terça-feira, 9 de junho de 2009

SOBRE A EVOLUÇÃO, RAMALHO ORTIGÃO, 1877

No contexto do ano Darwin, reproduzimos com grafia actualizada parte de uma carta aberta de Ramalho Ortigão ao Papa incluída nas "Farpas" ("Crónica Mensal da Política, das Letras e dos Costumes"), de Maio a Junho de 1877 (na imagem Ramalho por Rafael Bordalo Pinheiro):

"É um novo dilúvio aquele de que a história do pensamento humano nos oferece a imagem caudalosa e tremenda. A inundação espraia-se no vasto campo da teologia, e vemos ao longe, fugindo desgrenhadas, as últimas superstições, medonhas como os grandes monstros pré-históricos que vão ser tragados pela vaga.

Cansada de combater, a teologia finalmente rende-se. Tendo perseguido Galileu, Giordano Bruno, Savonarola, Averróis, Lutero, tendo combatido todos os iniciadores de um novo sistema do universo ou de uma nova compreensão dos destinos do homem, a Igreja vê aparecer Darwin, e nem sequer tenta lutar!

O transformismo, revelado por Lamarck, supitado um momento na Academia Francesa sob a autoridade funesta de Cuvier, é finalmente definido e promulgado, e todo o imenso edifício teológico da criação do mundo e do homem cai aluído pela lei da adaptação e da selecção natural na luta pela existência.

Às grandes revoluções nas ciências físicas e naturais sucederam-se modificações equivalentes nas teorias e nas praxes da vida social, na economia, na administração, na política, no sentimento, na crítica, na poesia, na arte, na moral e na própria religião.

Da filosofia zoológica de Darwin sai um Deus como religião alguma tinha até hoje tido o poder de concebê-lo, o único Deus compatível com a noção da sabedoria infinita. Segundo os sistemas da criação anteriores ao transformismo, e adoptados pela Igreja, Deus era o autor de um
universo que ele sucessivamente revia e emendava, depois de cada um dos cataclismos que passavam por cima da sua obra, como passa uma esponja sobre uma operação incorrecta. Segundo a teoria darwiniana, experimentalmente demonstrada e contraprovada pelos mais sábios analisadores, Deus não revê, Deus não corrige, Deus não se emenda, Deus não se aperfeiçoa sendo assim perfectível e portanto imperfeito, como fatalmente deveríamos admitir que o era aceitando a doutrina do Génesis e a crítica paleontológica de Cuvier e de todos os adversários de Lamarck de Goethe, de Darwin e de Haeckel.

As espécies extintas não foram cortadas pelo Criador no livro da Terra como por meio de um sinal posto à margem na prova de uma segunda edição.

Os órgãos rudimentares dos animais, os órgãos que não têm função, deixaram de ser excrecências de estilo inadvertidas pelo autor ou empregadas por ele com um intuito de ornato retórico. Se o homem, por exemplo, tem em estado rudimentar e na atrofia de uma inércia de milhares de séculos, uma cauda indicada pelas suas vértebras falsas, se tem mamilos sem amamentar, se tem útero sem conceber, se tem um segundo estômago sem ruminar, escusamos já hoje de explicar estes factos por um descuido indolente ou por uma ênfase premeditada na confecção do nosso organismo. A evolução genealógica de todos os seres e a sua procedência de um tronco ancestral comum, descoberta e provada pela lei de Darwin, basta para nos explicar cabalmente todas as aparentes anomalias da criação sem quebra da infalibilidade suprema.

Assim o Deus revelado ao mundo pelos modernos filósofos teístas é o único Deus omnipotentemente sábio, o único Deus verdadeiramente divino, porque não procede na obra da criação por emendas, revisões sucessivas, reedições aumentadas e correctas, como o Deus teológico: Ele cria a vida no átomo primitivo vogando na imensidade, deixa cair a célula primordial nas profundidades fecundas do Mar Tenebroso e ordena-lhe que se desenvolva dentro de uma lei prefixa. Depois do quê não só não descansa, não só não revê, não só não modifica, mas nem sequer espera, porque infinito Ele mesmo, e preenchendo o infinito no espaço e o infinito no tempo, possui em si próprio, completa, a infinita evolução."

1 comentário:

Anónimo disse...

«Às grandes revoluções nas ciências físicas e naturais sucederam-se modificações equivalentes nas teorias e nas praxes da vida social, na economia, na administração, na política, no sentimento, na crítica, na poesia, na arte, na moral e na própria religião.»

Claramente este previsão não se tornou realidade.

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