Sol rodar em torno da Terra. Pelo contrário,” realça o tio Rómulo, “é a Terra que gira à volta do Sol e à razão de trinta quilómetros por segundo!”
Rómulo, ergue as duas mãos e deixa cair uma castanha e um grande pião. E não é que caíram ao mesmo tempo no chão! “Sabes que o mesmo acontece com todos os corpos com massa, independentemente do seu peso?” perguntou o tio. “Todos caem dependendo, não do seu peso, mas da razão directa do quadrado dos tempos.”
“E é pela mesma acção da força da gravidade, que atrai a castanha para o chão do planeta e este para o fruto, que a Terra gira em torno do Sol”. O tio Rómulo fita o enxame estrelado da Via Láctea no espaço sideral e diz: “E Sol e Terra, juntos, giram por sua vez à volta de outros sóis, sob essa força de atracção, a da gravidade, que atrai os corpos com massa na razão inversa do quadrado das distâncias.”
“Por isso, é que estamos sentados na soleira da porta e não a voar em direcção às estrelas longínquas, astros que nos iluminam com o brilho do seu passado.”
“Mas podemos sonhar que voamos sem ainda o fazer?”, pergunta Vasco. “Sim”, responde Rómulo, “através do sonho conseguimos, pois ´o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer`”.
António Piedade
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14 comentários:
A VIDA COMANDA O SONHO
Mais do que o sonho a comandar a vida
está minha vontade, o meu querer,
que à sua frente leva de vencida
quanto, no fundo, o possa entorpecer.
É bonito sonhar de olhos abertos
perante a mais banal realidade,
mas é preciso dar os passos certos
para atingir qualquer finalidade.
Venha o sonho dourar em cada dia
meus actos, meus projectos pessoais
como se fossem pura fantasia!
As coisas mais concretas e reais
não devem prescindir da Poesia
que lhes confere a luz dos Ideais!
JOÃO DE CASTRO NUNES
Acabei de ler dois poemas.
Um em prosa outro em verso.
E de ambos gosto por igual.
Aos que postam e aos que comentam neste blog
"Um dia a maioria de nós irá separar-se.
Sentiremos saudades de todas as conversas atiradas fora,
das descobertas que fizemos, dos sonhos que tivemos,
dos tantos risos e momentos que partilhámos.
Saudades até dos momentos de lágrimas, da angústia, das
vésperas dos fins-de-semana, dos finais de ano, enfim...
do companheirismo vivido.
Sempre pensei que as amizades continuassem para sempre.
Hoje já não tenho tanta certeza disso.
Em breve cada um vai para seu lado, seja
pelo destino ou por algum
desentendimento, segue a sua vida.
Talvez continuemos a encontrar-nos, quem sabe... nas cartas que trocaremos.
Podemos falar ao telefone e dizer algumas tolices...
Aí, os dias vão passar, meses... anos... até este contacto se tornar cada vez mais raro.
Vamo-nos perder no tempo...
Um dia os nossos filhos verão as nossas fotografias e
perguntarão:
Quem são aquelas pessoas?
Diremos... que eram nossos amigos e... isso vai doer tanto!
- Foram meus amigos, foi com eles que vivi tantos bons anos da minha vida!
A saudade vai apertar bem dentro do peito.
Vai dar vontade de ligar, ouvir aquelas vozes novamente...
Quando o nosso grupo estiver incompleto...
reunir-nos-emos para um último adeus a um amigo.
E, entre lágrimas, abraçar-nos-emos.
Então, faremos promessas de nos encontrarmos mais vezes daquele dia em diante.
Por fim, cada um vai para o seu lado para continuar a viver a
sua vida isolada do passado.
E perder-nos-emos no tempo...
Por isso, fica aqui um pedido deste humilde amigo: não deixes que a vida
passe em branco, e que pequenas adversidades sejam a causa de grandes tempestades...
Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem
morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!"
fernando pessoa
Meu caro e admirado Dr. João Boaventura:
Que pena que Fernando Pessoa não tivesse conhecido... o amor! JCN
Os verdadeiros amantes,
o tempo nunca os separa:
permanecem como dantes,
quando a vida os enlaçara!
Caro João Boaventura:
O poeta Pessoa era assumidamente um fingidor.
Provavelmente um fingidor autêntico, com as inevitáveis dores...
Mas, vá eu para onde for, esteja onde estiver, enquanto a lucidez e a memória me não atraiçoarem para lá de certos limites, já ganhei muito com a sua contribuição neste extraordinário (e muito higiénico) espaço.
Por isso aqui venho tantas vezes, à procura de tantos amigos. Amigos como o João Boaventura.
E, não o conhecendo pessoalmente, deixo-lhe um abraço.
E um obrigado.
Caro José Batista da Ascenção
A minha ideia foi a de trazer um pouco de paz entre os comentadores mais recalcitrantes, e para que, embora nos não vejamos, nos imaginemos olhando o interlocutor com quem trocamos ideias, olhando como se fosse um amigo.
É essa a penas a intenção, a de aportar alguma calma e algum discernimento nas matérias que abordamos, cada um exteriorizando as suas ideias, e o poema de Fernando Pessoa parece transportar-nos
para o tempo que vai acabando, para o tempo em que cada um de nós, deixou um rasto amigo por ténue que seja.
Um abraço para si.
Caro Professor JCN
Estou em falta consigo, porque volta que não volta, fala-me, como em à parte, e nunca retribuo a atenção.
E nem por isso, o meu amigo, deixa de me demonstrar a sua atenção, olhando-me frente a frente, com espírito olímpico de quem não espera retribuição. Fá-lo porque lhe está no seu espírito aberto, na sua forma de se dar como numa sinfonia - ou não o fosse na sua poesia - sem parar, sempre a caminhar em frente, sem aguardar a cortesia de um simples aceno.
Talvez porque já nos conhecemos de longa data, e nos cruzámos em muitos postes e em muitas ruas (os comentários), trocámos já muitas palavras sobre vários assuntos, e um deles, o mais demorado, foi o das origens de Staline (judeu e português de raiz), lembra-se ?
Sempre com lhaneza, sem pressas, sem precipitações, como se o tempo não parasse no tempo, aguardando a resposta, a contra-proposta, o inesgotável assunto que prende e se arrasta.
Porque estou em falta consigo aqui me redimo, com a certeza de que já me perdoou, com a sua persistência e a sua generosidade.
Um abraço para si.
Sonho. Não Sei quem Sou
Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma não tem alma.
Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho ser nem lei.
Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
Coração de ninguém.
Fernando Pessoa,
in "Cancioneiro"
AUTENTICIDADE
Não pretendas, Pessoa, atribuir
a todos os poetas em geral
a tua propensão para fingir
o teu estado de alma pessoal!
O poeta não precisa de mentir
perante o seu leitor habitual,
devendo apresentar-se ao natural
na sua forma própria de sentir.
Assim procedo impreterivelmente,
como aliás fizeram todos quantos
a nu se revelaram nos seus cantos.
Guarda essa teoria para ti
e deixa-me expressar, como até aqui,
o que a minha alma na verdade sente!
JOÃO DE CASTRO NUNES
Meu caro Dr. João Boaventura:
Ainda não desesperei de encontrar entre os meus desodenados papéis, entre os quais a abundante correspondência trocada com o Dr. Montezuma, as referências bibliográficas sobre a remota origem portuguesa do georgiano Staline. Pode crer! JCN
A tragédia do Pessoa
e que no fundo o magoa
foi não ser considerado
o Poeta oficial
do Estado Novo, que mal
se apercebeu, por seu lado,
do seu génio pessoal!
JCN
Meu caro Professor JCN
Longe de mim a insinuação da retoma do caso Staline.
O tê-lo abordado foi porque me ficou na recordação a acalmia do diálogo que trocámos neste blog, sem qualquer irritação, sem qualquer precipitação, ou ofensas, como se tivéssemos navegado em mar calmo, sem ondas, sem tempestades que obnubilassem o pensamento ou as ideias.
Queríamos apenas chegar a uma conclusão e descobrir o fio da meada genética de Staline, porque o tema se tinha proporcionado, e já nem sei a propósito de quê.
Portanto, agradeço que compreenda o ponto principal do nosso diálogo, a referência que ficou como marca: as "good manners" que pautaram, mais do que a competitividade, a emulação pela descoberta.
Posto isto, concluo que fiz mal em abordar o assunto, que me obrigou a este reparo.
Com um grande abraço.
Meu caro Dr. João Boaventura:
Em prosa ou verso, ao som do cavaquinho ou do violino, é sempre uma delícia dialogar consigo, mesmo quando, aqui ou além, surja uma ponta de ironia a aligeirar a conversa, quase sempre à roda de temas sérios e pesados. Aturde-me a sua inesgotável erudição e fluência de estilo e bem dizer, qualidades hoje tão raras de encontrar. É bom ter um interlocutor da sua craveira intelectual. Quem havia de dizer que Staline nos havia de pôr a conversar a propósito da sua remota, mas veraz progenitura portuguesa! Caso para se repetir, à saciedade, que a amizade tem razões... que a razão desconhece! Que tortuosos são por vezes os seus caminhos! Desculpe estas reminiscências ciceronianas, tão do gosto dos actuais humanóides. Muito cordialmente,à laia dos humanistas. JCN
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