terça-feira, 31 de agosto de 2010

Não tem sentido falar de decadência da nossa universidade

Numa altura em que se começam a fazer balanços sobre a reforma do ensino superior, reproduzimos um texto de António Manuel Baptista sobre a universidade, na sequência de um outro que aqui publicámos.

"Na verdade, não podemos falar de decadência das nossas universidades, até porque não pode haver decadência onde nunca houve excelência. Existem, sim, maiores ou menores períodos de insuficiência, degradação e corrupção.

Actualmente, estamos a atravessar um período reconhecidamente difícil. Um ensino já extremamente carenciado em homens e meios, desde há séculos, veio a ser ainda mais perturbado pelo afluxo de uma população numerosíssima de alunos. Os problemas são aqui semelhantes aos que ocorrem por toda a parte, mas o nosso país estava, em particular, muito mal preparado para enfrentar um choque que continua a abalar fortemente outros países com estruturas educacionais muitíssimo mais poderosas, alicerçadas numa tradição de excelência forte, quase inexistente entre nós.

Fundaram-se apressadamente novas instituições, intituladas universidades, para acolher essa numerosa população para quem um diploma universitário parecia, razoavelmente, como que uma chave para um futuro mais desafogado. No entanto, as construções físicas, apesar de tudo fáceis de erguer, reflectem certamente a cultura prevalecente, sendo embora mais fácil adquirir salas e mobílias do que planear laboratórios e centros de investigação, e tudo isto ainda muito mais fácil de conseguir do que formar os docentes-investigadores para povoarem os laboratórios para essa multidões de alunos. Aliás, sem estes docentes-investigadores na mira dos fundadores de universidades é impossível planear e construir os centros de estudo e investigação, cerne de qualquer instituição universitária (…).

Importa esclarecer que, quando nos referimos à investigação fundamental ou básica como a investigação própria da universidade, não queremos dizer que esta se divorcie da tecnologia, da agricultura, da medicina, da arquitectura, da engenharia, enfim, de todas as ciências aplicadas. O que importa é defender um certo distanciamento desses interesses dos da exploração comercial ou industrial directa do conhecimento adquirido, não porque ele não seja importante (pelo contrário), mas porque a sombra utilitária tem efeitos poluentes culturalmente indesejáveis. Não falo em nome de qualquer snobismo cultural que considera a utilidade corruptora da qualidade.

Pelo contrário, é sempre desejável que os resultados das investigações possam encontrar aplicações e, assim, contribuam para o progresso económico e a qualidade de vida da comunidade. A preocupação com a utilidade da ciência é contemporânea com o nascimento da ciência nova com Galileu. Ele defende a ciência «não para fazer da mente [...] mas para benefício e uso da vida [e] [...] o seu verdadeiro e legítimo objectivo não é outro senão este: que a vida humana seja dotada de novas descobertas e poderes» (…). Compreende-se esta posição como uma reacção violenta a extremos quase caricaturais de uma ciência que chegou a recusar, como contaminante espiritual, qualquer possível aplicação e que chegou a refugiar-se, por isso, num pensamento racional que recusava a experiência.

Quando muito, aceitava-se a observação astronómica, pois estão longe, intocáveis, as estrelas longínquas, que, assim, não podemos perturbar com o nosso hálito impuro. Por outro lado, justificar a ciência, como dizia René Dubos, «pelos seus produtos mundanos é uma tentativa semeada de perigos. Não apenas compromete a honestidade intelectual da comunidade científica [e] ajuda a fomentar entre os leigos algum desprezo pela própria ciência [...]. A longo prazo o apelo exclusivo ao utilitarismo pode bem fazer perigar o futuro da ciência e a sua própria existência.»

E aqui temos dois pólos de uma tensão que faz oscilar os modos de pensar a relação entre a ciência e as suas aplicações (…). Por outro lado, temos de insistir em que todo o conhecimento novo, independentemente da sua utilidade, é um cimento cultural poderosíssimo (...).

Há exemplos notáveis de certas áreas disciplinares se terem desenvolvido apenas porque alguém teve a visão e a sensibilidade – derivadas de uma experiência de investigação não motivada senão pelo desejo de conhecer – de que elas teriam um potencial de desenvolvimento extraordinário numa dada época histórica (...).


E assistimos ao fenómeno que se traduz numa nova caracterização, ou descaracterização, das funções das universidades, classificadas em dois grandes grupos: as universidades de investigação e as universidades de ensino designações que, por razões várias, algumas derivadas de uma má consciência, não foram ainda adoptadas no nosso país. Este exercício em nomenclatura não é inocente. Vivemos numa época em que o termo elitismo é repulsivo, excepto, curiosamente, quando se refere aos grupos desportivos, em particular, no nosso país, do futebol. Seria impensável para o honesto democrata cidadão português que as exigências feitas para a selecção e formação de um jogador de futebol, o seu treino, as condições de trabalho, a competência dos treinadores, a organização dos serviços de apoio, o espírito de grupo, as remunerações correspondentes dos agentes, tivessem paralelo num sistema educativo para os seus filhos (...)."

Referência completa: Baptista, A. M. (1998). Ciência, universidades e universidades portuguesas. A. M. Baptista. A ciência no grande teatro do mundo. Lisboa: Gradiva, Capítulo 6, páginas 171 e seguintes.

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