Regressa a prosa de Rui Baptista, o nosso habitual colaborador em assuntos de Educação (na imagem Eça de Queirós):
“Quando todos pensam o mesmo,ninguém pensa muito” (Kierkegaard).
No beco que tem oposto o Ministério da Educação (ME) e a Plataforma Sindical dos Professores, tendo como porta-voz o secretário-geral da Fenprof, pouca me parece ser a preocupação de ambos em sair dum impasse em que o direito dos alunos a a educação de qualidade se transformaram numa moeda de troca ao serviço de intenções de cariz nitidamente político.
Mas recuemos no tempo para se poder ter uma perspectiva do que aconteceu nos últimos anos de ensino em Portugal em que a deficiente formação dos professores mereceu a contundente crítica de Nuno Crato: “É indesculpável que um professor - qualquer professor! - não saiba escrever, cometa erros de ortografia graves, tenha limitações sérias no vocabulário (…)”.
Ora, para evitar que tenhamos, como disse José Luís Borges, como futuro o esquecimento, convém situar a génese da actual situação no famigerado Estatuto da Carreira Docente (Decreto Lei 139-A/90, de 28/Março), acordado, no tempo em que Roberto Carneiro ocupava a pasta da Educação, “numa mesa de negociações entre o ME e cerca de 30 sindicatos e organizações afins”. Ontem como hoje, uma verdadeira babilónia de interesses!
Sem qualquer alma gémea em qualquer recôndito da terra, este estatuto transformou gigantes em anões e anões em gigantes, tendo levado, em 1992, à criação do Sindicato Nacional dos Professores Licenciados, hoje integrado na dita Plataforma, “em ruptura com as orientações sindicais então existentes, em oposição frontal à instituição de um carreira docente única de professores, pois pretende revalorizar a profissão em todo o seu percurso, em consonância com os valores e as necessidades dos professores dos nossos dias”.
As normas estatutárias que enformam este documento deram azo ao mais descarado oportunismo em que o acesso ao topo da carreira era o 9.º escalão para os bacharéis e o 10.º para os licenciados. Numa amálgama de habilitações académicas, destinava-se o 9.º escalão a bacharéis com certificados que iam dum curso do ensino técnico (equivalente ao actual 9.º ano de escolaridade) a um diploma de ensino universitário. Desta forma, passou a tratar-se, de igual maneira, todos os docentes, independentemente das respectivas habilitações académicas, a exemplo do que sobre os livros entendia um criado de Eça de Queirós que se tornou personagem de um dos seus textos com este delicioso naco de prosa:
“Caso surpreendente! E sobretudo surpreendente para mim, porque descubro que a Academia tem sobre os livros a opinião do meu velho criado Vitorino. Este benemérito quando em Coimbra lhe mandávamos buscar a um cacifo, apelidado de ‘Biblioteca de Alexandria’, um livro de versos trazia sempre um dicionário, um Ortolan, ou um tomo das Ordenações; e se, por maravilha, nos apetecia justamente um destes tomos de instrução era certo aparecer Vitorino com Lamartine ou ‘A Dama das Camélias’. Os nossos clamores de indignação deixavam-no superiormente indiferente. Dava um puxão do colete de riscadinho, e murmurava com dignidade: isto ou aquilo são coisas de letra redonda”.Mas como se isto não bastasse, logo aparecerem escolas privadas (ditas) superiores que em meia dúzia de meses distribuíram diplomas de licenciatura a granel a estratos profissionais de posse de diplomas de ensino não superior que passaram a ascender meteoricamente ao topo da carreira docente (10.º escalão). Os resultados deste “nacional porreirismo” estão à vista de tods, através dos fracos resultados alcançados pelos nossos alunos do ensino em confronto com outros países. Tanto relatórios internacionais como Medina Carreira, quando afirma estarem “a formar-se ignorantes às pazadas”, dizem aquilo que a “massa cinzenta”, com assento nos cadeirões da 5 de Outubro, não quis ou foi capaz de ver durante anos de cegueira colectiva mesmo quando mentes lúcidas alertavam para o facto de o rei ir nu.
Quase três décadas e meia de vida leva a democracia portuguesa. É mais do que tempo de procurar um estado de Direito em que se não legisle segundo o interesse de sindicatos que pretendem proletarizar a nobreza do magistério ou de selvagens grupos de pressão, mas tendo em vista o interesse último da sociedade portuguesa em ter um ensino de qualidade para que, em desejo expresso por Carlos Fiolhais, “a escola, a boa escola, ocupe o lugar a que tem direito”.
No desastroso statu quo a que tudo isto chegou, sob a complacência ou até mesmo aplauso da maioria sindical, acontece que a antiga e a actual avaliações dos professores pouco mais representam que uma espécie de vacina que se pretende ministrar a um cadáver para evitar que ele adoeça. Em vésperas de eleições, a luta sem quartel entre partes desavindas não devia evitar que seja feito o que deve ser feito para distinguir os bons dos maus professores. Pode-se discutir, apenas, a forma de o fazer, porque não se pode pôr em causa a necessidade em o fazer numa carreira profissional em que a chegada ao topo não pode continuar a corresponder a dois versos de Garcia de Resende, no “Cancioneiro”: “Fazer do torto, direito/e a quem tem direito, torto”.
8 comentários:
Para compor o ramalhete, o surgimento das Escolas Superiores de Educação...
A falta de professores de há umas décadas atrás, fez com que se criassem "ESEs" de empreitada, onde um nível de exigência abaixo do que seria de esperar, fez com que alunos com média baixa, terminassem um curso com média baixa e se tornassem professores... Das dezenas de professores que tenho conhecido ao longo dos últimos anos, os das ESEs são os que têm uma cultura inferior, conhecimentos científicos da sua área inferiores e, pior do que isso, dão erros ortográficos e de sintaxe... e alguns destes ensinam a ler e a escrever.
Sofia Fernandes
O Rui Baptista tem razão no que diz, mas uma vez que o faz de uma forma um pouco obsessiva (está sempre a voltar a este tema) talvez caia no exagero e acabe por ser pouco persuasivo.
Claro que os professores devem ser licenciados, claro que houve os "truques" que o Rui denuncia. Mas isso não explica os problemas do ensino em Portugal. Há outras causas e quase todas são mais importantes. Quer uma lista? A horrível influência do "eduquês", nomeadamente na formação de professores, as leis absurdas vomitadas pelos políticos influenciados pelo "eduquês", o constante "experimentalismo" com reformas e alterações legislativas quase mensais (o actual governo fez disso uma arte), a fraca qualidade científica de muitos programas e manuais, a existência de poucos exames nacionais e o facilitismo nalguns deles, etc.
A maior parte dos licenciados que conheço podiam ser bacharéis ou até nunca terem ido além do ensino secundário: professores de filosofia que não lêem livros de filosofia nem discutem problemas filosóficos, professores de português que praticamente só lêem os livros do programa, professores de ciências que acreditam na astrologia e têm tanto espírito científico como a Maya. Se quiser perceber perceber o que vale uma licenciatura em Portugal vá à sala de professores de uma escola básica ou secundária quando estiver a ocorrer um qualquer acontecimento cientificamente interessante: uma nova descoberta genética, uma sonda em Marte, etc. Quer apostar que encontrará muito poucos professores de ciências a falar desses assuntos? Quer apostar que muitos nem terão ouvido falar do caso?
Outro teste: um inquérito. Quantos professores de ciências leram pelo menos dois ou três livros da Ciência Aberta? Quantos professores de Filosofia leram pelo menos dois ou três livros da Filosofia Aberta? Vai uma aposta que os números seriam deprimentes?
Por isso, uma prova de ingresso na carreira (desde que rigorosa e exigente) é algo muito positivo.
De facto não se conseguem fazer reformas contra tudo e contra todos. Mas também é verdade que, como acontece noutro tipo de organizações, quando os males são grandes, são necessárias mudanças radicais e forçadas. O problema é que não podem ser demoradas e têm que começar a produzir resultados e isso não está a ser conseguido neste processo de avaliação.
Apesar disso, este governo tem pelo menos o mérito de ter tentado mexer na carreira docente fazendo algo que me parece lógico e que é criar uma melhor estrutura nas escolas. A divisão entre titulares e os restantes professores, não é mais do uma divisão semelhante à que existe em todas as organizações e que se destina a conferir diferentes níveis de responsabilidade e alinhar as funções aos mesmos. Se os titulares escolhidos não são os melhores, tal deve-se precisamente à falta de bons critérios para um bom ponto de entrada. Tiveram que ser seleccionadas pessoas com base nos critérios que existiam e que eram maus, precisamente porque não há avaliação de desempenho que permita diferenciar. Espera-se assim que, a avaliação de desempenho possa permitir melhores critérios para os futuros titulares, mas isto só acontecerá se o sistema for correctamente implementado.
Mesmo, com esta lei, é ridículo e nada promotor da competência, que só um professor já quase em fim de carreira, possa ser titular. Competência não é idade e se podemos ter presidentes da república ou presidentes de empresas aos 35 anos, parece-me estranho que tal não seja possível numa carreira de um professor. Mas seja, é melhor que nada.
Quase todos os professores criticam esta avaliação de desempenho. Sou marido de uma professora e vejo a carga de burocracia que a inunda, agravada agora por este processo. Mas lendo a lei que rege esta avaliação e, sem ser especialista, mas conhecendo alguma coisa de sistemas de avaliação, quanto mais não seja por dar formação sobre alguns sistemas, não vejo que este tenha na sua natureza muita burocracia e que seja diferente dos sistemas que são considerados os mais eficientes em várias organizações.
O que vejo é que as pessoas nas escolas não têm conhecimentos para resolver determinados problemas, como definir métricas ou estruturar objectivos, de forma simples. Além disso estão contrariados e portanto emaranham-se numa série de procedimentos inúteis, confundindo o que é necessário, com o que é apenas má interpretação e isto sem que se possam chamar incompetentes ou responsáveis por essa falha. Não há nem nunca houve uma cultura de medida do desempenho, de melhoria estruturada e sistemática, de organização de processos e por processos e portanto só por acaso é que não seria assim; só episodicamente aparecerá uma escola ou outra em que o processo seja bem implementado. Tenho assim, na dimensão da avaliação e noutras, alguma dificuldade em distinguir a burocracia inerente ao sistema e a burocracia acrescentada por inexperiência e desconhecimento e que, tem ainda o condão de tornar o sistema mais ineficaz nos resultados e não apenas na forma.
Eu, que defendo por regra uma maior descentralização e autonomia das escolas sou, a respeito da avaliação, a favor de uma maior centralização nos primeiros 3 anos. Deveria ter sido o Ministério ou melhor, uma organização especializada em sistemas de avaliação, a definir os objectivos de cada escola e de cada professor, naturalmente incorporando as diferenciações que são fundamentais devido aos contextos diferentes das escolas e das turmas. Só isto garantiria uma homogeneização dos objectivos e se havia dinheiro a gastar com consultores, que fosse este. O que vejo acontecer é uma verdadeira salganhada, em que cada professor acaba por ter objectivos completamente diferentes do colega que está em condições semelhantes, só porque os propôs de forma diferente e foi aceite pelo titular ou pelo conselho executivo.
A virtude da avaliação é medir e contribuir para estruturar os planos de melhoria, aplicáveis às pessoas e aos processos da escola. Deve basear-se a avaliação em factores com a menor subjectividade possível e as metas devem reflectir ambição, mas também realismo.
É medindo, estabelecendo planos para atingir um objectivo, atacando as causas que se pode deixar de trabalhar apenas na generalidade e passar ao específico que, repito são os processos e as pessoas.
Diagnósticos como o deste post, há muitos, de há longa data e muitos como este são verdadeiros e úteis, mas são gerais e como tal não permitem conclusões particulares. É óbvio que há uma má preparação dos professores e é também óbvio que as causas não se invertem de um momento para o outro. Mas a verdade é que neste momento ser bom ou mau professor é igual, evoluir ou não, não tem consequências, mérito ou demérito não são recompensados nem punidos.
É também verdade que uma escola bem ou mal gerida não conduz a grandes diferenças de reconhecimento para quem aí trabalha e para quem a gere. E desde que a gestão seja popular o suficiente, o concelho executivo é reeleito, até porque não há estimulo a que outras pessoas se constituam alternativas.
Não haver objectivos concretos é mau e muito mau é também, quando se definem, falseá-los e pelo próprio ministério, com facilitismos em provas nacionais. Esta sim é uma péssima mensagem. Isto sim devia levar 100 mil professores à rua e não a avaliação que precisa de se iniciar para se poder ir ajustando ao longo dos próximos anos. Ainda assim, uma avaliação que não funcione bem é melhor que situação actual, em que não há qualquer mecanismo de diagnóstico, logo de correcção, logo de diferenciação. E mesmo estes facilitismos terão que ser corrigidos quando as medidas independentes, externas como Pisa e internas como a comparação entre os resultados das escolas e dos professores e os nacionais, poderem ser comparados, naturalmente contextualizando com o meio.
Por tudo isto acho que apesar de tudo seria muito mau o governo recuar na avaliação. A alternativa parece-me pior e tanta oposição até parece dizer que anteriormente estava tudo bem e portanto não necessitava ser mudado…
Já não tenho uma revista americana de educação onde se estipulava quais os procedimentos da administração para contactarem com os professores.
Tinha-se chegado à conclusão, depois de vários estudos, que as comunicações escritas (normas) já decididas pela administração chocavam com a sensibilidade dos professores.
Perante este desenlace a administração optou pelo contacto com as representações das escolas, em seminário, para decidirem sobre as futuras normas.
A administração limitava-se a apresentar tópicos do que se pretendia realizar para optimizar os recursos humanos e materiais, ou outro assunto premente. Nada estava escrita nem nada estava decidido. Pretendia-se apenas ouvir os professores sobre a temática que a administração pretendia resolver.
Esta posição participante do professor, conferindo-lhe o poder de também contribuir com o seu saber e experiência, porque dentro da vivência escolar, para uma melhoria do ensino, constituía uma motivação forte para a classe, que deixava de ser um simples receptáculo de normas impostas.
O que aconteceu entre nós, foi a total inversão destas premissas. A administração, como é apanágio entre nós, marginalizou os professores e actuou prepotentemente, como se fossem escravos da administração pública, seres obedientes e disciplinados, sujeitos a todos os vexames.
O diálogo é omisso, e a administração assistiu musculadamente à confirmação do aforismo de Raymond Aron:
"Os homens é que fazem a história, mas desconhecem que história estão a fazer".
Caríssimos,
Este post tem provocado reacções muito interessantes, porém não tenho tempo para comentá-las. Pergunto, no entanto, aos escribas se, realmente,leram a legislação que consagra o novo sistema avaliativo? Se se questionaram por que razões surgirem os simplex? E se já repararam no principal: as escolas estão, de facto, instáveis.
E assim vão continuar.
O problema é que o Governo entrou de pés e optou pela ofensa e pela desconsideração aos professores perante a opinião pública.
Parece-vos esse o caminho para prestigiar a escola pública?
Carlos Félix Fernandes
Começo por agradecer os cinco comentários que foram feitos ao meu post: 1.º pela maneira correcta como foram escritos; 2.º pela oportunidade que me foi dada em reflectir sobre temas do sistema educativo numa perspectiva mais enriquecedora porque pensada por várias cabeças.
Concordando na generalidade com os comentários, gostaria, todavia, que não pairasse, ainda que ao de leve, a impressão de que defendo que uma licenciatura universitária é, por si só, garantia de impoluta qualidade científica e pedagógica . Dai o eu defender a prova de ingresso na carreira, “desde que rigorosa e exigente” (Carlos Pires). Aliás, é minha intenção escrever um post a debater esta temática que a Fenprof rejeita, a priori, como “exame injusto” (Lusa, 24.Jan.2009).
Concedo que, por vezes, as minhas opiniões possam ter sofrido do vício de estarem mais implícitas do que explícitas. Este um perigo subjacente a quem no limitado espaço de um post possa não ter conseguido exteriorizar devidamente o seu pensamento de repúdio, por exemplo, pela forma como o ministério da tutela entrou por caminhos incorrectos de desconsideração da classe docente. Todavia, para sermos honestos, devemos, de igual forma, criticar determinadas manifestações sindicais que, de igual modo, pouco ou nada contribuíram para “prestigiar a escola pública”, para utilizar uma expressão retirada do comentário de Carlos Félix Fernandes. Sou do tempo em que o ensino oficial gozava de uma qualidade e prestígio que em nada ficava a dever ao ensino privado. Bem pelo contrário! É na luta pela recuperação dessa qualidade e desse prestígio que eu gostaria de ver terminado o litígio político entre o ministério da Educação e os sindicatos em que temo que os professores, os alunos e o Ensino se tenham transformado em piões-da nica!
P.S.: Aproveito o ensejo para fazer uma correcção à 4.ª linha do 1.º § do meu post. Onde está escrito“alunos a a educação de qualidade se transformaram”, deverá ser emendado para “alunos em que uma educação de qualidade se transformou”.
Os professores teriam tudo a ganhar, sobretudo num contexto de ofensiva neo-liberal (será isto política a que os profs teriam que ser indiferentes?) em deixar-se separar por categorias para serem derrotados mais facilmente. Já dizia a outra, a minha política é o trabalho.
O Valter Lemos tem uma das famosas licenciaturas de Boston(ou da Bosta), o Sócrates foi ao domingo e por fax...
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