segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

O censor invisível

Defendi três ideias centrais nos meus artigos contra a ideia de que é legítimo usar o conceito de insulto para limitar a liberdade de expressão. Primeiro, que seja o que for que alguém escreva pode ser acusado de ser insultuoso, e que historicamente sempre foi esta a acusação feita para amordaçar a liberdade de expressão. Segundo, que se tivermos medo de escrever algo por poder ser insultuoso para alguém, estaremos a interiorizar a censura, e a autocensura é pior do que a censura explícita, porque a segunda é mais visível. Terceiro, que há hoje mais autocensura na vida pública do que há poucas décadas.

A favor desta segunda ideia não apresentei dados empíricos -- pensava ingenuamente que esta seria uma ideia pacífica. Muitos leitores discordam de mim  e pensam que a liberdade de expressão não está hoje mais ameaçada do que há umas décadas. Neste artigo, Christopher Hitchens  apresenta vários casos que sustentam a ideia de que a liberdade de expressão está hoje mais ameaçada do que há umas décadas, precisamente por causa da autocensura, baseada na ideia de que seja o que for que se possa escrever poderá ser insultuoso para alguém.

O que pensa o leitor?

14 comentários:

Anónimo disse...

Como vivemos todos juntos e é dificil aturar uns e outros acho que a discussão do insulto é indissociável do rácio sinal/ruído...

Carlos Pires disse...

Desidério:

Partilho as suas preocupações com a autocensura. Num país como Portugal em que, como explicou num post anterior, "errar é um escândalo" do qual as pessoas se defendem refugiando-se no relativismo, quando exprimimos sem tibieza uma opinião consideram-nos muitas vezes arrogantes e em vez de contraargumentarem, dizem "isso é a tua opinião". Quase todos os dias ouço colegas professores e alunos dizerem "isso é discutível", não para iniciar uma discussão mas para encerrá-la. Num ambiente desses é fácil cair na autocensura, pois sabemos que muitos interlocutores interpretarão uma crítica às suas ideias como uma crítica pessoal e ficarão ofendidas. Mesmo que não haja nada que seja remotamente interpretável como um insulto.

Mas queria também fazer de advogado do diabo. Vou citar uma afirmação sua (do Manual Arte de Pensar, de que é co-autor) e fazer-lhe uma pergunta.

"Para que um argumento seja cogente (=bom) as premissas têm de ser aceitáveis para quem ainda não aceita a conclusão" Por exemplo: "Para argumentar a favor da existência de Deus só podemos usar premissas que quem é crente aceita".

Como concilia esta afirmação com a defesa que faz do insulto? Se eu usar palavras que os meus interlocutores consideram insultuosas não estarei a desbaratar a possibilidade de os persuadir? Se fosse eu a responder à questão que coloquei creio que algures na resposta referiria 2 falácias relacionáveis com insultos: o argumento ad hominem e a falácia do espantalho.

R. da Cunha disse...

Insulto não é a mesma coisa que crítica, mordaz, incisiva ou até injusta que seja. O insulto pode ser, no entanto, relativo, de acordo com a cultura dos envolvidos. Quanto à auto-censura, creio que ela existe e mais que nunca. E as razões são várias, desde políticas a económicas.
É mau, mas é o que temos, creio.

Desidério Murcho disse...

Olá, Carlos
Obrigado pela pergunta, até porque permite esclarecer uma coisa que me parece que ainda não consegui exprimir com a claridade desejável. Façamos uma analogia: eu não fumo. E acho que fumar é um hábito tolo, dado o risco que envolve por um prazer demasiado vago. Além disso, é pouco higiénico e incomoda muito as outras pessoas. Mas daqui não se segue de modo algum que as pessoas possam ser proibidas de fumar. Nem tudo o que é idiota deve ser proibido. Defender a liberdade de expressão e ter uma mentalidade democrática não é defender a liberdade de expressão do que é bonitinho e bem pensado e de bom gosto e interessante e iluminante. Não. Defender a liberdade de expressão é defender também a liberdade para exprimir parvoíces, irrelevâncias, porcarias, etc.
Assim: não defendo que as pessoas se devam insultar. Devem tratar-se com respeito. E na verdade quando se insulta nada se ganha em termos cognitivos: cessou o trabalho intelectual, e entrámos na peixaria. E não gosto de ser insultado. Mas defendo o direito de as pessoas me insultarem, quer isso seja ou não construtivo, bem pensado, bem argumentado etc. Tal como defendo a liberdade de escrever romances e poemas sobre seja o que for, sejam bons ou péssimos. Querer silenciar as pessoas que me insultam ou dizem tolices ou irrelevâncias, ou que exprimem puro ódio, é não compreender o que é a liberdade de expressão. Elas têm a liberdade de dizer as tolices que quiserem sobre mim, desde que não levantem calúnias, por exemplo, que possam clara e inequivocamente afectar a minha vida (se me acusarem falsamente de um crime que não cometi, por exemplo).
Clarifiquei o que defendo? Resumindo: 1) Insultar não é bonito, nem oferece ganhos cognitivos, nem é logicamente profícuo, 2) mas não se deve silenciar as pessoas só por dizerem algo que alguém considera insultuoso.

Helena Ribeiro disse...

“Mesmo quando não estamos de acordo continuamos a dialogar", dizia o pianista falando sobre o seu maestro (num programa da rtp 2 de que não retive referências). Esta á a dignidade a que se aspira. E é claro que condição “sine qua non” é a liberdade de expressão, que anda, realmente, a definhar em nome desse atrofiante “escândalo do erro”. E já esteve muito melhor, há muito poucas décadas. Logo, as verdadeiras mudanças a fazer são a nível de mentalidade. Ponto final. E a palavra é uma muito eficaz arma para a mentalidade. Por isso, quem tem o poder da palavra pela oratória ou pela escrita deve utilizá-lo, como estão a fazer neste blogue, para que, mais depressa aconteça:

“A estétca no futuro será outra. Não é a estética da imagem, é a estética da construção do ser humano. Sendo bela será um todo, porque constrói a sua própria beleza e não é aquela beleza que se vê, é aquela beleza que se pressente, a beleza que se admira (Agustina Bessa Luís, Dicionário Imperfeito, Guimarães Editores)

Fernando Dias disse...

Penso que o Desidério foi bem claro. Concordo plenamente com o que disse, particularmente com o que escreveu na resposta ao Carlos Pires. Quanto ao facto de a liberdade de expressão estar hoje mais ameaçada do que há umas décadas, tenho dúvidas. Em alguns casos e em alguns sítios pode ser que sim, mas noutros talvez não. Penso que é precipitado estar-se a generalizar. Não sei se o exemplo dos blogues poderá ser utilizado para refutar essa ideia. Não sei se certas tentativas por parte do Primeiro-Ministro em Portugal para condicionar a liberdade de certos jornalistas, que temos tido conhecimento através dos próprio media, não será mais uma atitude reactiva precisamente à maior liberdade de expressão que existe hoje na sociedade em geral, em parte ajudada pela blogosfera.

João Vasco disse...

Em resposta ao Desidério, sobre este assunto não poderia estar mais de acordo.
Tenho andado a discutir este tema da liberdade de expressão no "Que treta!" e fico espantado como é um valor do qual tanta gente está disposta a abdicar. Eu não.

antonieta disse...

Também não acho muito simpático que se saia por aí insultando as pessoas, por muito que se discorde do que elas dizem ou fazem. O recurso ao insulto puro e duro é, efectivamente, uma evidência da incapacidade de, argumentativamente, defender uma posição e é, de facto, sair do terreno intelectual para entrar na peixaria. Mas daqui não se segue que, quando me sinto ou sou objectivamente insultada, precise de recorrer ao contra-insulto para me defender ou - de modo mais institucional - necessite de apelar para um árbitro judicial capaz de repôr a minha dignidade; digamos que prefiro uma destas duas atitudes :apelar ao insultante no sentido de fazê-lo expender todos os considerandos que o levaram à tal conclusão que me desagrada e, dessa forma, tentar contra-argumentar ou, muito simplesmente, se for o caso de um disparate tão grande que nem tal valha a pena, remeter-me ao velho chavão - sobranceiro, concedo, mas eficaz - "vozes de burro não chegam ao céu". O que, no fundo, pretendo dizer com isto é que o abandono (ou a incapacidade de lá entrar) do terreno intelectual se manifesta em quem insulta como em quem contra insulta ou recorre a terceiros para resolver a contenda.
Relativamente ao que disse o João Vasco, partilho com ele o espanto diante de um cada vez maior número de pessoas que estão dispostas a ir prescindindo de pequenos redutos da sua liberdade "em nome de...", ao mesmo tempo que gostaria de relembrar que todas as sociedades que, ao longo dos tempos, têm aceitado essas perdas, o resultado não tem sido brilhante.

Anónimo disse...

Escrevi em 2007 um texto para publicação em jornal semanário sobre o Orçamento de Estado de 2008. Era crítico, duro, sarcástico, irónico. Expunha de forma crua a realidade muito frágil do OE.

O responsável máximo da empresa onde trabalho declinou o artigo. Disse que não podia ser publicado identificando-me como trabalhando na empresa, como é habitual nestes artigos (afinal, os jornais de Economia precisam de conteúdos - estas colaborações são vulgares).

O argumento? Temos demasiadas vendas ao Estado para arriscar que alguém se chateie com o artigo. Não podemos irritar ninguém.

Insisti que era preciso passar a mensagem do artigo, e que nós enquanto consultores temos também a obrigação de fazer valer princípios de fundo e não apenas mostrarmo-nos oportunistas. Faz parte da ética da profissão. E por vezes a ética custa dinheiro. Neste caso, podia significar vendas perdidas. Ou eventualmente, ganhas, na minha perspectiva.

Fui censurado. O artigo nunca saiu. Nunca me tinha acontecido. Voltei a escrever, mas "sob vigilância". Os meus artigos passaram a ter um crivo duro, porque passei a ser visto como alguém que exprime ideias boas, de forma perigosa (que elegante que a censura pode ser, não é?)

P Janeiro, consultor de gestão.

joão viegas disse...

Prezado Desidério,

1/ Vou ler o artigo com atenção. Francamente, tenho duvidas que, de uma maneira geral, haja menos liberdade de expressão hoje em dia do que no passado. Nas duas sociedades que conheço razoavelmente (a portuguesa e a francesa) a afirmação parece me largamente inexacta. Mas claro que vou ler e, se fôr caso disso, não deixarei de homenagear os antigos...

2/ Pondo esta questão, historica, entre parêntesis, o que me parece é que negar por principio que a liberdade de expressão deva ter qualquer limite, não é a melhor maneira de defender esta liberdade. Pelo contrario, so assumindo que existem limites, e procurando saber quais são, porque é que se justificam, em nome de que valores, etc., é que vamos conseguir defender a ideia que esses limites devem ser excepcionais, e que não devem poder ser deixados ao critério de cada um.

Esta logica esta na base do regime liberal : a minha liberdade so acaba onde começa a liberdade do outro.

Vai ver que, mesmo de um ponto de vista filosofico, so esta logica permite alcançar definições precisas (por exemplo a de "insulto", se se entender por ai uma atitude de negação da dignidade do outro, logo da sua personalidade e correlativa liberdade)e combater eficazmente os problemas que evoca nos seus posts.

Sugiro que leia o texto do Maradona no blogue "a causa foi modificada" (atenção que os textos são apagados regularmente) que diz a mesma coisa do que eu, so que muito melhor do que eu saberia fazê-lo.

Um abraço

Anónimo disse...

Caro Desidério,

Vá bardamerda seu cabrão!

Desidério Murcho disse...

Hoje não me dá jeito ir. Mas estou a pensar ir prá semana, até porque me disseram que por lá não há comentadores frívolos.

Anónimo disse...

Caro Desidério,

O meu comentário a insultá-lo era uma aplicação prática da sua apologia do insulto. Não era bem frívolo; era bem humorado. Saiba que sou seu admirador e nunca o insultaria a sério.

Sinceramente,

Norberto, um seu criado

Desidério Murcho disse...

Nem neste post nem noutro qualquer eu faço a apologia do insulto. Se eu defender o direito das pessoas a beber cerveja, isso não significa que esteja a fazer a apologia da cerveja; posso até nem gostar de cerveja. É significativa a incapacidade para compreender que se possa defender o direito de as pessoas fazerem o que não gostamos de fazer, nem aprovamos. É significativa porque mostra que não se compreende o que é a tolerância: a tolerância não é defender o direito de as pessoas fazerem o que achamos bonito ou recomendável, mas antes o direito de fazerem o que não achamos bonito nem recomendável.

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