sexta-feira, 13 de agosto de 2010

COMO EVITAR OS ERROS

Há erros que são absolutamente intoleráveis. Ocorre o exemplo recente dos erros médicos na clínica oftalmológica I-Q Med de Lagoa, no Algarve, que levaram vários pacientes à cegueira em casos que eram, aparentemente, de rotina. Como evitar esses e outros erros semelhantes?

Os erros numa prática profissional como a médica podem acontecer por desconhecimento das boas práticas ou porque as práticas não são boas, apesar de haver conhecimento delas. No primeiro caso, pouco há a fazer a não ser retirar a licença profissional aos responsáveis (nunca a deveriam ter obtido!). No segundo caso, deve-se melhorar as práticas de modo a evitar os erros que se sabe acontecerem mais frequentemente do que seria desejável. São mesmo inevitáveis, pois como diziam os antigos “errare humanum est". Porém, um erro significa sempre uma oportunidade de aprendizagem no sentido da sua correcção.

Acaba de ser publicado, pela editora Lua de Papel, do grupo Leya, um livro que ensina como evitar erros médicos ou outros. O título é elucidativo - “O Efeito Checklist” - assim como o subtítulo - “Como aumentar a eficácia”. Quer dizer, para evitar erros em situações de alguma complexidade não há nada como seguir uma lista de verificação ou de controlo e colocar um V item após item. Se acaso acontecer um erro novo, correspondente a uma violação de uma regra que não estava na lista, a solução é simples: tem de se aumentar a lista, para que o mesmo erro possa ser prevenido.

O autor de “O Efeito Checklist” é um medico norte-americano bastante mediático, de seu nome Atul Gawande. Ocupa um lugar de professor catedrático de Medicina na Universidade de Harvard, em Boston, escola onde ele também se formou e que costuma aparecer no topo dos “rankings” mundiais de universidades. Com uma extensa experiência em cirurgia geral, a sua especialidade é a remoção de glândulas endócrinas cancerosas, como, por exemplo, a tiróide. Para além da sua experiência clínica, o Doutor Gawande tem também experiência de escrita pois eé autor convidado na revista cultural “New Yorker” e tem uma coluna na prestigiada revista médica “New England Journal of Medicine”. Em português já é o terceiro título dele que sai do prelo da mesma editora: os outros títulos são “A mão que nos opera” e “Ser bom não chega”.

A tese do autor defendida no novo livro resume-se de uma forma muito simples. Em situações complexas, melhor do que confiar na memória, é seguir escrupulosamente as indicações de uma lista. Ele próprio introduziu esse procedimento na rotina cirúrgica de vários hospitais espalhados pelo mundo.

O Doutor Gawande é tão bom com a pena com é como com o bisturi. E os seus comentários escritos são tão afiados como o instrumento cirúrgico a ponto de o livro vir recomendado por nomes sonantes da prosa jornalística como Steven Levitt, autor de “Freaknomics”, e Malcolm Gladwell, autor de “Blink”.

Os exemplos médicos são talvez os mais pormenorizados, havendo casos impressionantes como o da recuperação de uma criança austríaca que se afogou num lago dos Alpes para ser recuperada quase milagrosamente no hospital local, quando a sua vida parecia perdida. Valeram os bons conhecimentos e a boa prática de uma equipa médica a funcionar em perfeita coordenação. O autor esclarece que isso mesmo é o que tem de ocorrer noutras situação que não a medicina, como a construção de arranha-céus (hoje em dia um operário pode mandar logo uma foto digital da afixação de uma viga a um grupo de técnicos ligados a ele por redes sem fios se tiver dúvidas), em economia (os melhores financiadores de projectos inovadores avaliam onde devem efectuar os seus investimentos, a próxima Google digamos, por uma “checklist” baseada na evidência e não por mera intuição ou improviso) ou na aviação comercial (quando algo corre mal como aconteceu com o acidente do avião que aterrou no meio do rio Hudson, em Nova Iorque, a calma do piloto e restante tripulação no pleno cumprimento de um conjunto de regras de segurança indicadas para situações de emergência são factores decisivos).

A comparação entre uma crise inesperada numa cirurgia e num voo de avião é particularmente reveladora da necessidade imperiosa do cumprimento de um conjunto de regras, reunidas numa lista que deve ser escrita e não mental. Tanto num caso como noutro pisa-se o estreito risco entre a vida e a morte. E o inesperado, por sua própria natureza, acaba, por muito raro que seja, por acontecer, seja uma hemorragia num vaso vital seja a entrada de aves num reactor. O autor revela com exemplos convincentes como o seguimento de uma “checklist” permite salvar vidas. Até mesmo ele, médico experiente, conta como outras pessoas, como uma enfermeira, lhe lembraram passos da lista que ele teria saltado, por serem de necessidade improvável, mas que se vieram a revelar importantes.

Para quem pouco sabe de medicina como o autor destas linhas (que só uma vez se sujeitou a um bisturi de um cirurgião, depois de ter assinado que compreendia e aceitava os riscos da operação – o que fiz prontamente pois o médico me informou que naquele sítio e para aquele tipo de intervenção não tinha havido fatalidades), a leitura do livro foi recompensadora. Aumentou a minha admiração por aquelas pessoas que não podem errar e percebi melhor como conseguem afastar o erro para mais longe possível. E percebi também como é que certas práticas afastadoras do erro podem resultar não só em medicina como noutras actividades humanas.

Um trecho elucidativo do estilo do autor aparece no final do livro quando ele conta o rompimento ocasional que provocou na veia cava durante uma operação a um seu paciente:

“Consequentemente, quando fiz aquele rasgão e pus toda a equipa numa situação catastrófica, toda a gente manteve o sangue-frio. O enfermeiro circulante pediu mais pessoal e conseguiu o sangue do banco quase imediatamente. O anestesista começou a administrar uma unidade a seguir à outra ao paciente. Foram, recrutadas forças adicionais para trazer o equipamento complementar que eu pedira, para ajudar o anestesista a encontrar mais acesso intravenoso, para manter o banco de sangue a postos. E, em conjunto, a equipa deu-me – e ao paciente – um tempo precioso. Acabaram por fazer a transfusão de mais de trinta unidades de sangue no paciente - para começar tinha perdido três vezes mais sangue do que tinha no corpo. E com os olhos no monitor a rastrear-lhe a tensão arterial e a minha mão a comprimir-lhe o coração, conseguimos manter o sangue a circular. O cirurgião vascular e eu tivemos tempo para descobrir uma maneira eficaz de agrafar o rasgão da meia cava. Conseguiu sentir o coração do paciente a bater sozinho outra vez. Fomos capazes de suturar e fechar o orifício. E o senhor Hagerman sobreviveu”.

Houve aqui um erro reparado a tempo. E aprendeu-se com ele, de modo a não o repetir. Errar pode ser humano, mas afastar o erro para bem longe também o é. Ou melhor, isso é que é verdadeiramente humano.

- Atul Gawande, “O Efeito Checklist – Como aumentar a eficácia”, Lua de Papel, 2010.

5 comentários:

Fartinho da Silva disse...

Li esse livro e é muito bom. Aconselho vivamente.

Anónimo disse...

A única maneira de evitar o erro... é deixar a página em branco. JCN

joão boaventura disse...

Já agora, para complementar este belíssimo texto do Professor Fiolhais, acrescentar que, além de o Doutor Gawande ser “tão bom com a pena com é com o bisturi”, também é um belíssimo conversador como se pode assistir na entrevista de Jon Stewart, no The Daily Show.

joão boaventura disse...

No comentário anterior quando convido a assistir à conversação de Atul Gawande aparece apenas o site do DailyShow, contra o que eu esperava.

Para quem quiser assistir, basta inserir o nome Atul Gawande no canto superior onde aparece a palavra Search e clicar no This Site, mais à direita.

Com as minhas desculpas

Fernando Gouveia disse...

O exemplo da aviação comercial é muito bom. Eu pensava que a "checklist" estava guardada no fundo de um armário qualquer, para ser usada só em caso de emergência, mas não. Ao contrário dos filmes, parece que é usada *sempre*, mesmo nas aterragens e descolagens de rotina.
Há anos voei algumas vezes em pequenos aviões comerciais (10-15 passageiros), que não tinham separação entre os pilotos e os passageiros. Para minha surpresa, nas descolagem e na aterragem o co-piloto tinha o livro aberto sobre o colo, seguindo item por item, ao que o comandante confirmava a cada passo realizado.

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