quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Progresso e religião

Como aqui temos abordado as relações entre ciência e religião, republicamos aqui, com autorização do autor, um texto do físico Nicolás Lori, que é investigador na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, saído no "Público" em 12 de Maio passado (na foto Jürgen Habermas):

Num artigo recente de opinião no New York Times faz-se uma afirmação que a muitos promotores do "progresso" em Portugal pareceria chocante: diz-se que o que falta à cultura secular é a religião. A afirmação não é feita por uma pessoa religiosa, mas por um ateu secular e proeminente filósofo, Jürgen Habermas.

Nos seus trabalhos iniciais, Habermas deu-nos conta da sua convicção de que o papel estruturante que a religião tinha desempenhado na sociedade seria no futuro feito através de uma ética discursiva, onde a melhor resposta seria obtida através do consenso. Mas para o actual Habermas, o racionalismo falha no sentido em que não tem nenhum mecanismo para tomar consciência dos "interesses" que estão sempre presentes, com as suas implicações, mas que não são reconhecidos. Esta situação causa um problema: os Estados seculares não conseguem que os seus cidadãos se afastem do egocentrismo em direcção a comportamentos mais virtuosos.

Quando se fala do diálogo entre a fé e a razão, começa-se muitas vezes mal, quando se diz que o seu sentido é extremamente vago. O que tipicamente se está a fazer é a assumir que a fé é um estado de enamoramento com o transcendente, entendendo-se por fé o "amor que inclui o transcendente". Esta visão da fé, que penso ser a definição que as pessoas comummente usam, não é o que introduz a falta de claridade na discussão. A expressão é pouco clara, porque não explica se o diálogo é entre o amor e a razão e/ou entre o transcendente e a razão. Entendemos por razão o pensamento que tenta interpretar o universo através da dinâmica causa-efeito, sendo as causas as razões que a razão utiliza. Penso também que esta é a definição tipicamente utilizada. Uma outra definição de razão, que é menos comum mas que é muito utilizada na economia, considera não uma dinâmica causa-efeito mas uma dinâmica de efeito-causa, onde a razão tenta encontrar a causa que proporciona o efeito pretendido, sendo esse efeito a real razão da acção. A utilização destas duas definições divergentes para representar dois fenómenos muito diferentes é um defeito da linguagem comummente utilizada, porque, na prática, apenas a segunda deveria ser chamada racional (algo com o correcto balanço/ratio económico), sendo a primeira chamada "razoável" (algo que tem uma razão). Discriminando estes dois termos, podemos dizer que a razão é razoável, mas também que o amor que baseia a sua esperança no que vai acontecer e não no que aconteceu é fundamentalmente racional. O bem que o amor busca não é o dinheiro, como acontece na economia. O transcendente confronta-se com o racional no sentido de que é infinito e, por isso, não é passível de ser considerado uma utilidade. O transcendente confronta-se com o razoável no sentido de que é espontaneamente não causado, e por isso não razoável. O confronto dá-se pois entre os três elementos do triângulo: razão, amor, transcendente.

Kant considerou o conflito entre a razão e o desejo humano como a possibilidade da realização do amor e considerou-o intransponível para a prática, uma vez que tal realização necessita da existência da possibilidade de liberdade de acção, o que para ele seria incompreensível. Para que o transcendente liberte o ser humano das algemas de um futuro completamente determinado pelo passado onde o espírito humano não tem lugar ou importância, é necessário que esse transcendente limite a razoabilidade do universo e eleve a sua racionalidade. Ou, em outras palavras, que esse transcendente seja poderoso e bom. O poder do transcendente apareceria para um observador como sendo a aleatoriedade não controlável através de processos causais, e a sua bondade apareceria como uma tendência da evolução a trazer mundos cada vez melhores. Mas para que essa liberdade trazida por um transcendente poderoso e bom possa ser considerada compatível com a livre vontade é necessário, e suficiente, que essa liberdade que ocorre numa pessoa seja aquilo que constitui a individualidade dessa pessoa. Ou seja, que se considere que é o transcendente que possibilita a individualidade da pessoa. A função da religião na sociedade é pois não a busca da fé mas a religação de cada um de nós à importância do transcendente na nossa vida, e mesmo depois. Consiste em religarmo-nos, que assim aparece como a fonte da possibilidade de um equilíbrio entre a razão e o amor que é o transcendente. Para que tal aconteça, torna-se necessário um enorme esforço para que nos tornemos indiferentes às causas da razão e aos objectivos do amor. Esta busca da indiferença é, apesar das diferenças entre elas, comum a todas as grandes religiões da Terra (e.g. cristianismo, islão, hinduísmo e budismo). É este religar, segundo Habermas, que a razão secular não consegue realizar, porque essa razão é cega à sua própria necessidade de ter razões que não podem ser alcançadas por observações do passado. Esta foi a cegueira vista por Saramago, mas o que Habermas afirma é que a cegueira não é causada pela religião mas pela sua ausência.

Nicolás Lori

5 comentários:

Nuno Silva disse...

O bem que a economia busca não é o dinheiro mas sim o «bem-estar».

Elevar o bem-estar médio de uma população (no limite, de toda a população) a sua meta.

Há uma diferença muito substancial entre «dinheiro» e «bem-estar» que convém não esquecer nem subvalorizar.

Podemos aumentar ou reduzir o bem-estar com uma simples redistribuição de riqueza, que não fará subir nem descer o dinheiro existente.

E, no meu tempo, era isto que se ensinava aos futuros economistas no ISEG: que estavam a aprender a maximizar o bem-estar médio e que essa seria a sua função na vida.

Uma função que quando posta em prática é, convenhamos, até bastante filantrópica.

Tristemente, uma fatia grande dos alunos, quando na «vida real», esquece o que lhes foi ensinado e acabam a fazer exactamente o oposto, portando-se na prática como quem tirasse o curso de polícia apenas para aprender a ser melhor bandido.

«Aprendi que a livre concorrência aumenta o bem-estar médio… então vou passar a minha vida defendendo monopolistas… aprendi que o dinheiro tem uma produtividade marginal decrescente e que, por isso, alguma equidade tende a aumentar o bem-estar médio… então vou passar a minha vida defendendo açambarcadores de riqueza.»

Mas isso é defeito dos economistas e não feitio da economia.

Não se confunda.

Anónimo disse...

Haverá... confusão maior? JCN

Luís disse...

Isso da religião é treta! Transcendente?!!!

O que é necessário é repensar a educação "moral", sobretudo nos primeiros anos de vida de um indivíduo...

Anónimo disse...

Que é que vossemecê entende por educação "moral", senhor Luís? Pode saber-se? JCN

Cláudia da Silva Tomazi disse...

A questão que envolve a temática é semelhante a matemática e que permite o equilíbrio que transcende a causa. Muito simples. Uma equação quando é efetuada (geralmente têm) uma série de operações para obter um resultado. Porém, dentro da mesma equação, obtemos vários resultados independente do resultado, final. Inclusive é correto afirmar que o resultado da aritmética é anterior a álgebra de quando equação.

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Quando, em Agosto deste ano, o actual Ministério da Educação anunciou que ia avaliar o impacto dos manuais digitais suspendendo, entretanto,...