Acabo de receber notícia da morte de Tereza Coelho e é adequado dizer algumas coisas sobre as circunstâncias em que a conheci e o que dela vi. Há por vezes a convicção, dado o comportamento de algumas pessoas que escrevem nos jornais, que isto é tudo uma questão de conhecimentos e de amigalhaços; que para escrever num jornal é preciso pertencer a esse círculo olímpico, do qual estão excluídas as pessoas comuns. Isto pode ser parcialmente verdade, mas não é certamente toda a verdade. Não foi verdade comigo, nomeadamente. Por causa da Tereza.
Não me lembro em que ano contactei a Tereza nem sei qual foi o primeiro texto que publiquei no suplemento “(livros)” do jornal Independente, por ela dirigido. Não a conhecia pessoalmente de lado algum, mas sabia que tinha dirigido antes o suplemento cultural do Público. E a nova revista do Independente era muito apetecível porque tinha muito mais espaço para se escrever sobre livros do que é comum. De modo que decidi mandar-lhe uma carta propondo-me para escrever sobre livros de filosofia, de maneira simples e estimulante, para divulgar junto do grande público esta área, geralmente desprezada. Juntamente com a carta, que tinha apenas uma página, tanto quanto me lembro, enviei-lhe alguns exemplos de recensões de livros de filosofia que eu vinha publicando online na Crítica desde 1997.
Não teria ficado surpreendido se a minha carta nunca recebesse resposta. Mas, para minha surpresa, recebi imediatamente um telefonema dela, pedindo-me que me dirigisse à redacção do jornal, para trocarmos ideias (na altura eu vivia em Portugal). E lá fui. A minha primeira impressão foi muito boa. Uma pessoa descontraída, que tinha um interesse genuíno pelos livros e que não tinha o mínimo interesse na sua própria promoção. Passei a escrever regularmente para ela. E uma das coisas de que gostei era que uma vez ou outra, sobretudo no início, cortava-me desalmadamente disparates que eu escrevia. Fazia-o com a maior das tranquilidades e isso é muito raro pois, por alguma razão, muitos autores sentem-se infantilmente melindrados quando são corrigidos por outras pessoas, o que faz os editores ter medo de nos ajudar a escrever melhor.
Depois o suplemento do jornal separou-se e tornou-se uma publicação independente, com o título Os Meus Livros (que ainda existe). Continuei a escrever para ela, até a reestruturação da revista ter afastado a Tereza, que começou então a trabalhar como editora -- e eu passei a escrever para a Isabel Coutinho, do suplemento cultural do Público.
Da Tereza guardo impressões curiosas. Apesar de a minha principal função ser escrever sobre livros de filosofia, gostou da ideia de se escrever sobre o que muitos consideram “iliteratura”: Stephen King, por exemplo, literatura de puro entretenimento e escapismo. A Tereza não tinha esse género de preconceitos. Lembro-me de estar a tentar persuadi-la de que era importante divulgar livros deste género porque dão a muitas pessoas, sobretudo jovens, um gosto pela leitura que poderá depois ser transferido para ler outras coisas. Foi em vão, não no sentido de ela não se convencer, mas porque eu estava sem saber a dar a missa ao padre: ela pensava precisamente a mesma coisa. E então escrevi sobre outros livros de puro entretenimento, como os viciantes livros de Rex Stout. Este episódio mostra uma atitude da Tereza que não é comum: num país em que os livros e a cultura tendem a ser sacralizados e usados como adereços que demarcam imaginadas superioridades sociais, ela tinha uma atitude muito descontraída. A cultura, os livros, a ciência, a literatura são importantes, sim, mas não vale a pena pôr o fato de Domingo, até porque isso transforma essas coisas todas em grandes chatices.
A última correspondência que troquei com a Tereza, há muito tempo, foi aquando da reestruturação inelegante da revista que ela dirigia. A Tereza foi afastada de maneira pouco elegante, mas limitou-se a aceitar o facto e passou à frente. Nada de dramatismos.
Sem dramatismos, lamento a sua morte temporã. Era uma pessoa muito afável, mas com ideias bem definidas. Não gostava de ir atrás das correntes da moda, mas também não tinha o espírito bélico de querer convencer o mundo de que era ela que tinha razão. Limitava-se a dizer o que pensava, e porquê, com muita doçura. Quando escrevi um texto (que não era para publicação na revista) sobre as razões que levam as pessoas a hesitar chamar “filósofo” a uma pessoa como eu, mas não hesitam em chamar “poeta” ou “matemático” a pessoas com qualificações poéticas ou matemáticas iguais às que tenho em filosofia, disse-me apenas: “concordo, mas exageras um bocado”. E tinha razão.
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