quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Frias balas pedagógicas

José Gomes Ferreira referiu-se, em diversas passagens da sua vasta obra, a variadíssimos aspectos pedagógicos do seu tempo, mais precisamente do seu tempo de aluno. De modo enfático e no seu inconfundível estilo de escrita imprimiu uma tonalidade muito particular a esses mesmos aspectos. Sobre os exames e toda a sua envolvência, escreveu ele:

"Para atacar os exames não preciso de carregar a minha metralhadora de frias balas pedagógicas, ou de repisar argumentos já muito refervidos nos manuais da defesa da infância.

Basta lembrar-me, cerrar os olhos, diminuir mentalmente de tamanho e convencer-me de que amanhã vou tremelicar diante de três senhores de fraque no espírito que me interrogarão acerca do teorema de Pitágoras. Mal penso nisso, rompe-se-me logo na alma o desejo intenso de escrever um panfleto com este título em forma de clamor:
HUMILHARAM-ME!
Sim, humilharam-me.

Tudo o que resplandecia em nós — de belo e de moço — tombava desfeito em medo.
Aparecíamos, constrangidos e opressos, a reparar, pela primeira vez, no que havia de involuntário na vida.

Deixávamos de ser crianças temporariamente. Envelhecíamos. Arrastávamo-nos por essas ruas com armazéns pesadíssimos em cima dos ombros — a imitarem cabeças.

Por mais que estudássemos, as nossas qualidades intelectuais não se afinavam. Por paradoxo obtínhamos apenas maior exagero de sentimentos e um tal excesso de paixões que puxavam para a superfície tudo o que fervia de sórdido e de inferior na lama humana — desde a hipocrisia ao embuste.

Enquanto introduzíamos à força, no cérebro, quilos e quilos de ciência — não nos preocupávamos com outras coisas senão com cábulas, intrujices, imposturas, burlas, cartas de empenho e hipóteses reles.

Volta e meia, um de nós dizia com admiração:
— Fulano levou os teoremas de geometria resolvidos nas unhas.
— Ena!
— Sicrano pediu um copo de água e o contínuo trouxe-lhe a solução do problema num papel colado no fundo do copo.
— Caramba!

E assim entretínhamos as noites: a idear cábulas impossíveis, a conceber pequenas infâmias e a grudar na memória meia dúzia de conhecimentos fortuitos. Porque a escola, tal como hoje, já no meu tempo era a grande fábrica de ciência provisória, para esquecer.

Mas isso ainda era o menos.

O pior era que, para nós, o exame constituía a resultante lógica de nove meses de estudo, mas um acontecimento desligado, um percalço à parte, espécie de espectáculo, misto de tribunal e da câmara de torturas, cujos bons resultados da lucidez dos esforços pessoais, mas duma série envincilhante de pequenos casos onde intervinha sempre a Fatalidade.

Sobre isso, quem dispusesse de qualidades de actor e repetisse, com enfatuamento e sangue frio, o papel no estrado diante da ardósia — nada teria a temer.

Sacudia os punhos e — zás — representava o seu «número» com esmero aldrabão dum prestidigitador que extraísse frases e fitas duma cabeça vazia.

Mas os outros? Os tímidos, os gaguejantes, os não cabotinos os sem tendência para amadores dramáticos?

A esse — coitados! — não restava outro recurso senão o de se condenarem à humilhação de subir ao palco e titubearem os seus monólogos entre os bocejos dos professores, ao mesmo tempo juízes e público.

Durante meses esforçavam-se por acamar, nas cachimónias, pilhas de definições. Por fim — desiludidos vergados e sonâmbulos — apelavam para a conspiração do Milagre. Pediam às coisas que os salvassem. Deixavam-se afundar miseravelmente, sobriamente na superstição. Transformavam a vida numa máquina complicadíssima de toques misteriosos, figas, amuletos, missas, exorcismos, cruzes e bentinhos.

Eu, por exemplo, nunca me atrevia a pisar as pedras pretas. Andava pelos passeios, de olho discriminador, à procura de basalto para evitar.

Outros, quando passavam pelos postes dos eléctricos, davam-lhe duas pancadinhas à socapa com os nós dos dedos, para desviarem o destino.

Em suma: tudo o que havia de lodoso, de vil, e de apático acordava dentro de nós com raízes profundas a abrirem-se em flores de medo no silêncio dos olhos.

Tudo: a covardia, o agachamento, a resignação, a passividade, as teias de aranha. Tudo: até o ódio! O ódio ao livro. O ódio ao mestre. O ódio à cultura. O ódio à vida. O ódio total a este caricato planeta de homens com uma civilização de papagaios.

Tudo! Tudo!

Quer dizer: o exame era uma instituição nefasta, inventada de propósito para me obrigar a esquecer o pouco que aprendera à minha custa durante o ano, longe da ciência dos mestres e da pedantice dos pedagogos: a lealdade, a audácia de opinião, a firmeza de carácter, o horror à crendice, a coragem de ser eu mesmo, o heroísmo de querer um futuro novo.

Mas os professores importavam-se lá com essas bagatelas! Só davam importância aos bocados de livros que sobrenadavam dentro de mim a fingirem de inteligência, a fingirem de coração, a fingirem de alma.

(Parvos! Nunca nenhum deles percebeu que eu escrevia versos às escondidas.)"

Referência completa: Gomes Ferreira, J. (1977). Tu, Liberdade! Antologia de Ficções em Prosa. Lisboa: Editorial Caminho, pp. 36-39.

5 comentários:

Anónimo disse...

Quantos de nós, ao nosso jeito, podíamos dizer o mesmo... que Gomes Ferreira! JCN

Rui Diniz Monteiro disse...

Não conhecia este texto de José Gomes Ferreira. Ele tinha toda a razão. Tenho 52 anos e sei do que ele fala. É tudo o que ele aqui diz, mas também porque o valor da pessoa estava todo reduzido à nota do exame.
O problema que se põe, no entanto, é: como é que eu (e mais uns milhares) posso dar provas do que sei perante uma entidade objectiva e independente? Dificilmente se pode fugir ao exame. O máximo que se poderá conseguir é que ele seja apenas um dos elementos de avaliação entre outros: por exemplo, o curriculum vitae ou o portfolio. O que diminuirá a sua carga negativa e o poder que tem (tinha) para humilhar.

Anónimo disse...

E por que não, no fundamental, alterar a mentalidade inquisitorial dos examinadores e os próprios critérios de uma avalição correcta e humanizada? Há tanta maneira de julgar! Quem não recorda o escabroso caso do Prof. Pina Martins, o talentoso estudante corrido a onze valores nas suas brilhantes provas de licenciatura? Morreu em glória... para remorso e vergonha dos seus examinadores, a cuja parentela distribuiu bolsas de estudo às mãos cheias! JCN

Fartinho da Silva disse...

Este texto é um hino à preguiça, laxismo e indisciplina.

Este texto é revoltante por atacar o conhecimento e quem luta por saber mais.

Este texto representa tudo o que de mau se instalou no ensino.

Se o autor copiava nos exames, havia quem o não fizesse! Se o autor copiava nos exames, deveria ter a coragem de o afirmar nos seus textos e de o condenar. Mas não, o autor defende o "copianço" para provar que os exames eram inúteis e eram inúteis porque, segundo o autor, humilhavam as crianças e obrigavam-nas a crescer...

Enfim...

No final do texto até consegue afirmar em tom jocoso que os professores preferiam a ciência à poesia que o próprio escrevia!!!!!!!!! Espantoso!!

Infelizmente, nós (portugueses) temos preferido desde sempre a poesia e a aventura em detrimento do trabalho e da ciência. Somos um povo que prefere o curto prazo e este texto é um hino a isso mesmo.

Actualmente não há exames (a humilhação, segundo o autor), não há avaliação séria (outra humilhação, segundo o autor), o ensino infantilizou-se para que as crianças continuem a ser crianças (como defende o autor) e o resultado é que as famílias mais abastadas colocam os seus filhos nos poucos colégios privados portugueses e até em colégios fora do país, para que os seus filhos possam ter aquilo que o autor afirma ser uma humilhação...

Por alguma razão somos o país mais atrasado na Zona Euro e um dos mais atrasados de toda a União Europeia. Por alguma razão, países como Chipre, Malta, Eslovénia, República Checa e Eslováquia já nos ultrapassaram e com uma perna às costas.

Triste sina, a nossa.

Ana disse...

Brilhante texto!

Sou estudante universitária, quase a terminar o Mestrado, e não pude deixar de concordar com o que está escrito. O exame como culminar de meses de estudo perverte toda a lógica da educação. Não conta o empenho, não conta a capacidade crítica, não conta a capacidade de fazer perguntas. Alias, é comum que os alunos tenham vergonha de fazer perguntas, nas aulas, não vão ser acusados de preguiçosos ou estúpidos. Mas aprender não é isso mesmo, fazer perguntas?

"Crise da transmissão e febre da inovação"

Vale a pena ler o artigo de que reproduz a identificação ao lado.   O seu autor, o francês François-Xavier Bellamy, professor de Filosofia ...