quarta-feira, 11 de agosto de 2010
A CIÊNCIA ABERTA E OS SEUS INIMIGOS
Excerto do meu livro (esgotado) "A Coisa Mais Preciosa que Temos" (Gradiva):
A ciência começou por ser espectáculo. A pedra-imã que atraía metais e a água metamorfoseada em cristais de gelo foram, desde a Idade Média, mostrados nas feiras a um público boquiaberto. Em Portugal, não houve esse espectáculo, se descontarmos as breves exibições de ciência experimental no palácio real no século XVIII. E, infelizmente, muito menos houve ciência: é difícil encontrar algum cientista português no século XIX, quando a ciência era uma actividade reconhecida e praticada na Europa civilizada (em vão se vai, por exemplo, à “História de Portugal”, coordenada por José Mattoso e publicada pelo Círculo de Leitores, à procura de um cientista português oitocentista).
No século XIX o espectáculo da ciência alimentou a curiosidade de muitos espectadores a respeito do funcionamento do mundo, fazendo despertar vocações. Ficaram famosas, por exemplo, as conferências do químico inglês Sir Humphry Davy, na Royal Institution de Londres que atraíram um rapaz que, apesar de ter apenas a escola primária, se tornou o maior cientista do seu tempo, Michael Faraday. Mais tarde, Faraday, não esquecendo as suas origens, fez questão de proferir muitas conferências para jovens, acompanhadas de "shows" de demonstrações, e complementadas por livros de divulgação. A mensagem da ciência que recebeu foi transmitida a outros. Ainda hoje podemos assistir a conferências com demonstrações experimentais na Royal Institution, num teatro por cima do velho laboratório de Faraday. É graças à curiosidade dele sobre a relação dos magnetes com os fios eléctricos que hoje temos a electricidade doméstica, o motor eléctrico, e outros artefactos da civilização. Na procura incessante da unidade das leis físicas, Faraday também se interessou pela relação entre as forças eléctrica e gravítica, mas esse estudo não teve resultados palpáveis. O problema era difícil... Einstein, confiante no sonho de que "só há uma força", trabalhou longamente no assunto (foi o problema que mais tempo o ocupou) mas pouco adiantou. É um problema que foi legado aos cientistas de hoje e que parece legado aos cientistas de amanhã.
Repare-se que Faraday não andou a preencher papeis para nenhuma agência de investigação do tempo dele, para resolver o problema da iluminação das ruas de Londres. Se o tivesse feito, as suas ideias teriam decerto sido chumbadas por sábias comissões, que achariam melhor deixar a electricidade de lado e melhorar o funcionamento dos candeeiros a gás. James Clerk Maxwell, o escocês que, na sequência dos trabalhos de Faraday, descobriu a relação entre o electromagnetismo e a luz, também não se moveu por interesses técnicos ou económicos ao continuar em adulto a colocar algumas questões que já o preocupavam em adolescente. Nem mesmo o alemão Heinrich Hertz, o descobridor das ondas hertzianas, teve por fito a comunicação à distância ou a produção de programas radiofónicos ou televisivos (objectivos que, na época, teriam sido declarados insanos por qualquer avaliador científico!). Apenas continuou a "fazer com as suas próprias mãos" e a "pensar pela sua própria cabeça", como já fazia em pequeno. O espectáculo de meia dúzia de feirantes com os magnetes conduziu, ao arrepio de todas as expectativas, ao espectáculo audiovisual que hoje nos entra pelas nossas antenas dentro.
Em Portugal não tivemos uma revolução industrial que se visse, pelo que importámos a electricidade e a telefonia sem percebermos qual era a sua origem nem desmontarmos os seus mecanismos internos ("Quem não admirará os progressos deste século?", repetia, fanhosa e estupefacta, a grafonola de Eça de Queiroz). Do ponto de vista científico e tecnológico, o nosso século XX foi, na sua maior parte e infelizmente, a continuação do século XIX. A excepção de um Prémio Nobel da Medicina (Egas Moniz) limita-se a confirmar a regra geral. Só há pouco tempo alguns sinais anunciam a possibilidade de um futuro diferente.
A educação científica, essencial para o desenvolvimento humano, é, entre nós, mais do que noutros lados, onde há outras tradições, um requisito para ganhar o futuro. Mas desde sempre, pior ou melhor, se ensinou em Portugal o produto da ciência. O que não se cultivou foi a prática da ciência. Vários caminhos se nos oferecem hoje para fazer vingar a atitude científica. Fomentar a curiosidade, que é natural nas mentes mais jovens, a respeito do funcionamento das coisas, é uma das vias mais frutuosas que temos à nossa disposição. Os livros de divulgação, as exposições interactivas de ciência, os filmes científicos, os programas científicos no computador, os museus científicos e técnicos, os programas de rádio e televisão, os dias de portas abertas de universidades e laboratórios, todos estes são meios que servem para mostrar uma ciência feita por mulheres e homens normais (portanto, muito diferentes do Prof. Pardal, que passa a vida a tropeçar em tralha e a inventar a roda quadrada).
Em Portugal, o Ministério da Ciência e da Tecnologia criado em 1996, ao qual sucedeu o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, tem defendido uma ciência aberta, democrática e participada. Está consciente que alimentar a curiosidade das crianças e jovens é a chave para instaurar na sociedade uma atitude científica. Mas muitas e variadas dificuldades se têm deparado.
Há vários inimigos da ciência. Eles encontram-se, por exemplo, nos prosélitos das pseudociências e das paraciências. Mas encontram-se também entre aqueles, alguns deles aparentemente cultos, que não vêem diferença entre a astrologia e a astronomia. E noutros, habilitados com cursos superiores, que ministram alquimias pedagógicas. Entre as dificuldades à ciência aberta deve referir-se uma em particular que diz respeito aos próprios cientistas. A nossa comunidade científica, que é relativamente pequena e recente, conserva ainda algumas idiossincrasias, provenientes do tempo em que a ciência escasseava e alguns cientistas eram mandarins. A ideia de uma ciência aberta é ainda estranha a alguns deles. Então não há cientistas que julgam que a excelência da sua ciência é directamente proporcional ao défice de comunicação? Pois bem: Se não forem capazes de atraírem jovens é bem feito que fiquem sem continuadores. E, se não forem capazes de transmitir aos cidadãos, de uma maneira simples e clara, para que querem o dinheiro dos impostos que estes pagam, é bem merecido que fiquem sem financiamento. Os cidadãos são inteligentes, entendem o que lhes dizem (quando lhes dizem alguma coisa de forma clara), e não gostam de passar cheques em branco.
Mas há, felizmente, quem comunique o que sabe e o que quer saber, não só para os seus alunos como para o público. A ciência está aberta e recomenda-se a entrada!
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11 comentários:
texto maravilhoso, por tocar o que julgo o cerne da problemática do Vosso "negócio" - a CIÊNCIA -
A CRIANÇA
sensibilizar a rapaziada de Escola, que é aí a verdadeira sede do espírito de inovação.
Veja, Professor, quantos programas de entretenimento na Televisão - tudo comprado à Endemol, aos não sei quê, aos não sei que mais.
Milhões de euros que vão para o estrangeiro.
Façam concursos entre essa miudagem criativa: queremos um jogo árabe em que entre um camelo, um jogo de sabre virtual, uma travessia de deserto em busca de oásis. Com vários obstáculos
mais o que você pense possa pensar
com o seu gosto pela Ciência e Pedagogia/
deve ser difícil
viver
nesta enxovia
um abraço amigo
Ah, se quiser dar uma vista de olhos no meu
"h-ortografias"
vai ver aí minha inovação de banheiro instalada hoje mesmo
renovo abraço
O Meu Olhar
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...
Alberto Caeiro
a Ria formosa está a ser atacada os cavalos marinhos desapareceram 85% em 5 anos, a biodiversidade é cada vez menos mas a CMO faz esgotos dentro das aguas da Ria Formosa e joga esgotos para dentro dela como se pode ver no blog onde eu sou um dos autores. as etars poluem mais que nunca, e em vez de tratar os esgotos ,jogam veneno para a ria matando tudo por onde passam.
Sempre me fiz a seguinte pergunta: se, até eu, que não sou figura pública, gosto de entregar os meus poucos textos o mais isento de erros possível e, por isso, os faço passar pelo crivo do simples corrector ortográfico do MS Word, como é possível que em textos públicos, de figuras públicas, surjam erros de palmatória como «candeeeiros» com um «e» a mais, «insanes» por insanos e «idiosincracias» por idiossincrasias.
Um magnífico texto! Mas não concordo quando diz que a ciência está aberta. Aqui me apresento, bióloga marinha de licenciatura que decidiu seguir um mestrado em ecologia marinha...sem emprego na área com que sempre sonhou.
Sim, a ciência está aberta...mas é só para os que arranjam cunhas.
Senhor Professor:
Concordo com o essencial do seu comentário. Permito-me, apenas, discordar da apreciação que faz do século XIX português. Não o faço por conhecer quaisquer cientistas de grande relevo, o que não é o mesmo que dizer que não houve cientistas, mas sim por achar necessário considerar alguns aspectos de contexto.
Poucas pessoas, incluindo os contemporâneos, foram suficientemente justas em relação a esse período da História de Portugal. Recordemos a primeira metade do século XIX português: invasões francesas, saída da Corte para o Brasil, revolução liberal e revoltas absolutistas, guerra civil, Maria da Fonte e Patuleia, golpes de estado de todas as cores, guerrilhas. Não poderia ter sido pior, o ponto de partida!
A segunda metade do século é, com as suas insuficiências, incomparavelmente melhor. E Portugal foi sendo dotado de instituições de investigação (muitas delas a expensas da Casa Real) que fizeram o seu caminho. Veja-se o caso do Observatório Astronómico de Lisboa.
Em conclusão: quando um mínimo de estabilidade social é assegurado,a Ciência (e a técnica) ganham raízes. Em Portugal como alhures.
Grato pelos
De uma maneira e de outra, cada um com o seu estilo, alguns leitores têm-me feito chegar correcções de forma ou de conteúdo. A todos estou grato. Quanto aos comentários, também tenho beneficiado de alguns bem oportunos. Cordialmente,
Carlos Fiolhais
Senhor Professor:
Julgo não estar só quando lhe agradeço este espaço de aprendizagem e conhecimento que a leitura do seu blogue constitui. Isso sim, é motivo de gratidão.
só que agora a ciência não quer dar , quer vender , quer lucrar. e raios partam a ciência. já não me serve , anda à espera que eu a sirva. pois pode esperar sentada.
Professor Carlos Fiolhais, o senhor é das pessoas que mais aprecio ler. Pelo interesse dos temas que expõe e pelas suas atitudes «anti banha da cobra» e «anti erro». Somos aliados de sangue nestas duas últimas guerras. Mas fiquei agora a saber que, para além de todas as suas outras virtudes, tem também a virtude de ser «teimoso como um mu». Então não é que ainda não colocou na sua «cheklist» a notinha para «usar corrector ortográfico» nos seus textos?! Porque, veja bem, se é facto bem visível que os «candeeiros» já alumiam melhor e que os insanos «insanes» foram saneados, também é facto que ainda não se conseguem avaliar todas as idiossincrasias do seu texto, obscurecidas que estão por umas quaisquer «idiossincracias» de etimologia duvidosa. Errar é humano, reincidir no erro é… :-)
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