Texto de João Boavida a propósito de um equívoco em torno da avaliação das aprendizagens, que tem ocupado algumas páginas de jornais, textos de blogues e não só...
A propósito da nomeação da Doutora Ana Maria Bettencourt para o C.N.E. e da “conversa” que já começou a ter sobre avaliações, e irritou algumas pessoas, lembro que num texto publicado no De Rerum Natura, a Helena Damião referiu que quando se fala de avaliação escolar, para se perceber o que está em causa, é preciso distinguir entre avaliação criterial e normativa. Vale a pena retomar o assunto.
A avaliação criterial é estruturada por referência a um determinado padrão académico, tendencialmente universal, permitindo comparar os resultados dos alunos com esse padrão de saberes e competências, a avaliação normativa é estruturada por referência a um conjunto de saberes e competências dum grupo ou sujeito, em função do estádio em que esse grupo ou sujeito se encontra num determinado momento.
As provas criteriais autorizam decisões classificativas e, em alguns casos, de passagem ou reprovação/retenção e, mesmo, de atribuição de diplomas. Autorizam, ainda, a comparação entre turmas, escolas e sistemas educativos. As provas normativas autorizam a observação da evolução de grupos e alunos, em geral com um rendimento superior ou inferior à norma.
Neste ponto, o leitor já terá percebido que as provas Pisa, passadas nos países que aderiram a este programa, são criteriais e que as provas que se fazem numa escola para uma turma ou alunos a que se dedica uma atenção especial são normativas.
Lamentavelmente, esta diferenciação técnica tem sido ignorada pelos políticos, não está, em geral, subjacente às discussões e é, portanto, um factor de confusão e de erros. Explico:
As provas do segundo tipo são, em geral, defendidas pelas pessoas mais à direita, que põem a tónica na preparação dos sujeitos para uma sociedade competitiva, que exige os melhores à frente. As primeiras são da simpatia das pessoas mais à esquerda, que acham que todos somos iguais, ou devemos ser, e que a escola não deve reforçar as desigualdades sociais, mas antes, pelo contrário, esbatê-las.
As segundas, consideram que a avaliação normativa está instalada (ainda que não usem este termo), e consideram que tal avaliação, baixando por opção política os níveis de exigência, permite que toda a gente vá passando pelos diversos patamares do sistema, mas conduz ao abaixamento do nível de preparação e, em sequência, à incapacidade de educar elites científicas, técnicas e culturais para desafios de um mundo cada vez mais exigente. As primeiras pensam que a avaliação criterial está instalada (ainda que também não usem este termo), considerando que a escola deve promover todos, e que esta avaliação constitui uma condição de justiça social, esquecem-se do mais importante, que é utilizá-la como ela deve ser, isto é, ao serviço de uma verdadeira recuperação dos mais carenciados, e sem cedências enganadoras.
As segundas, as mais para a direita, se é permitido dizer assim, consideram mais a realidade tal como é, e desconfiam das possibilidades de recuperação, e, em último caso, consideram que haverá sempre desigualdades e que tentar esbatê-las a todo o custo é antinatural. As primeiras, pensam na realidade como ela devia ser, acreditando que um trabalho educativo, se realizado duma determinada maneira, pode recuperar todos, ou a maioria dos alunos. Mas, esquecem-se que isto tem exigências muito grandes.
Por isso, ambas têm, e não têm, razão.
A verdade é que estes dois tipos de avaliação têm intenções diferentes, mas isso não os impede de serem complementares, podendo e devendo ter ambos lugar nos sistemas educativos e de modo articulado.
E porquê?
Porque a avaliação normativa tem inúmeras vantagens no seguimento e na recuperação de alunos com atrasos particulares na aprendizagem, mesmo dos mais desfavorecidos, servindo, assim, de instrumento para lutar contra um sistema que mantém e até reforça as divisões sociais, como muito bem denunciaram alguns sociólogos nos anos 70 (situação que, passadas quatro décadas, não sofreu uma alteração substancial). Mas também tem vantagem no seguimento de alunos que, sendo ou não favorecidos, avançam rapidamente na aprendizagem, servindo, neste caso, de incentivo à sua progressão.
Por que é que a avaliação criterial não é, por diversas razões, dispensada pelos sistemas educativos? Um das razões é que a sua estrutura por anos, ciclos, níveis, cursos, depende, em parte, deste tipo de avaliação: se ela fosse dispensada, os sistemas sofreriam alterações profundas ao ponto de perderem a sua identidade. Por outro lado, sabemos que se trata de uma avaliação que funciona como factor de motivação para o estudo, e, consequentemente, melhora as aprendizagens. Além disso, a sociedade, quer queiramos quer não, obriga-nos a aproveitar os mais capacitados (não o fazer é também uma injustiça, e seria suicida) e isso só é possível com uma avaliação discriminativa.
Se, por um lado, os sistemas educativos não devem rejeitar alunos e devem fazer tudo para evitar as reprovações/retenções e os abandonos precoces, porque isso vai aumentar os desqualificados e, a prazo, os problemas sociais; também não pode deixar os melhores a vegetar num ensino medíocre e sem níveis de exigência compatíveis com as capacidades que revelam.
É, pois, necessário que a avaliação, por um lado, sustente de modo continuado o acompanhamento das aprendizagens, e avalie com rigor o seu nível e, por outro lado, apoie decisões pontuais relativas ao estado dessas mesmas aprendizagens. São, como se entenderá, dois planos distintos de acção.
Planos que concorrem, no entanto, para se exigir de todos certos níveis de desempenho, pois sem isso não haverá progresso das pessoas nem das sociedades, mas, sem nos esquecermos de que temos capacidades diferentes e a avaliação tem que dar conta disso, e tem condições para dar.
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5 comentários:
Faz todo o sentido!
Talvez seja devido às grande exigências de uma avaliação criterial que se baixa, por opção política, os níveis de ensino. De qualquer forma, o que vale é o papel e o número que lá vem escrito. Por isso basta passar certificados de inteligência para acabar com a ignorância e a avaliação serve para enfeitar e dar um ar idóneo à coisa.
Tendo lido este post, fui ler igualmente o da autoria de Helena Damião. A minha leitura atenta
de ambos os textos defrontou-se com a contradição (discordância?) patente nos excertos seguintes dos dois autores (que trasncrevo mais abaixo), no que respeita ao posicionamento da direita/esquerda face à avalição normativa/criterial. Para Helena Damião a direita gosta mais da avaliação criterial, enquanto que para João Boavida essa é a preferência da esquerda. Na medida em que os textos contêm implícita a ideia de concordância e de mútuo reforço de pontos de vista, é importante saber se neste ponto há ou não concordância.
Pessoalmente concordo a relevância atribuída às duas formas de avaliação: uma adequada avaliação criterial é uma estratégia educativa para preparar o maior número de alunos para elevados desempenhos num avaliação normativa. A avalição normativa, em úlima análise é também criterial,sendo que os critérios, exteriores ao grupo do sujeito (a turma ou escola), são (ou deveriam ser) determinados pela função de distribuição dos desempenhos de uma amostra representativa da população a que pertence o grupo. Todavia,se a população estudantil portuguesa está genericamente em patamares de educacioanais excepcionalmente baixos, por comparação com outros países, então a norma portuguesa não nos serve de muito, do ponto de vista da necessidade de elevação no nosso nível educacional. Então será mais aconselhável o retorno à avaliação criterial em exames nacionais, por exemplo, de modo que o critério adoptado seja mais exigente do que a norma de uma população educacionalmente atrasada.
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"Se os partidos mais à direita insistem na avaliação criterial, os partidos mais à esquerda insistem na avaliação normativa. Ambas as facções se enganam, pois uma avaliação só tem sentido se e quando aliada à outra."
Helena Damião
"As provas do primeiro tipo [normativas] são, em geral, defendidas pelas pessoas mais à direita, que põem a tónica na preparação dos sujeitos para uma sociedade competitiva, que exige os melhores à frente. As segundas [criteriais] são da simpatia das pessoas mais à esquerda, que acham que todos somos iguais, ou devemos ser, e que a escola não deve reforçar as desigualdades sociais, mas antes, pelo contrário, esbatê-las."
João Boavida (no post editado por Helena Damião)
A minha experiência profissional enquanto técnico de educação com 25 anos de trabalho continuado na escola, mostra-me que é mais como afirma o professor Boavida. Sou adepto da existência dos dois tipos de avaliação, sem dúvida, para os quais a escola deve trabalhar (e aprender a trabalhar mais e melhor). Não concordo com as múltiplas posições, por vezes extremistas e simplistas, que ora defendem os exames ora os pretendem abolir. Sou pelo rigor e pelo trabalho, pelo profissionalismo de todos os profssionais que trabalham na escola e pela sua justa distinção e valorização/valoração socio-profissional (mas sejam eles professores, psicólogos, assistentes sociais, técnicos de ciências da educação ou auxiliares de educação), coisa que é muito difícil verificar, independentemente das convulsões por que tem passado ultimamente o nosso sistema educativo. Porque há uma questão de pormenor (só pelo facto de me parecer que passa despercebida a muito boa gente que dela não fala, para mim não é de pormenor)que tem a ver com o rendimento dos bons e muito bons alunos que, felizmente, ainda se vão encontrando no nosso quotidiano - é que desses e com esses ninguém parece preocupar-se, mau grado a constante retórica de defesa duma avaliação mais normativa. Será que a classe docente nestes 34 anos de democracia se tem preocupado por os discriminar positivamente, isto é, propondo-lhe situações de aprendizagem desafiantes, enriquecedoras, mais de acordo com os seus perfis? A minha experiência diz-me que não. E isto sucede, essencialmente, por falta de preparação, porque não funciona a denominada diferenciação pedagógica, nem o trabalho em equipa docente, e o pessoal continua muito preso a dogmas de formação que persistem no chamado "aluno médio" e no mero cumprimento do programa e do horário meramente lectivo. Não na pessoa dos alunos, sejam eles melhores ou mais necessitados de recursos didáctico-pedagógicos. Efectivamente só se teoriza em torno do abaixamento do nível, mas existe toda a liberdade, sei eu, para o professor, dentro do seu método de trabalho, também "puxar" mais pelos melhores, por forma a manter as elites tão necessárias elas também são, e não o faz, e não se fala disto!... Será que algum dia estes alunos não virão a dispensar a escola e a acção do (tipo de) professor que muitos por aqui vão defendendo, num saudismo dos "bons velhos tempos"?...é perguntar-lhes.
JACosta psicólogo
Caro Joaquim Sá
Tem toda a razão no reparo que faz. Não se trata de um discordância, fruto da adopção de perspectivas distintas, mas, somente, de um engano da minha parte. Na edição que fiz do texto de João Boavida, troquei as designações (se as realidades para que apontam são claras e distintas, a sua deseignação não o é tanto, pois "critério" e "norma" são tomados, por vezes, na linguagem comum como sinónimos).
Agradeço, pois, sua a leitura atenta e a nota que teve a amabilidade de escrever, permitindo emendar um erro, evitanto que ele se propagasse na blogosfera.
Helena Damião
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