terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

DE NOVO OS "ACTOS DE DEUS"



"Actos de Deus" era o nome que tinham nas antigas apólices de seguro as tragédias naturais como as cheias do Douro que estiveram na base do acidente de Entre-os-Rios ou a recentes cheias na ilha da Madeira que, infelizmente, levaram pessoas e bens. Mas, em geral, às circunstâncias naturais acrescem os erros humanos, por acção ou omissão. Tudo leva a crer que também existiram erros desse tipo na Madeira, tal como no desastre da ponte de Entre-os-Rios. Julgo, por isso, oportuno recuperar o meu texto "Porque caem as pontes?" que saiu no meu livro "A coisa mais preciosa que temos" (Gradiva):

Desde que o homem existe sobre a Terra que vê os objectos caírem para a superfície do planeta, atraídos sem dó nem piedade pela força da gravidade. Mas só desde há cerca de trezentos anos, com os trabalhos de Galileu e Newton, é que se conseguiu, em primeiro lugar, descrever os movimentos de queda e, em segundo lugar, compreender as causas desses movimentos.

Também desde que o homem existe sobre a Terra que faz edifícios e pontes de modo que eles não caiam logo. A tecnologia da construção que permitiu as pontes romanas ou as catedrais da Idade Média foi de base empírica. Construía-se e, se a construção não caísse, então... ficava de pé. Experimentava-se tal como se faz ao provar um produto culinário. O conto de Alexandre Herculano sobre a abóbada da Sala do Capítulo do Mosteiro da Batalha é elucidativo: o arquitecto Afonso Domingues teria permanecido debaixo da abóbada para se certificar da respectiva segurança. Segundo um estudioso das catedrais góticas, as construções que não caem nos primeiros cinco minutos não cairão nos seguintes quinhentos anos... Talvez seja verdade para edifícios de pedra fundados em rocha firme. Mas há excepções, como a Torre de Pisa, erguida no século XVI e emblematicamente associada a Galileu, que não caiu nos primeiros cinco minutos mas, que devido a inconsistências do solo, tem vindo a cair desde então. Não fora a tecnologia moderna que hoje a segura e cairia rapidamente.

A tecnologia de fazer e manter edifícios e pontes – a Engenharia Civil – conheceu forte expansão nos séculos XVIII e XIX pelo simples facto de se ter percebido que a mecânica de Galileu e Newton, com as mais-valias introduzidas por outros cientistas como Hooke, Cauchy, Young, etc., permitia efectuar cálculos de forças e, portanto, conhecer antecipadamente a estabilidade estrutural de uma dada “obra de arte” (curiosa esta expressão usada em Engenharia Civil mesmo para as obras cuja fealdade é evidente). A física, cuja linguagem natural é a matemática, permitiu prever não só se uma obra teria a devida segurança mas também escolher os materiais mais adequados para a construir e a melhor maneira de ligar a forma com a função (assegurando uma verdadeira vertente estética). Como disse Franklin Guerra, em “História da Engenharia em Portugal”, edição do autor de 1995, o Eng. Edgar Cardoso passou de comboio na primeira travessia da sua ponte de S. João, no Porto, com a mesma segurança com que Afonso Domingues se teria colocado no centro da sala capitular (manda a verdade dizer que foi o mestre francês Huguet o provável autor da abóbada onde Herculano decidiu colocar Domingues, o arquitecto-geral da obra).

No século XIX, o ferro passou a ser material de construção das pontes, complementarmente à pedra ou mesmo substituindo-a totalmente. Sintomático da importação que fizemos da Revolução Industrial chegou cá talvez seja o facto de terem sido engenheiros franceses (vide o caso de Gustave Eiffel, autor da ponte de Maria Pia, no Porto) e ingleses que projectaram muitas das pontes portuguesas erguidas nesse século (a ponte de Entre-os-Rios, em Castelo de Paiva, que desabou em 2001 não é excepção). Segundo Franklin Guerra:

“Durante todo o século do ferro, o país vegetou numa quase total dependência em matérias-primas, equipamentos mecânicos e matéria cinzenta.”

Claro que avançámos... mas os outros países avançaram ainda mais. Talvez seja também sintomático das nossas debilidades estruturais o facto daquela que até há pouco era a maior das nossas pontes – a Ponte 25 de Abril - ter sido erguida, durante o Estado Novo, por tecnologia norte-americana, incorporando embora uma parcela nacional. E é também elucidativo o facto de, no desastre ocorrido durante a construção da ponte Vasco da Gama, terem morrido quase só engenheiros e operários estrangeiros (os últimos africanos).

A velha ponte de Maria Pia não caiu, embora tenha sido substituída pela ponte de São João. As modernas Ponte 25 de Abril e Ponte Vasco da Gama (esta última é a nossa maior e a segunda maior da Europa) aí estão impecavelmente de pé. Assim como estão no ar as outras pontes do Eng. Edgar Cardoso. Por que caiu então a ponte de Entre-os-Rios?

Caiu porque nada é eterno, nem as pontes. Os materiais corroem. Os defeitos alastram. As fundações fragilizam. O remédio é estar atento e vigiar, reparar e substituir. No Porto, a ponte de Maria Pia foi substituída a tempo e, em Lisboa, a Ponte 25 de Abril tem sido reparada (de resto, tem alternativa na Ponte Vasco da Gama). O engenheiro J. E. Gordon, autor do interessante livro Structures or Why Things Don’t Fall Down”, Penguin, 1978, põe o dedo na ferida:

“Todas as estruturas acabam quebradas ou destruídas – tal e qual como as pessoas, que acabam por morrer. O propósito da medicina e da engenharia é adiar estas ocorrências por um intervalo de tempo decente”.


A ponte de Entre-os-Rios viveu mais de cinco minutos e menos do que quinhentos anos: apenas pouco mais de cem anos. Será um tempo de vida decente? Não. Foi indecente a morte que teve e as mortes que causou. O acidente, como muitos outros, foi perfeitamente escusado. Não tendo havido defeito óbvio de construção nem sendo os materiais desadequados de todo, a vigilância e a reparação da ponte foram pura e simplesmente insuficientes. Não serve dizer que a ponte foi feita há mais de um século para diligências a cavalo: a ponte de Maria Pia também não foi feita para os modernos comboios, mas foi primeiro reparada e depois substituída. Também não serve dizer que há desastres naturais imprevisíveis (“os actos de Deus”, como se dizia nas antigas apólices de seguro), pois as cheias do mesmo rio não levaram outras pontes, obviamente mais preparadas para as intempéries. O que aconteceu era, pelo menos para alguns, perfeitamente previsível. O fim da velha ponte era tão previsível que havia planos, infelizmente adiados, para erguer uma nova ponte.

A queda da ponte é, afinal, um indicador da falta de cultura científica e tecnológica. Importámos a ciência e a tecnologia mas não as interiorizámos, não as colocámos de forma consequente ao serviço das nossas vidas. Confiamos demais na sorte. Ignoramos que a ciência e a tecnologia fazem previsões a respeito do mundo e que, com isso, podemos acautelar o nosso futuro. Claro que não se faz isso com absoluta certeza mas sim, o que já chega, com suficiente probabilidade. O engenheiro J. E. Gordon, muito antes da queda de pontes portuguesas, tem no livro citado uma secção intitulada “O design do engenheiro como teologia aplicada”, cuja adequação ao caso da ponte de Entre os Rios é evidente. Apesar do extracto ser longo, vale a pena trancrever:

“Em quase todos os acidentes temos de distinguir dois níveis de causas. O primeiro é a razão imediata, técnica ou mecânica para o acidente; o segundo é a razão humana subjacente. É bem verdade que o design não é uma coisa muito precisa, que acontecem coisas inesperadas, que ocorrem erros genuínos, etc., mas na maior parte dos casos a razão ‘real’ de um acidente é um erro humano que se pode prevenir.

Está hoje na moda supor que o erro é uma das coisas pelas quais não é justo acusar as pessoas, que, no fim de contas, fazem ‘o seu melhor’ ou são vítimas da sua educação e do seu ambiente, ou do sistema social, etc. Mas o erro oculta-se naquilo que não está na moda chamar ‘pecado’ (...) Muitos poucos acidentes ‘acontecem’ de um modo moralmente neutro. Nove em cada dez acidentes são causados não por efeitos técnicos mais ou menos abstrusos, mas pelo velho e relho pecado humano, que às vezes roça a pura malvadez.

(...) São pecados sórdidos como o descuido, a inacção, o não-pergunto-nem-preciso-de-aprender, o ninguém-me-pode-dizer-nada-sobre-o-meu-trabalho, o orgulho, a inveja e a cupidez que matam as pessoas (...) Sob a pressão do orgulho e da inveja, da cupidez e da rivalidade política, só se atende às miudezas do quotidiano. As avaliações gerais, o primado da engenharia, acabam por se tornar impossíveis. As coisas tornam-se imparáveis e deslizam para o desastre à vista de todos. Assim se cumprem os desígnios de Zeus”
.

No rio Douro não se passou uma tragédia grega mas uma tragédia portuguesa. Passou-se uma tragédia muito nossa, que tem raízes fundas na nossa história. Se fizermos uma avaliação geral, reconheceremos tratar-se apenas e infelizmente de parte de uma tragédia maior que é a ignorância continuada das leis do funcionamento do mundo.

1 comentário:

Carlos Medina Ribeiro disse...

Sobre a tragédia da Madeira, vale bem a pena ler um texto premonitório que, há mais de 25 anos, um Eng.º Silvicultor publicou no «DN» do Funchal - Ver [aqui].

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