sábado, 6 de junho de 2009

A deseducação em círculo

Texto de João Boavida, antes publicado no jornal As Beiras:

Há uma passagem no Khadji-Murat, de Tolstoi, capaz de nos ensinar alguma coisa. No primeiro dia de 1852, Nicolau I, o czar de todas as Rússias, recebeu o ministro Tchernichov, para despacho, e nos documentos vinha o relatório dum roubo dos militares da logística. Pondo o imperador a folhear, com enfado, os documentos, Tolstoi escreve: «O soberano estava certo de que toda a gente roubava. Sabia que era preciso castigar os militares (…) mas sabia também que isso não impediria aqueles que ocupariam os lugares dos demitidos de fazer o mesmo. A natureza dos funcionários consistia em roubar, enquanto o seu dever consistia em castigá-los». E Nicolau I, ele próprio um devasso prepotente e cruel, comenta: «Aparentemente, temos um único homem honesto na Rússia – disse. Tchernichov percebeu logo que o tal único homem honesto na Rússia era o próprio imperador, e sorriu com aprovação. – Provavelmente sim, Vossa Excelência».

Estamos numa estrutura circular, ou seja, sem saída. Os funcionários são corruptos e o imperador castiga-os, mas os substitutos serão igualmente venais, e por isso serão demitidos. Contudo os seguintes também roubarão, e portanto serão punidos, e assim sucessivamente. Não admira que o imperador esteja cansado de fazer esta justiça uma vez que as punições não têm efeito.

Quando antigamente os filhos eram tratados a sovas contínuas, dizia-se que ficavam “malhadiços”, ou seja, indiferentes à pancada. E sobretudo mal-educados: desconfiados, vingativos, rancorosos, hipócritas e duros. Incapazes de sentimentos de amor saudável, viviam no medo, até ao dia em que eles mesmos se tornavam cruéis para com os mais fracos e o ciclo recomeçava.

Em ambos os casos estamos em circuitos punitivos, não educativos. A educação é uma abertura e não uma clausura, é uma libertação, não uma condenação. Pode parecer o contrário, porque regras e obrigações são entendidas hoje como feitas para nos prender e atrofiar. Quando cada um se acha com direito a fazer o que quer, toda a norma parece uma afronta e uma asfixia. Mas a sabedoria dos séculos diz-nos o contrário. O princípio - ou a regra que funcione como princípio - dá à minha acção possibilidades de participar numa ordem superior, de alcançar dimensão universal, ou tendendo para isso. A minha individualidade entra em comunhão com as outras, pode criar uma harmonia que me transcende, e por isso, simultaneamente me enquadra, me defende e me aperfeiçoa.

Sujeito aos caprichos, pelo contrário, fazendo da minha vontade do momento a regra, rapidamente me enleio em actos e ideias que me põem em conflito comigo e me impedem a respiração moral e mental.

A educação tem que ter princípios, inteligentes, sensatos e humanos, mas que nos obriguem. E o educador tem que encarnar esses princípios, ser o representante e defensor deles aos olhos do educando. E ser coerente e exemplar. Se assim não for não há possibilidade de emenda e menos ainda de aperfeiçoamento pessoal.

Na mesma audiência havia o caso dum estudante polaco que, depois de várias reprovações numa disciplina, atacara o professor ferindo-o ligeiramente. O imperador, alimentando o velho ódio entre polacos e russos despachou o seguinte: «Merece a pena capital. Mas, graças a Deus, não temos a pena capital. E não serei eu a introduzi-la. Fazê-lo passar doze vezes por mil pessoas com chibatas». Diz Tolstoi: «Nicolau sabia que doze mil chibatadas não significam apenas uma morte certa e torturante, mas ainda uma crueldade excessiva, visto que bastavam cinco mil para matar o homem mais forte».

Com “educadores” assim a doença social transforma-se em septicemia. Foi o que aconteceu.

2 comentários:

Carlos Pires disse...

Concordo.
Relaciono o que é dito no post com ideias obviamente verdadeiras e justas: ao reprovar (como ao aprovar, aliás) um aluno devemos pensar muito no estamos a fazer, devemos certificar-nos que estamos a utilizar critérios objectivos e fundamentados e que essa utilização é rigorosa; um juiz deve ceritifcar-se do mesmo relativamente às leis e à sua interpretação das mesmas.
Infelizmente, o modo como o post está construído também permite que as pessoas (como Ana Maria Bettencourt, presidente do Conselho Nacional de Educação, que deu hoje uma entrevista ao Público) que defendem que as reprovações nunca são pedagogicamente eficazes e justificáveis concordem com ele. Tal como as pessoas que relativamente a um crime dizem que a reeducação deve substituir a punição.
Tenho curiosidade de saber o que Helena Damião e João Boavida, na sua qualidade de estudiosos da educação, pensam das declarações de Ana Maria Bettencourt e do facto de ela acrescentar a cada uma das enormidades (não se deve reprovar alunos, o ensino deve ser centrado no aluno, os exames nacionais não promovem o sucesso educativo, etc.) que disse um categórico "está provado".

Anónimo disse...

«Merece a pena capital. Mas, graças a Deus, não temos a pena capital. E não serei eu a introduzi-la. FAZÊ-LO passar doze vezes por mil pessoas com chibatas.»

Será que o tradutor também foi certificado pelo Novas Oportunidades?

Alberto Sousa

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