Faz agora um ano que o projecto Fluir Perene, da responsabilidade de um grupo de professores, jovens investigadores e alunos universitários de Estudos Clássicos, foi apresentado publicamente na Livraria Minerva, em Coimbra.
Este grupo que se diz sentir honrado com a ligação à Associação Portuguesa de Estudos Clássicos e ao Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos (Unidade de I&D da Universidade de Coimbra), tem por intento a divulgação e a investigação da cultura de origem greco-latina e a criação a partir dela, porquanto essa cultura é, para nós, “a seiva que perene flui ou rio que não pára de correr, que nunca é o mesmo, mas a todos banha e alimenta”, que “que faz parte integrante do baú da nossa mente, sem ela olharíamos as pessoas e as coisas de outra forma. Éramos de certeza outros”.
Vale-se do velho papel e das novas tecnologias da informação – um portal e um blogue – para partilhar o que reúne e produz: tradução, ensaio, material didáctico, poesia…
A propósito deste aniversário, falei com o mentor mentor deste projecto José Ribeiro Ferreira, professor catedrático de Cultura Clássica:
P: O Fluir Perene sendo um projecto de divulgação, a quem se destina, em concreto?
R: Destina-se ao público em geral, embora procure sobretudo o estudante universitário. Daí que privilegie uma linguagem acessível e sem excessiva erudição. A este propósito, relembro que há muitos mitos, referências ou personagens, históricas ou ficcionais, que fazem parte do nosso baú da memória e andam agarradas ao nosso ser cultural — que é segunda natureza — como segunda pele que de modo algum conseguimos arrancar: ele é, para dar apenas alguns exemplos, o ‘calcanhar de Aquiles’, o ‘pomo da discórdia’, o ‘cavalo de Tróia’, o ‘nó górdio; ele é o recurso a mitos e dados da cultura greco-romano por escritores e poetas, mesmo nossos contemporâneos, como Jorge de Sena, Manuel Alegre, Sophia de Mello Breyner Andresen, Nuno Júdice, David Mourão Ferreira, Fiama Hasse Pais Brandão, José Jorge Letria, entre outros, para veicular ideias e valores; ele são termos como ‘lupanar’, ‘sicofanta’, ‘odisseia’, ‘sósia’, ‘anfitrião’; ou seja, o que costumo designar como secretos caminhos das palavras. A essa bagagem cultural — que evidentemente tem de ser cultivada para produzir frutos — cai afinal sob a alçada da afirmação de Cícero, ao escrever que, «ignorar o que se passou antes de uma pessoa ter nascido é ser sempre criança» (O Orador 34.120).
P: Há muitos jovens envolvidas no projecto, investigadores no início da carreira, alunos de mestrado e doutoramento. Significa isto que, apesar de a cultura clássica ter sido cirurgicamente afastada dos curricula escolares, os jovens continuam a interessar-se por ela?
R: É evidente que o interesse é manifesto. Não quer isso dizer que todos se sintam esse gosto pelas culturas grega e latina e pelas matérias das chamadas sociedades clássicas. Aliás as editoras aperceberam-se dessa procura e dessa apetência, ao traduzir em número significativo obras — romances históricos em especial —, que privilegiam determinadas épocas que pelas suas características, debate ideológico ou confronto social dizem mais aos dias de hoje. Por exemplo, a Guerra de Tróia, as Guerras Medo-Persas, o chamado século de Péricles, o tempo de Alexandre Magno e Diádocos, o fim da República Romana e século de Augusto. Veja-se o número de obras de ficção traduzidos e publicados nos últimos tempos... Cito, contudo, como paradigmáticos as séries O Primeiro Homem de Roma, de Colleen McCullough (cinco grossos volumes, num total de cerca de 5000 páginas) e Um Mistério na Roma Antiga, de Steven Saylor (uma série policial que já conta com oito volumes).
P: Como vê o ensino das Clássicas no nosso país e que futuro lhe prevê?
R: Vejo com preocupação, como é evidente. Repare-se que hoje, se percorrermos todo o país, contar-se-ão pelos dedos as escolas — ou liceus, como gosto mais de lhes chamar, recuperando o nome da escola de Aristóteles que era um verdadeiro centro de investigação, em vez da incaracterística designação EB 2/3 —, contar-se-ão pelos dedos, dizia eu, as escolas que tenham grego ou latim nos seus currículos. Mas a minha preocupação maior até nem reside nessa falha, que é grave e haveremos de lhe sentir os efeitos, mas centra-se sobretudo no ostracismo a que a Reforma Justino — no essencial ainda em vigor — votou as Humanidades (e nesta designação estou a englobar línguas, literaturas e culturas). Quantos serão os pais que se disponham a percorrer diariamente trinta, quarenta ou mais quilómetros para levar os filhos a escolas que tenham Humanidades nos currículos, por gosto ou por considerarem que é parte importante da sua educação para o futuro? E será tanto mais grave se, como em muitas outras coisas, Fernando Pessoa tiver razão, ao proclamar: «A minha Pátria é a língua portuguesa».
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1 comentário:
Modestamente, outra perspectiva do que compreendo do Projecto "Fluir Perene".
Quando Fernando Pessoa entoa a famosa frase "A minha pátria é a língua portuguesa" pois bem, das atribuições latinas proclama:
pátria - país
pat ria - padre direitos
p atria - os tribunais
Para além do que souberamos ou não, ao construir de pontes, salva o post:
“a seiva que perene flui ou rio que não pára de correr, que nunca é o mesmo, mas a todos banha e alimenta”, que “que faz parte integrante do baú da nossa mente, sem ela olharíamos as pessoas e as coisas de outra forma. Éramos de certeza outros”.
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